HISTÓRIA DE VICES OU COM QUANTOS
VICES SE FAZ UMA REPÚBLICA
A história desse personagem político no Brasil é
repleta de surpresas, reviravoltas e muita proeminência.
Dizem que
perguntar é uma forma de desobedecer. Se assim for, gostaria de indagar porque,
na breve história desse nosso Brasil republicano, os vice-presidentes tantas
vezes fizeram carreira solo? Aliás, a questão não poderia ser mais procedente
diante do que estamos para assistir no nosso contexto atual.
Segundo
os termos da lei, o cargo político de vice-presidente corresponde ao segundo na
hierarquia do executivo. O vice, por exemplo, é quem substitui o presidente em
caso de vacância: viagens ao exterior, doença, renúncia ou processo de
impedimento. Além do mais, como são eleitos em chapa única, há em geral acordo
político prévio entre o presidente e seu vice. Aliás, o pronome possessivo
“seu” não tem nada de ingênuo: indica situação de anterioridade e superioridade
por parte do presidente em exercício.
As
pré-condições impostas ao aspirante não são muitas: é preciso ser brasileiro
nato, ter no mínimo 35 anos à época da posse, ser filiado a um partido e estar
em pleno exercício dos seus direitos. Se isso tudo ocorrer, o vice é eleito
junto com o presidente pelo mandato de 4 anos, com direito a uma reeleição. O
cargo já faz parte da nossa história pregressa: foi instituído pela
Constituição da Primeira República em 1891, restabelecido pela Constituição de
1946 e mantido nas Constituições de 1967 e de 1988. As atribuições também
variaram um pouco. De 1891 a 1967 era incumbência do vice atuar como presidente
do Senado Federal; de 1967 a 1969 ele era por atribuição presidente do
Congresso. Hoje não é mais, mas a Constituição determina que por meio de lei
complementar o vice possa vir a assumir novas funções.
Mas há
sempre um porém. A despeito dos vices só serem eleitos em chapa — não
individualmente — e de na prática constituírem-se como figuras de coalizão do
governo, a história dos vices no Brasil é repleta de surpresas, reviravoltas e
muita proeminência.
O
primeiro vice que o Brasil conheceu foi Floriano Peixoto, cujo exercício
republicano sobreviveu na base da força. Durante dois governos o país
experimentou a tutela militar: o marechal Deodoro da Fonseca, líder do golpe,
foi também o primeiro presidente, sendo sucedido por Floriano Peixoto, seu
antigo vice. Nenhum deles teria vida fácil. Em 1891 eclodiu a primeira Revolta
da Armada, também conhecida como Revolta da Esquadra. O estopim foi o governo
autoritário de Deodoro, que em flagrante violação da Constituição ordenou o
fechamento do Congresso. A medida resultara da inabilidade do presidente diante
da oposição, que, descontente com a crise econômica dos primeiros anos de
República, reclamava o final da especulação, das fraudes e da inflação. Deodoro
contou ainda com a ira da Armada, que exigia a reabertura do Congresso. Para
não ter de enfrentar uma provável derrota política, Deodoro renunciou em 23 de
novembro. Seu vice, o marechal Floriano Peixoto, assumiu o posto e se manteve à
frente da nação: ao invés de convocar eleições como estabelecia a Constituição
virou ele próprio o presidente. O governo de Floriano trouxe para a cena
pública um novo ingrediente político: o jacobinismo, também conhecido como
florianismo. Nos anos de 1893 e 1897, no Rio de Janeiro, a participação popular
era expressiva e o vice fez carreira. Mas logo em 1893 a situação entornou:
nova Revolta da Marinha, uma Revolução Federalista estoura no Sul do país, e o
antigo vice, então presidente, governou em estado de sítio, ganhando a alcunha
“sincera” de Marechal de Ferro. Os movimentos sociais só seriam contidos em
1894, mas abriram caminho para novas eleições.
Mas esse
não foi um caso isolado. Outros vices fizeram história. Tantos, que vou
mencionar apenas alguns. Dois deles assumiram o cargo na condição de
presidentes em exercício, ou mesmo interinos, em virtude de problemas de saúde
de seus titulares: Delfim Moreira e José Sarney. Moreira assumiu o posto com a
morte de Rodrigues Alves, em 1919, que eleito para o segundo mandato em março
de 1918, contraiu a devastadora gripe espanhola e não pode tomar posse em
novembro. No entanto, como não haviam decorrido dois anos do mandato, novo
processo foi aberto elegendo-se presidente Epitácio Pessoa, e Delfim Moreira
como seu vice. Sua história é mesmo de vice.
Outro
caso retumbante foi o do par Tancredo Neves/José Sarney. Habilidoso, em 1983
Tancredo Neves consolidou sua candidatura à presidência, costurando uma aliança
política capaz de acomodar diferentes forças políticas: era a Aliança
Democrática. Deu ao seu programa um tom de mudança mas não de ruptura, e
manteve três pontos essenciais à pauta da oposição: eleições diretas em todos
os níveis, convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte e promulgação de
nova Constituição. Tancredo escolheu para vice o senador maranhense José
Sarney, que chamou os jornalistas para anunciar sua renúncia à presidência do
PDS. Ingressou então na Aliança Democrática, e adotou o sonoro slogan de
campanha: “Muda Brasil”.
Em 15 de
janeiro de 1985, Tancredo foi eleito presidente da República, com uma
impressionante votação indireta: 480 votos contra 180 de Maluf. Tinha apenas
três meses até a posse e precisava fazer muito: ampliar a vitória, montar o
novo governo, dar corpo à retórica da Nova República e implementar seu modelo
de mudança conciliatória. No entanto, na véspera da sua posse Tancredo foi
internado e submetido a uma cirurgia de emergência no Hospital de Base, em
Brasília. Ele tinha 75 anos, sabia que estava doente, mas escondeu o fato até
dos interlocutores mais próximos. Avaliou que conseguiria assumir o cargo e só
depois iria procurar ajuda médica.
Deu tudo
errado; Tancredo jamais tomaria posse. Era 21 de abril, dia de Tiradentes,
quando sua morte foi anunciada ao país. A Nova República começou num clima de
muita frustração e pouca novidade, com o vice assumindo o cargo em 15 de
março de 1985. Sarney se aproximara da ditadura em 1964: em 1965 havia sido eleito
por voto direto governador do Maranhão e, em 1970, voltado a Brasília como
senador pela Arena. O político que saltara do barco na última hora, tinha
grande facilidade para mudar de rumo e adaptar-se a qualquer corrente
ideológica, desde que fosse mantido onde queria estar: no poder. No Maranhão,
era onipresente. Como outros políticos brasileiros, Sarney encarnava um novo
tipo de coronel. Se não vivia mais no velho sistema da Primeira República,
conservava algumas de suas práticas: inadaptação às regras democráticas,
convicção de estar acima da lei, incapacidade de distinguir o público do
privado, e uso do poder para conseguir empregos, contratos, subsídios e outros
favores para enriquecimento próprio e da parentela.
Mas há
outro conhecido caso de vice que foi elevado ao cargo de presidente: Itamar
Franco. Na manhã de 29 de dezembro de 1992, o Senado se reuniu para julgar o
impeachment do presidente Collor. Era o grande teste da Constituição de 1988:
dar suporte ao processo de impedimento do primeiro presidente eleito pelo voto
direto desde 1961. Collor estava desde setembro afastado provisoriamente do
governo e, na manhã de seu julgamento pelo Senado, ainda tentaria uma última
manobra: renunciou. A sessão legislativa foi interrompida, o vice-presidente Itamar
Franco assumiu em definitivo o cargo e, no dia seguinte, os senadores retomaram
a sessão. Por 76 votos a três, o impeachment foi aprovado e Collor teve seus
direitos políticos suspensos, sendo impedido de exercer função pública até o
final do ano 2000.
Collor
convidara Itamar Franco para compor sua chapa porque precisava dos votos de
Minas, o segundo maior colégio eleitoral do país. Já Itamar deve ter aceitado
por falta de votos e de opção — seu mandato de senador estava por terminar e
ele não havia conseguido renová-lo em uma nova eleição. Ambos divergiram do
lançamento da candidatura até o final do governo. Collor desdenhava do seu
vice, um político tradicional, de vida provinciana e propensões nacionalistas.
Itamar, por sua vez, era sabidamente encrenqueiro e instável. Ademais, apesar
de ter sido governador de Minas, continuava desconhecido da maioria da
população. Surpreendeu todo mundo. Itamar assumiu a presidência da República
com o PIB em queda, o desemprego chegando a 15% da população economicamente
ativa só na região metropolitana de São Paulo e a inflação que Collor prometera
derrubar se encontrava acima do patamar de 20% ao mês. Fez então alianças, e
fez-se no cargo.
Se não é
o caso de contar a história do Brasil só a partir do destino de seus vices,
vale a pena prestar muita atenção neles; ao menos na hora de, no futuro, votar.
Eles podem desempatar qualquer partida. Desde que voltamos a nosso processo
democrático, após os anos de ditadura, vimos dois vices assumirem a presidência
e estamos prontos para “recepcionar” mais um. Michel Temer é o 24º
vice-presidente que o Brasil conheceu. Assumiu a função pela primeira vez em
2011 e foi reconduzido em 2015. Ele tem, pois, carreira e experiência no posto,
mas tem fome para muito mais. Parece achar melhor passar de vice a presidente,
do que correr num processo eleitoral como líder de chapa.
Nós
brasileiros por vezes parecemos observar o país como turistas da nossa própria
realidade. E essa é a história de nosso momento presente. A não ser que
acreditemos em Papai Noel, cegonha com cesto no bico, ou milagre vindo do céu,
daqui a pouco veremos um novo vice ser alçado a presidente. Essa é uma
verdadeira “sina dos vices”. Diz o provérbio que o milagre é um efeito sem
causa. Pelo jeito, vamos ao efeito lamentando as causas.
Lilia
Moritz Schwarcz é
professora da USP e Global Scholar em Princeton. É autora, entre outros,
de “O espetáculo das raças", “As barbas do imperador", “O sol do
Brasil" e “Brasil: uma biografia”. Foi curadora de uma série de
exposições dentre as quais: “Um olhar sobre o Brasil” e “Histórias
Mestiças”. Atualmente é curadora adjunta do Masp.
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