O Supremo entre o Estado de direito e o Estado de
exceção
Aos 208 anos, o STF é visto por alguns como
maduro em sua independência. Para outros, a parcialidade em alta debilita a
República e a democracia
Por Hylda
Cavalcanti, da Revista do Brasil para RBA
O Supremo Tribunal Federal (STF) empossou em setembro a segunda
mulher na presidência, a ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha. Com 208 anos de
existência, desde que Dom João VI criou a chamada Casa de Suplicação do Brasil,
e 126 anos desde que passou a ser chamado de STF, pela Constituição de 1890, o
tribunal já abrigou 167 ministros indicados por presidentes – de Deodoro da Fonseca
a Dilma Rousseff. Sua competência como Poder da República, de fato, foi
redefinida a partir da Carta de 1988 com o objetivo de torná-lo mais próximo
dos cidadãos. Mas o Supremo, que se destacou nessa trajetória por momentos ora
dramáticos, ora gloriosos, enfrenta críticas por ser visto como uma Corte com
marcada atuação politizada, que abala o Estado democrático.
A questão
levantada por operadores do Direito, juristas e cientistas políticos é se isso
foi diferente em algum momento. Um dos pontos mais negativos da história do
STF, com forte componente político, foi a contribuição do tribunal para a
entrega da militante Olga Benário às forças nazistas de Hitler, em 1936. Judia,
grávida, casada com o líder do Partido Comunista do Brasil (então PCB) Luís
Carlos Prestes, ela foi, com a aprovação da Corte, enviada a um campo de
concentração nazista para ser morta numa câmara de gás. Segundo historiadores,
apesar de a petição de habeas-corpus ter sido considerada peça jurídica
perfeita, o pedido foi negado sem sequer ter sido apreciado pelo colegiado.
O mesmo tribunal deu respaldo à deposição de João Goulart, em
1964, após o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, declarar a vacância
da Presidência da República na madrugada de 2 de abril, quando Jango ainda se
encontrava em território nacional. Como desdobramento do golpe, o regime
aparelhou a Corte, ampliando de 11 para 16 o número de membros e limitando sua
capacidade de julgar decisões dos generais, como cassações de mandatos. O
Supremo voltou a ter 11 membros em fevereiro de 1969, com a edição do Ato
Institucional nº 6 (AI-6). Com a saída de Hermes Lima, Evandro Lins e Silva e
Victor Nunes Leal, aposentados compulsoriamente, e de Antônio Carlos Lafayette
de Andrada e Antônio Gonçalves, que renunciaram em protesto, o regime passou a
ter o controle do colegiado.
Um julgamento marcante
ocorreu há pouco mais de seis anos. Em abril de 2010, o STF rejeitou a revisão
da Lei de Anistia por sete votos a dois. O voto do relator Eros Grau, que
alegou não caber ao Judiciário rever o acordo político feito para a transição
da ditadura à democracia, foi seguido por Cármen Lúcia, Ellen Gracie, Gilmar
Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluso. Apenas Ricardo
Lewandowski e Carlos Ayres Britto consideraram que crimes contra a humanidade
(como a tortura praticada por agentes do Estado) não podem ser objetos de
anistia e nem de prescrição.
Falsificação
Não se pode deixar de
lembrar, no meio dessa longa história, que os ministros acumularam
entendimentos positivos para os direitos humanos, como a aprovação das
pesquisas com células-tronco, a união estável entre homossexuais, a adoção de
crianças por casais do mesmo sexo, a autorização para aborto no caso de fetos
anencéfalos. E também que, em meio ao desafio de ter recebido, somente no
primeiro semestre deste ano, 44 mil processos, tem buscado técnicas de gestão e
instrumentos para tornar os julgamentos mais céleres. “Um quantitativo difícil
de darmos conta se não tomarmos medidas mais efetivas de racionalização dos
trabalhos”, ressalta o ministro Luís Roberto Barroso.
Mas não sairá da memória
jurídica e política nacional o episódio em que a Corte, em 2012, fez amplo uso
da teoria do domínio do fato, durante o julgamento do mensalão, cuja aplicação
no Brasil é contestada pelo seu próprio criador, o alemão Claus Roxin. A tese é
vista como uma aberração por vários juristas. A doutora em filosofia jurídica
Katarina Peixoto, que estuda a obra de Roxin, apresentou uma explicação para a
distorção da tese. “Se um juiz ou desembargador brasileiro prescrever uma
receita de ovo frito e, com base nela, autorizar a que se enjaule um cidadão
antipático à opinião do Jornal Nacional e da revista Veja, por que razão ele
não estaria autorizado a fazê-lo?”, questionou, em texto publicado em sua
página no Facebook.
A filósofa lembrou que
existe interpretação e existem teorias da interpretação, as chamadas
hermenêuticas, assim como existem distinções de método. “Essas coisas não
anulam e nunca anularão a ruptura entre o verdadeiro e o falso e, se o fizerem,
nem são interpretação, nem hermenêutica, mas pilantragem, quando não, crime,
caso envolvam violação documental e ideológica, tipificadas no código penal, ou
o uso mal intencionado e vil de enunciados textuais, a fim de cometer atos sem
amparo legal.”
Para Katarina, o
conceito empregado aqui é uma falsificação do que Roxin produziu. “Na sua
versão brasileira, o que ocorreu foi mais grave, em termos lógicos e penais, do
que uma dublagem: a arregimentação serviu para se inventar uma teoria penal da
responsabilidade objetiva que não visa ao que manda a filosofia penal moderna e
o direito penal brasileiro.”
Num tempo em que se
debate o judicialismo exacerbado de questões legislativas, em especial sobre a
correição ou não das delações premiadas na Operação Lava Jato, e visões
diversas sobre os chamados “justiceiros da magistratura” – termo criado a
partir da postura do ex-presidente do Supremo Joaquim Barbosa, que renunciou ao
cargo em maio de 2014, em meio a várias declarações de cunho político e até
confissões de ter omitido fatos na peça jurídica do mensalão –, não se sabe se
os tempos serão de correção ou de rumos mais sombrios.
O caso do ex-presidente
da Câmara Eduardo Cunha (PMDB-RJ) – que se tornou réu em duas ações na Corte, e
desde que foi cassado os casos foram remetidos para a primeira instância – foi
outro a deixar o tribunal arranhado. Houve demora em avaliar as denúncias
contra Cunha para transformá-lo em réu e também para decretar o seu afastamento
da presidência. A justificativa, por parte dos ministros, de supostamente se
evitar um confronto entre poderes, não convenceu observadores e cientistas
políticos, que sabem que, sempre que quis, o tribunal não se furtou a julgar
casos envolvendo o Executivo e o Legislativo. As críticas vão de omissão a
cumplicidade – o que permitiu a Cunha ter tempo de acolher o pedido de
impeachment de Dilma e ainda liderar a votação pela Câmara.
Visões de mundo
A ministra Cármen Lúcia,
que assumiu a presidência para o biênio 2016-2018, costuma afirmar que “o
compromisso dos juízes é com a toga e os cidadãos” e não com os políticos que
os indicaram ao cargo, embora acrescente que não se oponha a que esses
magistrados adotem visões de mundo. Mas a cientista política Maria Teresa Sadek
não tem dúvida: “O Judiciário é político sim, sempre foi. O que não pode é ser
partidário”, afirmou, em entrevista recente ao jornal O Estado de S. Paulo.
Para ela, que avaliou o
papel da Justiça no processo do impeachment de Dilma Rousseff, os
desdobramentos da Operação Lava Jato e a judicialização de questões
legislativas são reflexo da Constituição de 1988. Maria Teresa atribui o
chamado protagonismo do Judiciário em questões pertinentes ao Legislativo como
omissões observadas por parte do Congresso. E considera razoável que, se houver
uma fragilidade em algum dos outros poderes, o STF seja chamado a atuar.
Outro questionamento
entre os observadores do STF tem sido o fator opinião pública, que para Maria
Teresa é muito levada em consideração, mas não é determinante para os
julgamentos. “O juiz, hoje, tem muito mais consciência das consequências dos
seus atos. Não temos mais o juiz que se fecha em uma redoma e não se importa
com o que acontece do lado de fora” ressalta.
Nem todos pensam dessa
forma. O jurista Marcello Lavenère, ex-presidente do Conselho Federal da Ordem
dos Advogados do Brasil (OAB) e até hoje membro emérito do órgão, aponta no STF
uma extrema dificuldade em enfrentar temas levados ao seu conhecimento. “Essa
dificuldade começou com o mensalão, quando assistimos a uma cobertura da
imprensa semelhante às de Olimpíadas. Ligávamos a televisão e durante toda a
tarde e parte da noite os canais estavam transmitindo o julgamento”, observou,
em entrevista ao jornal Sul21.
O julgamento terminou
com a condenação à prisão de importantes figuras políticas no país, como o
ex-ministro da Casa Civil José Dirceu e do ex-deputado José Genoino. Sobre a
Corte recai, até hoje, a crítica de ter permitido, por meio da teoria do
domínio do fato, a condenação sem provas e neutralização da defesa.
Lavenère avalia que a
exposição à mídia é ruim para o Judiciário. “Não é bom que os magistrados
estejam quase todos os dias sendo entrevistados. Em muitos casos os vemos sendo
homenageados como o do ano, o de ouro, o pop star, como é o caso do juiz Sérgio
Moro”, diz. Segundo ele, essa permeabilidade à mídia compromete a rigidez e o
equilíbrio da Justiça. “Não podemos nos esquecer que a Justiça é simbolizada
por uma deusa que tem os olhos vendados e uma balança na mão. Os olhos
vendados, para não fazer acepção de pessoas, e uma balança na mão para não ter
pesos e critérios de ponderação diferentes”, lembra.
Da dependência à ousadia
Para Ricardo
Lewandowski, que acaba de deixar a presidência, a história das últimas décadas
mostra independência dos integrantes do STF. O ministro, que deixou o comando
do tribunal acrescentando à sua biografia a presidência do julgamento do
impeachment de Dilma Rousseff no Senado, também é responsável por decisão que
transferiu do plenário da Corte para duas turmas (cada uma com cinco
magistrados) julgamentos de deputados e senadores. A medida contrariou
parlamentares, que observam serem necessários menos votos para uma condenação.
Se no plenário são ao menos seis votos para uma decisão majoritária, em uma
turma bastam três para que o julgamento seja definido. Já os presidentes da
Câmara e do Senado continuam sendo julgados pelo plenário do tribunal.
A polêmica atual diz
respeito à Lava Jato, ao entendimento sobre a validade ou não das delações
premiadas e das prisões temporárias e à dubiedade de alguns magistrados quando
citados em ilações ou conversas durante essas delações. O relator do processo
no colegiado, ministro Teori Zavascki, chegou pedir satisfações ao juiz federal
Sérgio Moro, que conduz a operação no Paraná, por ter gravado sem autorização
conversas telefônicas entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a então
presidenta, Dilma Rousseff. Foi aplaudido pelos que acham que os juízes da mais
alta Corte devem ser juízes e não misturar política com Justiça – mas a medida
não resultou em consequência para Moro, que teve a finalidade de impedir a ida
de Lula para a Casa Civil, o que ajudaria Dilma a recompor a base do governo.
Katarina Peixoto
considera que as violações da Lei Orgânica da Magistratura observadas no rumo
das investigações e nas decisões de Moro – “Violações como tais reconhecidas
pelo próprio TRF-4”, afirma – levam ao que ela chama de “exceção jurídica”. Foi
o que o ex-ministro da Justiça de Dilma Eugênio Aragão chamou de “vale-tudo”,
ao comentar decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que manteve o
arquivamento de uma representação contra o juiz do Paraná. “A decisão afirma
que em tempos excepcionais as leis são excepcionais e não precisam ser
observadas. Parece que todo o Direito brasileiro foi revogado pelo TRF, que é
quem supervisiona a área de Curitiba, para dizer que Moro pode tudo”, afirmou
ao Diário do Centro do Mundo.
A Lei Orgânica, assinala
Katarina, veda o expediente de grampear advogados e espionar a relação entre
esses e seus clientes. Para a estudiosa, enganam-se os que pensam que isso vai
parar ou que isso é só contra o PT e seus dirigentes. “Essa ingenuidade não tem
o menor cabimento, quando juízes não se envergonham de falsificar teorias,
prender sem provas e dizer que a falta de provas é motivo para prender”,
critica. “Pode ser analfabetismo funcional, pode ser ignorância, pode ser
miséria intelectual carregada do câncer atávico, residual, da cultura
bacharelesca, de colônia escravagista. Há muitas hipóteses que exigem o
acompanhamento judicioso do que juízes dizem que usam como fundamento de suas
decisões e o que procuradores e promotores usam para fundamentar suas
denúncias.”
O impeachment de Dilma
também foi objeto de vários recursos contestando a sua inconstitucionalidade,
devido à ausência de crime de responsabilidade. A Corte, no entanto, proferiu
sucessivas decisões permitindo o andamento do processo. Passada a fase da
votação, o tribunal terá de enfrentar, agora, a apreciação dos recursos
contestando o resultado e avaliando o mérito da ação. No final de setembro,
Lewandowski, durante evento com alunos da Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo, definiu o impeachment como “um tropeço na democracia brasileira”.
Foto: ANDRE DUSEK/AGÊNCIA ESTADO/AE
Nenhum comentário:
Postar um comentário