segunda-feira, 3 de março de 2014

A QUESTÃO DA VIOLÊNCIA NA CONTEMPORANEIDADE


A QUESTÃO DA VIOLÊNCIA NA CONTEMPORANEIDADE


Iniciemos nosso percurso investigativo de ordem teórica e conceitual analisando o termo “violência”.  Num primeiro olhar constatamos que o termo violência apresenta-se ambivalente. Ou seja, apresenta várias definições possíveis. Pode-se falar de violência humana; de violência física; de violência moral; de violência natural (advindo das forças da natureza); de violência animal, de violência argumentativa, de violência simbólica.  Apesar desta condição ambivalente do termo violência, pode-se encontrar um elemento comum, um fio condutor, que perpassa todas estas formas e definições de violência. Assim, atos, ações de violência estabelecem relação com a manifestação de força. Força que alguém, que um ou mais elementos exercem sobre alguém outro, ou sobre outros.
Portanto, numa primeira tentativa de definição, a violência inscreve-se na ação de impor ao outro, uma determinada situação, condição de domínio, ou de subjugação.  Ora, se violência implica na manifestação de força, então, por dedução  lógica, violência é uma forma de manifestação de poder. Nesta direção, Hannah Arendt na obra: “Sobre a Violência”, referindo as reflexões de Bertrand de Jouvenel, afirma: “E o poder ao que tudo indica é instrumento de domínio.” “Comandar e obedecer, sem isso não há poder”.  Talvez se possa afirmar com certa consistência que sob a perspectiva de Maquiavel, Hobbes, Nietzsche, Foucault, o poder se efetiva  em relação. Assim, para tais pensadores, o homem é animal  que se constitui na relação de poder. Dirá peremptoriamente Nietzsche: “O homem é um animal de vontade de poder”.
Por outro lado, reconheçamos que há ações de violência que nos chocam: um assassinato a sangue frio. Uma criança no meio de um campo de batalha, mulheres agredidas pelos seus parceiros, acidentes automobilísticos com vítimas fatais, vendavais, tremores de terra e, tantas outras situações. Mas, também há situações de violência que nos deixam admirados, extasiados, por exemplo: A erupção de um vulcão, a velocidade dos ventos de um ciclone, as impetuosas ondas do mar que batem contra os rochedos da costa, uma foto de trágico acidente estampado na primeira página de um jornal. O linchamento de um estuprador, de um pedófilo. Nestas condições é preciso reconhecer que também nossos sentimentos em relação a violência se apresentam ambivalentes.
Quando nos deparamos com a questão da violência é preciso ter em conta algumas questões de fundo: a violência é uma força natural, inscrita na natureza e presente em todos os seres vivos? Afinal, quem de nós ontem, hoje, agora a pouco, não cometeu um ato de violência, quando ao se alimentar fez uso de outras formas de vida vegetal, ou animal para saciar a fome? Ou dito de outro modo, para manter nossas vidas, eliminamos, condenamos a morte outras formas de vida e, nem por isso ficamos, ou guardamos remorsos, ou “peso” em nossas consciências. Se diante desta provocação você leitor responder: “Sim, mas é natural que seja assim”, então sua defensiva resposta e/ou posicionamento confirmará o argumento, de que a violência esta circunscrita no seio do reino da necessidade, da natureza e, enquanto houver vida, seres humanos, mundo, haverá necessariamente violência. Ou ainda, a paz, a ordem social, o poder coercitivo do Estado nada mais são do que formas, camisas de força, que impedem o livre transcurso da condição natural da violência. Lembram de Hobbes (!?) “Nós criamos por contrato social o Estado por que a vida em estado natural é miserável, pobre, dolorida, curta e violenta. Foi para “fugir” destas condições que vendemos nossa liberdade em estado natural por um pouco de segurança no estado contratual”.
Sob tais perspectivas, situemos a questão definitivamente: “A violência é inerente a natureza humana, ou é algo constitutivo da condição humana”? Então vejamos: Se assumirmos o argumento de que a violência é próprio da natureza humana, então, temos que aguardar os avanços da engenharia genética para que identifique o gene, ou os genes da violência e, extirpando-os teremos seres humanos dóceis, bondosos, ansiosos pela paz. Se nos definirmos pela violência como manifestação própria da condição humana, então nossa aposta esta nas convenções sociais, na educação, na estrutura jurídica, no desenvolvimento da capacidade racional como forma de nos situarmos e convivermos em equilíbrio civilizatório. 
Mas, a resposta à estas questões não é tão simples como pode parecer. Vejamos o que nos dizem os biólogos da evolução.  Iniciemos pelo Dr. Jeffrey A. Lockwood,   especialista norte americano em insetos e, que estudou durante longos anos o comportamento dos grilacridideos. Dr. Jeffrey em artigo publicado na Revista Piauí em maio de 2012 intitulado: “A Natureza da violência”, nos apresenta os seguintes argumentos, a partir do pressuposto de que a o desejo de viver se transforma em disposição para matar.
1.               A principal defesa dos insetos é uma série de características que evoluíram para ajudá-los a evitar serem devorados pelos seus predadores, fazendo-os passar despercebidos. Sua cor geralmente assume matizes de tons terrosos e opacos.
2.               Insetos considerados sociais como formigas e abelhas desenvolveram ferrões, e glândulas produtoras de veneno. Órgãos que evoluíram formando estruturas para matar. Dispostas à defenderem o ninho ou a colméia estão aptas à matar e a morrer.
3.               No reino da natureza quando o preço é a vida, seja física ou genética, a abordagem do “nada a perder” é a estratégia viável.
4.               Dividimos com as outras espécies da natureza uma realidade incômoda, a capacidade de relacionalidade viva, para lutar quando sentimos medo, atacar com raiva, nos retorcer-nos em dor e, matar se necessário for para salvar a própria vida.
5.               A violência serve como estratégia relacional para encontros entre a maioria das espécies. Também os seres humanos participam desta condição e, para a maioria dos seres humanos, os itens essências da vida, comida, abrigo, roupa e autoestima podem ser adquiridos por meios violentos, ou não violentos. Esta segunda condição representa os esforços civilizatórios e sociais.
Por sua vez o pesquisador também norte-americano Steven Pinker, estudioso das origens do comportamento agressivo do homem também em artigo publicado na Revista Piauí de março de 2013, intitulado: “Violência Ancestral: As origens do comportamento agressivo do homem”, assim se posiciona:
1.               Hoje, qualquer tentativa de compreensão da violência humana tem de começar pelas análises que nos legaram o filósofo inglês Thomas Hobbes e o biólogo pai da teoria da evolução Charles Darwin.
2.               Hobbes e Darwin nos legaram uma síntese cínica da vida em estado natural. Darwin, com a sobrevivência dos mais aptos e, Hobbes, com a vida solitária, pobre, sórdida, brutal e curta do homem.
3.               Ninguém quer viver num mundo hobbesiano, darwiniano, maquiavélico. Com ajuda destes homens de ciência é possível refletir sobre a lógica adaptativa da violência e o que ela permite predizer sobre os tipos de impulsos violentos que podem ter evoluído como parte da natureza humana.
4.               Portanto, a pergunta central é: Porque razões evoluíram organismos que visam fazer mal a outros organismos? A natureza se caracteriza por se apresentar numa grande escaramuça sangrenta?
5.               O que se constata na natureza é que quando uma tendência à violência evolui, ela é sempre estratégica. Os organismos são selecionados para mobilizar a violência somente em circunstâncias nas quais os benefícios esperados superam os custos previstos.
6.               Estudos arqueológicos dão conta de que a violência se encontra presente desde os primeiros estágios cada carreira humana a milhões de anos atrás. Manifestações de violência são comuns em primatas e, isso reforça a suspeita de que a competição violência entre homens tem uma longa história em nossa caminhada evolutiva.
Porém, é preciso reconhecer que tais questões não respondem em sua totalidade a questão da violência nas sociedades contemporâneas, mas de todo modo se apresentam como indicativos da complexidade que envolve a questão da violência.
Mas, como compreender as recorrentes manifestações de violência na atualidade? Agora sob argumentos de ordem filosófica e sociológica, iniciaremos nossas considerações, amparados nas idéias da filósofa e politóloga alemã Hannah Arendt em sua seminal obra: “Sobre a Violência”
Para Arendt, estamos inseridos numa cultura da banalização da violência. Talvez em nenhum outro momento de nossa civilização ocidental matamos tantos seres humanos em guerras, entre países, povos, culturas, em conflitos localizados, entre indivíduos movidos por motivos banais: um par de tênis, uma desavença no trânsito, uma discussão na fila do banco, do pronto socorro, na saída da boate, por alguns reais para a compra de drogas e, demais situações afins. O paradoxo do nosso tempo reside exatamente aqui, na medida em dispomos de centenas de milhares de leis, códigos e prerrogativas jurídicas que surgiram com o intuito de proteger a vida, matam-se por motivos os mais diversos, mata-se como condição inerente ao governo da vida em sua dimensão meramente biológica.
Na perspectiva analítica do estudioso do pensamento Arendtiano, Celso Lafer, em seu prefácio à tradução brasileira da obra: “Sobre a Violência” (2009) afirma:, “Arendt mostra como o século XX encontrou na violência e na multiplicação de seus meios pela revolução tecnológica o seu denominador comum, uma intromissão da violência criminosa, em larga escala, na política. São exemplos paradigmáticos dessa intromissão os campos de concentração, o genocídio, a tortura e os massacres em massa de civis nos conflitos bélicos.” (página 10).
Ainda segundo Lafer para a polítóloga “a violência e a sua glorificação se explicam pela severa frustração da faculdade de agir no mundo contemporâneo, que tem suas raízes na burocratização da vida pública, na vulnerabilidade dos grandes sistemas e na monopolização do poder, que seca as autênticas fontes criativas. O decréscimo do poder pela carência da capacidade de agir em conjunto é um convite à violência” (página 12).
Diante deste conjunto de argumentos e, das situações cotidianas de violência que vivenciamos, talvez seja oportuno, referenciarmos o adágio de Freud, que apontou para o fato de estarmos imersos num mal-estar civilizatório, que se apresenta através dos estilos de vida que contemporaneamente assumimos.
O desenvolvimento técnico e científico alcançado pela sociedade nos últimos séculos reduziu distâncias espaciais e temporais. Expandiu quase que ilimitadamente a capacidade de comunicação entre povos e países. Alcançou níveis produtivos jamais vistos. Avanços na medicina aumentaram a expectativa de vida. O mundo transformou-se numa aldeia global. Se todas essas conquistas fossem pré-condições da felicidade e da liberdade, então poderíamos afirmar que nunca tivemos a oportunidade de sermos tão livres e felizes como hoje.
Mas, parece que há algo de errado com a felicidade humana, os fatos cotidianos evidenciam paradoxos e contradições inerentes à hegemônica visão de mundo em curso. Alguns exemplos podem nos auxiliar nesta direção: nossa capacidade de comunicação parece não conseguir superar o isolamento e a incomunicabilidade dos indivíduos. Nossa capacidade produtiva demanda necessariamente capacidade consumidora, exigindo relações de descartabilidade em todas as esferas, seja com a natureza, com os semelhantes ou consigo mesmo. Em nossa crescente individualização, preferimos reduzir nossa liberdade à segurança de escolhas predeterminadas dos estilos de vida padronizados. Avalia-se a felicidade dos indivíduos de acordo com o crescimento do produto interno bruto dos países. Anseia-se pela longevidade vital, mesmo que isso implique a mediocridade de uma vida desprovida da capacidade de questionamento e de sua responsabilidade coletiva com as futuras gerações.
Neste contexto, parece-nos sintomático que explosões individuais de violência, venham se mostrando recorrentes nas duas últimas décadas, em nossa região, no Brasil, na Europa, nos Estados Unidos. Essas ações caracterizadas por significativa brutalidade expressam o espírito de nosso tempo: o vazio de sentido existencial em que se encontra inserida a sociedade dos indivíduos. Nietzsche, em meados do século XIX, nos advertia: “O niilismo radical é a convicção de uma inconsistência  da existência quando se trata daqueles valores que se reconhecem como os mais altos, os valores superiores, a serviço dos quais os homens devem viver...”
Diante destas questões urge questionarmos: não seria a brutalidade das ações de violência manifestações de efeitos colaterais da dinâmica civilizatória contemporânea, que atomiza e, responsabiliza única exclusivamente os indivíduos por seus fracassos? Ou ainda, seria a incapacidade dos indivíduos conviverem com limites e frustrações diante de uma sociedade plena de propostas e oportunidades de consumo imediato, de felicidade fácil?
A crescente individualização das pessoas na medida da perda de seus referenciais societários ocasiona o esmorecimento dos pressupostos morais e éticos que amparam as ações individuais na vida em coletividade?
A teatralidade e a brutalidade da ação não seriam formas de repúdio aos imperativos da sociedade dos indivíduos? Ou ainda, a condição de sair do isolamento, do anonimato, utilizando-se dos recursos da sociedade do espetáculo em que ávidos consumidores necessitam contemplar instantaneamente imagens e, consumir avidamente novidades de toda ordem para inda se sentirem vivos?
O mundo é resultado de nossos posicionamentos políticos e éticos na busca do bem-viver, da felicidade, de um sentido para a vida. Ou então, como nos diz o sociólogo Zygmunt Bauman, fazendo referência em uma de suas obras à uma frase dita por Theodor Adorno em algum momento de seus escritos: “A ausência de nossa capacidade de questionamento é paga com a dura moeda do sofrimento humano”.
Para uma variável reflexiva final. A possível resolução da questão da violência passa entre inúmeras variáveis, pelo reconhecimento que não será exclusivamente pelo aumento de força policial coercitiva, ou de promulgação de mais leis, numa espécie de inflação jurídica de nossas vidas. Mas, sobretudo, pelo desvencilhamento de mitos, crenças, preconceitos, estilo de vida de plenas facilidades desprovidas de frustrações. Entre as crenças que necessitamos nos desencilhar individualmente e, socialmente está em remeter em última instância ao poder judiciário a condição de fazer justiça, uma vez que o fundamento último da justiça é a violência originária, que reside nos esforços humanos de estabelecer regras, normas, leis, que limitam as potencialidades humanas. Talvez, possamos afirmar que a questão da violência é uma questão de compreensão de nossa condição natural e social, tanto quanto individual e social no mundo.
Canoinhas, 21 de fevereiro de 2014.
Dr. Sandro Luiz Bazzanella
Coordenador do Curso de Ciências Sociais
Docente do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional
Líder do Grupo de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas – Cnpq.
Líder do Grupo de Estudo em Giorgio Agamben
Argumentos apresentados em mesa redonda sobre: “A Questão da Violência”, promovida pelos Curso de Graduação de Ciências Sociais, Direito, Administração da Universidade do Contestado em 21/02/2014.

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