A QUESTÃO DA VIOLÊNCIA
NA CONTEMPORANEIDADE
Iniciemos
nosso percurso investigativo de ordem teórica e conceitual analisando o termo “violência”. Num primeiro olhar constatamos que o termo
violência apresenta-se ambivalente. Ou seja, apresenta várias definições
possíveis. Pode-se falar de violência humana; de violência física; de violência
moral; de violência natural (advindo das forças da natureza); de violência
animal, de violência argumentativa, de violência simbólica. Apesar desta condição ambivalente do termo
violência, pode-se encontrar um elemento comum, um fio condutor, que perpassa
todas estas formas e definições de violência. Assim, atos, ações de violência
estabelecem relação com a manifestação de força. Força que alguém, que um ou
mais elementos exercem sobre alguém outro, ou sobre outros.
Portanto,
numa primeira tentativa de definição, a violência inscreve-se na ação de impor
ao outro, uma determinada situação, condição de domínio, ou de subjugação. Ora, se violência implica na manifestação de
força, então, por dedução lógica,
violência é uma forma de manifestação de poder. Nesta direção, Hannah Arendt na
obra: “Sobre a Violência”, referindo as reflexões de Bertrand de Jouvenel, afirma:
“E o poder ao que tudo indica é instrumento de domínio.” “Comandar e obedecer,
sem isso não há poder”. Talvez se possa
afirmar com certa consistência que sob a perspectiva de Maquiavel, Hobbes,
Nietzsche, Foucault, o poder se efetiva
em relação. Assim, para tais pensadores, o homem é animal que se constitui na relação de poder. Dirá
peremptoriamente Nietzsche: “O homem é um animal de vontade de poder”.
Por
outro lado, reconheçamos que há ações de violência que nos chocam: um
assassinato a sangue frio. Uma criança no meio de um campo de batalha, mulheres
agredidas pelos seus parceiros, acidentes automobilísticos com vítimas fatais,
vendavais, tremores de terra e, tantas outras situações. Mas, também há
situações de violência que nos deixam admirados, extasiados, por exemplo: A
erupção de um vulcão, a velocidade dos ventos de um ciclone, as impetuosas
ondas do mar que batem contra os rochedos da costa, uma foto de trágico
acidente estampado na primeira página de um jornal. O linchamento de um
estuprador, de um pedófilo. Nestas condições é preciso reconhecer que também
nossos sentimentos em relação a violência se apresentam ambivalentes.
Quando
nos deparamos com a questão da violência é preciso ter em conta algumas
questões de fundo: a violência é uma força natural, inscrita na natureza e presente
em todos os seres vivos? Afinal, quem de nós ontem, hoje, agora a pouco, não
cometeu um ato de violência, quando ao se alimentar fez uso de outras formas de
vida vegetal, ou animal para saciar a fome? Ou dito de outro modo, para manter
nossas vidas, eliminamos, condenamos a morte outras formas de vida e, nem por
isso ficamos, ou guardamos remorsos, ou “peso” em nossas consciências. Se
diante desta provocação você leitor responder: “Sim, mas é natural que seja
assim”, então sua defensiva resposta e/ou posicionamento confirmará o argumento,
de que a violência esta circunscrita no seio do reino da necessidade, da
natureza e, enquanto houver vida, seres humanos, mundo, haverá necessariamente
violência. Ou ainda, a paz, a ordem social, o poder coercitivo do Estado nada
mais são do que formas, camisas de força, que impedem o livre transcurso da
condição natural da violência. Lembram de Hobbes (!?) “Nós criamos por contrato
social o Estado por que a vida em estado natural é miserável, pobre, dolorida,
curta e violenta. Foi para “fugir” destas condições que vendemos nossa
liberdade em estado natural por um pouco de segurança no estado contratual”.
Sob
tais perspectivas, situemos a questão definitivamente: “A violência é inerente
a natureza humana, ou é algo constitutivo da condição humana”? Então vejamos: Se
assumirmos o argumento de que a violência é próprio da natureza humana, então,
temos que aguardar os avanços da engenharia genética para que identifique o
gene, ou os genes da violência e, extirpando-os teremos seres humanos dóceis,
bondosos, ansiosos pela paz. Se nos definirmos pela violência como manifestação
própria da condição humana, então nossa aposta esta nas convenções sociais, na
educação, na estrutura jurídica, no desenvolvimento da capacidade racional como
forma de nos situarmos e convivermos em equilíbrio civilizatório.
Mas,
a resposta à estas questões não é tão simples como pode parecer. Vejamos o que
nos dizem os biólogos da evolução. Iniciemos
pelo Dr. Jeffrey A. Lockwood, especialista norte americano em insetos e,
que estudou durante longos anos o comportamento dos grilacridideos. Dr. Jeffrey
em artigo publicado na Revista Piauí em maio de 2012 intitulado: “A Natureza da
violência”, nos apresenta os seguintes argumentos, a partir do pressuposto de
que a o desejo de viver se transforma em disposição para matar.
1.
A principal defesa dos insetos é uma série de
características que evoluíram para ajudá-los a evitar serem devorados pelos
seus predadores, fazendo-os passar despercebidos. Sua cor geralmente assume
matizes de tons terrosos e opacos.
2.
Insetos considerados sociais como formigas e
abelhas desenvolveram ferrões, e glândulas produtoras de veneno. Órgãos que
evoluíram formando estruturas para matar. Dispostas à defenderem o ninho ou a
colméia estão aptas à matar e a morrer.
3.
No reino da natureza quando o preço é a vida,
seja física ou genética, a abordagem do “nada a perder” é a estratégia viável.
4.
Dividimos com as outras espécies da natureza
uma realidade incômoda, a capacidade de relacionalidade viva, para lutar quando
sentimos medo, atacar com raiva, nos retorcer-nos em dor e, matar se necessário
for para salvar a própria vida.
5.
A violência serve como estratégia relacional
para encontros entre a maioria das espécies. Também os seres humanos participam
desta condição e, para a maioria dos seres humanos, os itens essências da vida,
comida, abrigo, roupa e autoestima podem ser adquiridos por meios violentos, ou
não violentos. Esta segunda condição representa os esforços civilizatórios e
sociais.
Por
sua vez o pesquisador também norte-americano Steven Pinker, estudioso das
origens do comportamento agressivo do homem também em artigo publicado na
Revista Piauí de março de 2013, intitulado: “Violência Ancestral: As origens do
comportamento agressivo do homem”, assim se posiciona:
1.
Hoje, qualquer tentativa de compreensão da
violência humana tem de começar pelas análises que nos legaram o filósofo
inglês Thomas Hobbes e o biólogo pai da teoria da evolução Charles Darwin.
2.
Hobbes e Darwin nos legaram uma síntese
cínica da vida em estado natural. Darwin, com a sobrevivência dos mais aptos e,
Hobbes, com a vida solitária, pobre, sórdida, brutal e curta do homem.
3.
Ninguém quer viver num mundo hobbesiano,
darwiniano, maquiavélico. Com ajuda destes homens de ciência é possível
refletir sobre a lógica adaptativa da violência e o que ela permite predizer
sobre os tipos de impulsos violentos que podem ter evoluído como parte da
natureza humana.
4.
Portanto, a pergunta central é: Porque razões
evoluíram organismos que visam fazer mal a outros organismos? A natureza se
caracteriza por se apresentar numa grande escaramuça sangrenta?
5.
O que se constata na natureza é que quando
uma tendência à violência evolui, ela é sempre estratégica. Os organismos são
selecionados para mobilizar a violência somente em circunstâncias nas quais os
benefícios esperados superam os custos previstos.
6.
Estudos arqueológicos dão conta de que a
violência se encontra presente desde os primeiros estágios cada carreira humana
a milhões de anos atrás. Manifestações de violência são comuns em primatas e,
isso reforça a suspeita de que a competição violência entre homens tem uma
longa história em nossa caminhada evolutiva.
Porém,
é preciso reconhecer que tais questões não respondem em sua totalidade a
questão da violência nas sociedades contemporâneas, mas de todo modo se apresentam
como indicativos da complexidade que envolve a questão da violência.
Mas,
como compreender as recorrentes manifestações de violência na atualidade? Agora
sob argumentos de ordem filosófica e sociológica, iniciaremos nossas
considerações, amparados nas idéias da filósofa e politóloga alemã Hannah
Arendt em sua seminal obra: “Sobre a Violência”
Para
Arendt, estamos inseridos numa cultura da banalização da violência. Talvez em nenhum
outro momento de nossa civilização ocidental matamos tantos seres humanos em
guerras, entre países, povos, culturas, em conflitos localizados, entre
indivíduos movidos por motivos banais: um par de tênis, uma desavença no
trânsito, uma discussão na fila do banco, do pronto socorro, na saída da boate,
por alguns reais para a compra de drogas e, demais situações afins. O paradoxo
do nosso tempo reside exatamente aqui, na medida em dispomos de centenas de
milhares de leis, códigos e prerrogativas jurídicas que surgiram com o intuito
de proteger a vida, matam-se por motivos os mais diversos, mata-se como
condição inerente ao governo da vida em sua dimensão meramente biológica.
Na
perspectiva analítica do estudioso do pensamento Arendtiano, Celso Lafer, em
seu prefácio à tradução brasileira da obra: “Sobre a Violência” (2009) afirma:,
“Arendt mostra como o século XX encontrou na violência e na multiplicação de
seus meios pela revolução tecnológica o seu denominador comum, uma intromissão
da violência criminosa, em larga escala, na política. São exemplos
paradigmáticos dessa intromissão os campos de concentração, o genocídio, a
tortura e os massacres em massa de civis nos conflitos bélicos.” (página 10).
Ainda segundo Lafer para a polítóloga “a
violência e a sua glorificação se explicam pela severa frustração da faculdade
de agir no mundo contemporâneo, que tem suas raízes na burocratização da vida
pública, na vulnerabilidade dos grandes sistemas e na monopolização do poder,
que seca as autênticas fontes criativas. O decréscimo do poder pela carência da
capacidade de agir em conjunto é um convite à violência” (página 12).
Diante deste conjunto de argumentos e, das
situações cotidianas de violência que vivenciamos, talvez seja oportuno,
referenciarmos o adágio de Freud, que apontou para o fato de estarmos imersos
num mal-estar civilizatório, que se apresenta através dos estilos de vida que
contemporaneamente assumimos.
O desenvolvimento técnico e científico
alcançado pela sociedade nos últimos séculos reduziu distâncias espaciais e
temporais. Expandiu quase que ilimitadamente a capacidade de comunicação entre
povos e países. Alcançou níveis produtivos jamais vistos. Avanços na medicina
aumentaram a expectativa de vida. O mundo transformou-se numa aldeia global. Se
todas essas conquistas fossem pré-condições da felicidade e da liberdade, então
poderíamos afirmar que nunca tivemos a oportunidade de sermos tão livres e
felizes como hoje.
Mas, parece que há algo de errado com a
felicidade humana, os fatos cotidianos evidenciam paradoxos e contradições
inerentes à hegemônica visão de mundo em curso. Alguns
exemplos podem nos auxiliar nesta direção: nossa capacidade de comunicação
parece não conseguir superar o isolamento e a incomunicabilidade dos
indivíduos. Nossa capacidade produtiva demanda necessariamente capacidade
consumidora, exigindo relações de descartabilidade em todas as esferas, seja
com a natureza, com os semelhantes ou consigo mesmo. Em nossa crescente
individualização, preferimos reduzir nossa liberdade à segurança de escolhas
predeterminadas dos estilos de vida padronizados. Avalia-se a felicidade dos
indivíduos de acordo com o crescimento do produto interno bruto dos países.
Anseia-se pela longevidade vital, mesmo que isso implique a mediocridade de uma
vida desprovida da capacidade de questionamento e de sua responsabilidade
coletiva com as futuras gerações.
Neste contexto, parece-nos sintomático que
explosões individuais de violência, venham se mostrando recorrentes nas duas
últimas décadas, em nossa região, no Brasil, na Europa, nos Estados Unidos.
Essas ações caracterizadas por significativa brutalidade expressam o espírito
de nosso tempo: o vazio de sentido existencial em que se encontra inserida a
sociedade dos indivíduos. Nietzsche, em meados do século XIX, nos advertia: “O
niilismo radical é a convicção de uma inconsistência da existência quando se trata daqueles
valores que se reconhecem como os mais altos, os valores superiores, a serviço
dos quais os homens devem viver...”
Diante destas questões urge questionarmos:
não seria a brutalidade das ações de violência manifestações de efeitos
colaterais da dinâmica civilizatória contemporânea, que atomiza e,
responsabiliza única exclusivamente os indivíduos por seus fracassos? Ou ainda,
seria a incapacidade dos indivíduos conviverem com limites e frustrações diante
de uma sociedade plena de propostas e oportunidades de consumo imediato, de
felicidade fácil?
A crescente individualização das pessoas na
medida da perda de seus referenciais societários ocasiona o esmorecimento dos
pressupostos morais e éticos que amparam as ações individuais na vida em
coletividade?
A teatralidade e a brutalidade da ação não
seriam formas de repúdio aos imperativos da sociedade dos indivíduos? Ou ainda,
a condição de sair do isolamento, do anonimato, utilizando-se dos recursos da
sociedade do espetáculo em que ávidos consumidores necessitam contemplar
instantaneamente imagens e, consumir avidamente novidades de toda ordem para
inda se sentirem vivos?
O mundo é resultado de nossos posicionamentos
políticos e éticos na busca do bem-viver, da felicidade, de um sentido para a
vida. Ou então, como nos diz o sociólogo Zygmunt Bauman, fazendo referência em
uma de suas obras à uma frase dita por Theodor Adorno em algum momento de seus
escritos: “A ausência de nossa capacidade de questionamento é paga com a dura
moeda do sofrimento humano”.
Para uma variável reflexiva final. A possível
resolução da questão da violência passa entre inúmeras variáveis, pelo
reconhecimento que não será exclusivamente pelo aumento de força policial
coercitiva, ou de promulgação de mais leis, numa espécie de inflação jurídica
de nossas vidas. Mas, sobretudo, pelo desvencilhamento de mitos, crenças,
preconceitos, estilo de vida de plenas facilidades desprovidas de frustrações.
Entre as crenças que necessitamos nos desencilhar individualmente e,
socialmente está em remeter em última instância ao poder judiciário a condição
de fazer justiça, uma vez que o fundamento último da justiça é a violência
originária, que reside nos esforços humanos de estabelecer regras, normas, leis,
que limitam as potencialidades humanas. Talvez, possamos afirmar que a questão
da violência é uma questão de compreensão de nossa condição natural e social,
tanto quanto individual e social no mundo.
Canoinhas, 21 de fevereiro de 2014.
Dr. Sandro Luiz Bazzanella
Coordenador do Curso de Ciências
Sociais
Docente do Programa de Mestrado em
Desenvolvimento Regional
Líder do Grupo de Pesquisa
Interdisciplinar em Ciências Humanas – Cnpq.
Líder do Grupo de Estudo em Giorgio Agamben
Argumentos
apresentados em mesa redonda sobre: “A Questão da Violência”, promovida pelos
Curso de Graduação de Ciências Sociais, Direito, Administração da Universidade
do Contestado em 21/02/2014.
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