GOLPES E CONTRAGOLPES
A
independência política de 1822 pode ser considerada nosso primeiro Golpe de
Estado
A
história do Brasil, diferentemente do que a imaginamos – “deitada eternamente
em berço esplêndido”, conforme verseja nosso Hino Nacional – é toda feita de
golpes de Estado.
A
independência política de 1822, por exemplo, pode ser considerada nosso primeiro
Golpe de Estado. Às margens do Ipiranga, quase desacompanhado, Pedro virou I, e
logo alterou a Constituição do país. A que tínhamos até então era régia e vinha
de Portugal. Já o Brasil emancipava-se tendo um monarca como líder e precisava
contar com um novo corpo de leis. Virávamos, pois, um Império cercado de
repúblicas por todos os lados, e o golpe era aplicado “de filho para pai”.
Insurgindo-se contra d. João e seu país de origem, Pedro I alteraria a
Constituição, sagrando-se imperador.
Vale
também lembrar que nossa primeira Constituição, a de 1824, foi “Outorgada”;
isto é, imposta, e não livremente votada pelos parlamentares. Com mão forte,
Pedro I, sentindo-se lesado pelas elites brasileiras que julgava bem
representar (até pelo menos aquele momento), associa-se ao partido
português, derruba a Constituição da Mandioca, de 1823, e decreta a de 1824.
Ela instituía, entre outros, quatro poderes distintos. O Executivo, o
Legislativo e o Judiciário, conforme o modelo consagrado de Montesquieu, e mais
ainda outro: o poder moderador, que tinha a capacidade de anular os outros
três. Esse era de uso exclusivo do monarca, e indicava a existência de um golpe
no interior do golpe. Diferente do fantoche imaginado pelas elites locais, era
agora o soberano o novo fiel da balança política do Estado.
Ato
assemelhado ocorreria em 1839, com um evento que passou para a história com o
nome correto: “Golpe da Maioridade”. Pela Constituição vigente, teríamos que
aguardar até que Pedro de Alcântara completasse 18 anos. Só então ele assumiria
o poder, que tinha ficado vacante em 1831, desde que seu pai voltara para
Portugal. Porém, diferente do que diz o ditado, quem foi para Portugal não
perdeu o lugar. Na verdade, Pedro I queria garantir o poder para o filho,
que restava no Brasil, mas também para a filha, d. Maria da Glória, que partia
junto com ele para a antiga metrópole, com o objetivo de se tornar rainha de
Portugal. Essa é outra história; a nossa, recontaria a mística de um pequeno
Imperador, que com 14 anos de idade estava “maduro e bem preparado” – assim diz
a ladainha pátria – para assumir a direção do país, após o conturbado período
das Regências. Foi Golpe, portanto, sendo a Constituição mais uma vez
desrespeitada.
Diferente
de outras experiências monárquicas do continente americano – que foram mais
episódicas ou caricaturais – no caso brasileiro, a realeza seria popular,
estável e duradoura. Foi vigente por quase cinquenta anos, e cairia com mais um
golpe, no dia 15 de novembro de 1889. Outra vez, os termos não falham. À época,
o que hoje chamamos de “Proclamação da República”, foi antes conhecido como
“Golpe da República”. Novamente, algumas elites descontentes e apartadas do
jogo político, tomam para si a condução dos eventos, derrubam o imperador e o
mandam para o exílio. É fato que Pedro II andava isolado politicamente, e que,
depois da abolição da escravidão, em 1888, perdera seus últimos esteios: os
cafeicultores do Vale do Paraíba. Sobrevivia apenas por conta da sua
popularidade pessoal; mas já não reinava. Caiu, e a República trataria de
redigir novas leis.
A
princípio tímida e titubeante, a Primeira República vingaria, lentamente, e
tomaria corpo. De tão assentada, sofreu, ela mesma, outro golpe. Em finais dos
anos 1920, os grupos dirigentes acastelados numa prática conhecida como
“política do café com leite”, com a queda dos preços dos nossos produtos de
exportação, fragilizaram-se. Não deram conta do Golpe que eclodiu em 1930,
quando foram tomados de assalto por novas elites vindas do Sul do país.
Começava
então a era Getúlio Vargas; político dos mais argutos, que só pode ser
entendido no plural, tal a quantidade de golpes que praticou e sofreu. Foi o
líder do governo provisório de 1930; em 1934, virou presidente da República do
Governo Constitucional; foi presidente da República, eleito pela Assembleia
Nacional Constituinte de 1934; e de 1937 a 1945 virou presidente-ditador
durante o Estado Novo, para ser eleito presidente pelo voto direto de 1951 a
1954. Ele foi muitos em sendo apenas um: com golpes dentro de golpes. GV
suicidou-se em agosto de 1954 e, como atestava sua carta testamento, saia “da
vida para entrar na história”. Aí estava uma sorte radical e dramática de
golpe, que alterou o curso dos acontecimentos, com o povo nas ruas, clamando e
exigindo direitos.
Entre as
décadas de 1950 e o início dos anos 1960, o Brasil conheceu novos projetos de
transformação: o nacional-desenvolvimentismo, o trabalhismo radical, as
Reformas de Base, dentre outros. Tal período de relativa estabilidade foi
interrompido em 1964, pelo único golpe que ninguém desdiz. Foi o famoso Golpe
de 1964; aquele que roubou direitos civis e políticos da população, e
interrompeu um processo democrático que ia afirmando-se, aos trancos e
barrancos, desde os anos cinquenta. Iniciou-se, então, um período de ditadura
civil e militar, com controle das Forças Armadas da presidência da República,
responsável pela história de uma sucessão de Atos Institucionais que fecharam
as liberdades democráticas dos brasileiros. O regime ditatorial produziu um imenso
conjunto de práticas e normas arbitrárias, mas com valor legal, destinadas a
controlar a heterogeneidade da sociedade e permitir a preservação da unidade
entre as diversas facções golpistas.
Só em
1988 o Brasil inaugurou uma nova Constituição, e deu início ao mais recente
período de consolidação democrática. E era inegável que a vida política do país
estava mudando: mudava a República e mudavam seus personagens, com a multidão
de brasileiros pobres, anônimos, vindos de toda a parte, e chegando a um mundo
dos direitos. Desde a aprovação da Constituição Cidadã, a sociedade brasileira
vem apostando nesse processo, marcado por conquistas importantes: uma
impressionante ampliação do catálogo de direitos; um projeto consistente de
transformação da sociedade, a partir da inclusão social de milhões de
brasileiros que passaram a desfrutar de novo patamar de renda e de consumo. Mas
persiste, teimosamente, um déficit republicano na raiz da nossa comunidade
política. Práticas patrimoniais e clientelistas resistem no interior do sistema
político e nas instituições públicas; falta uma agenda ética capaz de
transformar o sistema político eleitoral e o comportamento partidário; a
corrupção corre o risco de se tornar endêmica e está associada tanto ao mau
trato do dinheiro público, como ao descontrole das políticas governamentais na
nossa contemporaneidade.
Não
pretendo resumir a história do Brasil com um punhado de parágrafos. Apenas,
sublinhar como nossa história foi feita de golpes. Mais ainda, como são muitos
os nossos desafios; talvez o maior deles seja o que estamos enfrentando, no
momento presente. Estamos diante de novo golpe? O andamento dessa crônica
deveria prever um sim, e ponto final. Dizem, porém, que historiador é mal
testemunho do seu período, e, na minha opinião, quem afirma que tem certeza,
muitas vezes se equivoca. Por isso vou entrar para o grupo dos “não sei;
ainda”.
Se
tomarmos em conta que o impeachment está previsto em nossa Constituição, tudo
fica ainda mais complexo. É certo que a legislação brasileira do impeachment,
como dizem os especialistas, é falha; permite várias interpretações, e deixa a
presidente da República vulnerável. Certo. Irregularidade contábil, portanto,
não deveria ser suficiente para fazer cair um governo. Mas o procedimento é parte
do nosso arcabouço constitucional, a despeito de seu texto ser muito falacioso;
o que, aliás, não é segredo para ninguém.
Por essas
e por outras é que o julgamento do impeachment é, no nosso caso atual, um ato
político; de vontade política. O problema é que não há maioria absoluta ou
torcida hegemônica nesse nosso Brasil atual. Se existe uma realidade que
ninguém há de negar, é que o país encontra-se, de fato, dividido.
Os
brasileiros sempre se viram como juízes de futebol; agora nos tornamos, porém,
juízes do Supremo. Da minha parte, no momento em que escrevo esse texto, estou
mais para a previsão do Conselheiro Aires, grande personagem da galeria de
Machado de Assis. Dentre seus conselhos estava um, insofismável: “as coisas só
são previsíveis quando já aconteceram”.
Lilia
Moritz Schwarcz é
professora da USP e Global Scholar em Princeton. É autora, entre outros,
de “O espetáculo das raças", “As barbas do imperador", “O sol do
Brasil" e “Brasil: uma biografia”. Foi curadora de uma série de
exposições dentre as quais: “Um olhar sobre o Brasil” e “Histórias
Mestiças”. Atualmente é curadora adjunta do Masp.
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