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| Imagem: Pintura de Philippe de Champaigne’s Vanitas (c. 1671) |
PROVOCAÇÕES
SOBRE A HERMENÊUTICA E A CULTURA JURÍDICA BRASILEIRA
Mitos e ideologias:
Sabemos todos que o discurso está impregnado de mitos de fundação e de
utopias de justificação. O mito é o inefável, é aquilo que não costuma ser
problematizado dentro da própria visão de mundo sob a qual se encontra; é o
conjunto de arquétipos junguianos compartilhados de geração em geração. A
utopia é o inatingível, o horizonte que avança à medida em que o sujeito
caminha. Não raras vezes, mitos e utopias podem ganhar contornos ideológicos,
no sentido marxista do termo,[i] impedindo
que as pessoas tenham efetiva consciência da própria condição. Ao mesmo tempo,
porém, eles dão compleição à forma de vida, ensejando a base em que os sujeitos
surgem e a socialização é promovida. A utopia nos obriga a andar, dizia Eduardo
Galeano.
No âmago da ciência, encontra-se, por exemplo, a suposição da constância
do mundo – o postulado da uniformidade da natureza -, já problematizado por
David Hume com a sua contundente crítica às inferências indutivas, retomada por
Karl Popper ao tratar da ‘assimetria dos enunciados universais’.[ii] Da
reiteração da experiência não se pode extrair, em termos lógicos, nenhuma lei
universal e atemporal, sendo indemonstrável que o futuro repetirá o passado.
Parafraseando Hume, dizia Wittgenstein “Que o sol nascerá amanhã é uma
hipótese, quer dizer, não sabemos se nascerá.”[iii] A
ciência também está impregnada pela ilusão do progresso, pelo sonho de que
algum dia Prometeu será desacorrentado. Condorcet chegou a acreditar que a
ciência venceria a morte; é mais provável, porém, que ela dê ensejo à
tanatopolítica de que falavam Foucault e Espósito;[iv] ou
à colonização do ‘mundo da vida’ pela lógica tecnocrática dos sistemas,
conforme alerta de Habermas e Galimberti.[v]
O discurso jurídico também está repleto de mitos de fundação e de
utopias de justificação
Na sua base, encontra-se a fantasia do contrato social, a suposição de
que, em algum passado imemorial, os sujeitos teriam celebrado um pacto,
negociando a própria liberdade anárquica e a das gerações que se seguiriam,
superando o estado de natureza em prol do estado de cultura. Não há necessidade
de muito esforço para se constatar o caráter altamente mitológico desse
imaginado ‘momento de fundação’: um pacto avençado por sujeitos não
socializados, que não teriam nascido em famílias ou clãs, verdadeiros Moglis acorrendo
de florestas incomunicáveis.[vi] Um
contrato que pressuporia o pacta sunt servanda, de modo que a
coerção jurídica seria anterior à fundação do próprio Direito! Cuidou-se de
mito útil, dado que serviu de argumento para se impor limites ao exercício do
poder estatal, como bem ilustram as conhecidas obras de Locke, Rousseau,
Hobbes, dentre outros. Também é ilusória a própria noção de cultura, enquanto
leitura linear da história, como se fosse destituída da ignóbil violência. As
duas grandes guerras mundiais e as contínuas guerrilhas do nosso cotidiano
bastam para deitar por terra qualquer ilusão, já sabia Walter Benjamin com o
seu angelus novus.
Atente-se ainda para mitológico ‘poder constituinte’, como se fosse
sempre o fruto de um momento de lucidez histórica. A caminho de Ítaca, Ulisses
decide se acorrentar a fim de impedir ser seduzido, logo depois, pelo canto das
sereias – eis a bela alegoria de Jon Elster.[vii] Nada impede, todavia, que
Constituições surjam da histeria histórica, nada impede que Constituições sejam
fascistas, racistas, machistas, preocupação que animou, a seu modo, a obra de
Otto Bacchof, quem tentou substituir o mito constituinte pelo mito de um
direito atemporal, fundado na reta razão (retomada do jusnaturalismo de
Grocius).[viii] Para Bachof, as cortes
constitucionais deveriam controlar a própria validade da Constituição e do seu
procedimento de elaboração. Com isso, as Cortes Constitucionais é que passariam
a ser Assembleias Constituintes perenes (muitas vezes, já agem como se
fossem!), tal qual déspostas esclarecidos ou ditadores filósofos platônicos.
Igualmente mitológico é o tal do ‘saldo negativo de violência’, invocado
na obra de Beccaria, e ainda hoje utilizado como argumento de justificação do
exercício do poder punitivo, cuide-se de Jakobs, Roxin, Feuerbach, Herbert Hart
ou Ferrajoli. Trata-se da suposição indemonstrável de que a violência estatal
reduziria o estoque total de violência social… Se não houvesse a sanção
criminal, dizia Hobbes, o mundo seria ainda mais violento, prevalecendo a força
dos poderes hegemônicos de ocasião.
Ademais, convém atentar também para o mito da ‘fungibilidade do juiz’,
‘aplicação da lei ex machina’, juiz-boca-da-lei (le juge n’est
plus uniquement la bouche de la loi)[ix]. Por um buraco, a lei; n’outro, os
fatos. Narra mihi factum, dabu tibi ius… Cuida-se daquela
suposição de que, dados os fatos e dada a lei, diferentes magistrados
prolatariam sentenças em tudo idênticas, salvo algum defeito na máquina (juiz
impedido ou suspeito). Imagina-se, assim, que a criação das leis seria o espaço
da vontade, o espaço da política. Por seu turno, aplicá-las em um caso
particular seria o momento da razão, do conhecimento, como se a atividade dos
magistrados fosse meramente técnica e despida de valoração, de gostos, de
opções, como se a hermenêutica não fosse criativa, como se realmente fosse
possível a alguém esvaziar-se de si, servindo como neutro efetivador de
escolhas que o antecederiam… Olvida-se, com isso, que o direito aproxima-se
mais da arquitetura do que da engenharia; está mais próximo do chef de
cozinha do que do nutricionista, está mais perto da retórica do que da lógica
deôntica, mais perto da arte do que da ciência, mais perto da razão
comunicativa do que da razão calculadora instrumental. A arquitetura transcende
a engenharia, pois não basta que o prédio permaneça em pé, ele deve ser belo,
funcional, convidativo e confortável.
A beleza não se permite aprisionar em algoritmos
Dentre vários outros, pode-se mencionar ainda o mito da ‘defesa social’,
desnudado por Alessandro Baratta.[x] Imagina-se, assim, que o exercício
do poder deva ser necessariamente presumido como legítimo; que o delito deva
sempre ser reconhecido como maléfico para a sociedade e o delinquente como uma
espécie de antígeno, fonte de perigo ou elemento disfuncional em um imaginado
‘corpo social’ até então saudável e puro; a suposição de que a sociedade seria
pacífica, não houvesse o crime; a suposição de que humanos são calculadoras
hedonistas, sopesando prazer e dor a todo instante (utilitarismo); a suposição
de que a lei é elaborada tendo por base o ‘interesse público’ ou o ‘bem comum’,
quando não raro é projeção de grupos de interesses e de interesseiros.
E as utopias? Dizia Derrida que a justiça seria uma aporia, eis que –
apesar de inatingível – deve ser buscada a todo instante. “Acredito que
não há justiça sem essa experiência da aporia, por impossível que seja. A
justiça é uma experiência do impossível. Uma vontade, um desejo, uma exigência
de justiça cuja estrutura, não fosse uma experiência da aporia, não teria
nenhuma chance de ser o que ela é, a saber, apenas um apelo à justiça. Cada vez
que as coisas acontecem ou acontecem de modo adequado, cada vez que se aplica
tranquilamente uma boa regra a um caso particular, a um exemplo corretamente
subsumido, segundo um juízo determinante, o direito é respeitado, mas não
podemos ter certeza de que a justiça o foi.”[xi]
As palavras e as coisas:
Ora, a hermenêutica está fundada em complexos dilemas epistemológicos e
seus problemas de autorreferência (a epistemologia pressupõe a capacidade de se
conhecer o conhecimento, justamente o que lhe cabe investigar). Ela
depende das concepções sobre a verdade – veritas, aletheia, emunah.
Há epistemologias realistas, construtivistas, céticas. Pode-se imaginar a
verdade como uma espécie de retrato do mundo, a exemplo da teoria pictórica do
‘primeiro’ Wittgenstein, ou a exemplo das premissas acolhidas por Aristóteles
ou Tomás de Aquino (verdade como adequatio intellectus ad rem),
como se as palavras pudessem mesmo estar pelas coisas.[xii] Pode-se também imaginar, ao
contrário, a verdade como uma construção social, como um mero problema de
consenso, de modo que a própria noção de racionalidade seria fruto de uma
específica cultura, não podendo ser utilizada como ponto arquimediano, como régua
para se avaliar culturas alheias em que essa noção não esteja presente (debate
entre Peter Winch e Evans-Pritchard, por exemplo).[xiii]
Com pontuais exceções – e Schrödinger é o exemplo mais conhecido -, os
físicos tendem a esposar uma concepção realista da epistemologia, como se lhes
fosse dado descortinar o mundo, tal como o mundo é. Já os estudiosos das
humanidades aproximam-se, no geral, das concepções construtivistas, dado que a
própria ciência se torna um problema a ser investigado. As perquirições de
Robert Merton ou de Peter Burke[xiv] são apenas um exemplo disso.
O realismo apaixona-se por equações e fórmulas, diante da suposição de
que os números interditariam a ambiguidade.[xv] Os construtivistas notam, por seu
turno, que quase tudo é um problema de consensos – ou paradigmas, como preferia
Thomas Kuhn -, de modo que a diferença entre episteme e doxa resta
esmaecida. A episteme seria o saber meditado, técnico,
profundo, sistemático; a doxa seria o senso comum, no geral
incapaz de se colocar em questão. Para uma concepção construtivista da verdade,
a episteme seria apenas uma doxa envernizada;
a diferença seria de grau, e não de essência. D’outro tanto, os construtivistas
sabem que, no âmbito da ciência humana, descrever fatos é cria-los, como já
anunciada William Thomas: “se as pessoas definem certas situações como
reais, elas são reais em suas consequências!”
No âmbito das humanidades, enfatiza-se também a diferença kantiana
entre noumenico e phenomenico, dado que não
lidamos com o mundo, tal qual é. Lidamos com um mundo filtrado pelas sensações
e organizado pela psique, sob determinadas adumbrações, perspectivas e
paralaxes. Quando não há nenhum animal na floresta, a queda da árvore produz
som? Ondas sonoras, sem dúvida que sim. Mas, o som pressupõe algum ser
senciente capaz de ouvir…
Convém gastar um pouco de tinta ou pixels com isso.
No ‘Tratado Lógico’, Wittgenstein imaginou ser possível obter uma
linguagem artificial, cuja estrutura lógica correspondesse à estrutura lógica
do mundo. Do mesmo modo como uma gravura poderia retratar uma paisagem – ainda
que de modo estilizado e caricato -, a linguagem poderia retratar a lógica do
Real. Seria nonsense, pensava Wittgenstein, falar da cor de um
som ou do perfume da raiz cúbica de 27. Com isso, ingentes esforços foram
promovidos em busca dessa pretensa redução de ambiguidades, em busca de uma
espécie de esperanto científico, que permitisse aos homens de ciência falar a
mesma língua.
Sob esse ideário, aprender Direito seria o mesmo que aprender‘juridiquês’, uma
fala empolada, incompreensível aos não iniciados
Ao invés do confuso termo ‘fato gerador’, dever-se-ia falar em ‘fato
jurídico tributário’… Sem dúvida que as proposições do ‘primeiro’ Wittgenstein
não admitem essa simplificação grosseira, até porque ele buscava o ‘objeto
atômico’, algo que antecederia à linguagem e, portanto, não poderia ser dito,
mas apenas mostrado. Como alguém conseguiria explicar a cor vermelha para um
cego de nascença, ou o som de uma melodia para um surdo de nascença? Certas
coisas apenas poderiam ser experimentadas, dado que as palavras quando muito
poderiam recordar uma vivência já havida. Mas, não poderiam inaugurá-las.
Para essa visão de mundo, a linguagem poderia ser depurada. Seria
possível a obtenção do significado preciso – ou do significado mais preciso
possível – de uma determinada asserção. Tudo se resumiria em uma questão de
conhecimento e de tempo… De certo modo, o juiz Hércules de Dworkin ou o
Bibliotecário da Babel, de Borges, bem ilustram essa suposição de que, com
tempo infinito, paciência infinita, distanciamento e isenção, o observador
conseguiria obter a interpretação exata, acurada, perfeita, da lei e do caso.
Com tempo infinito e paciência infinita, pode-se encontrar a ordem do caos.
Mas, como provoca Aulius Aarnio,[xvi] caso houvesse dois juízes Hércules,
já seria necessário um Hércules-de-segundo-grau. Parece mais fácil obter a
resposta correta quando se tem a última palavra e não há quem questione!
Vê-se, pois, que Wittgenstein do Tratado Lógico imaginava, então, que as
palavras poderiam estar pelas coisas, como se houvesse algum museu dos
significados, algum Hiperurano platônico (mundo das ideias), pairando por aí. E
foi justamente essa premissa que ele deitou por terra, ao redigir as
Investigações Filosóficas, anos depois, obra publicada postumamente. Afinal, a
linguagem seria um jogo, não havendo nenhum trânsito entre realidade semiótica
e a realidade ontológica. A compreensão seria sempre a tradução de signos em
outros tantos signos, em uma espécie de epifenômeno em que o próprio jogo se
apossa do jogador.
Suponhamos que cada pessoa tem uma caixa dentro da qual está uma coisa a
que chamamos ‘escaravelho.’ Nenhuma pessoa pode ver o que está na caixa de uma
outra; e cada pessoa diz que só sabe o que é um escaravelho pela percepção do
seu escaravelho. – Aqui seria possível que cada pessoa tivesse uma coisa
diferente na sua caixa. Podemos até conceber que a coisa na caixa estivesse em
transformação contínua. – Mas, se a palavra ‘escaravelho’ tivesse, no entanto,
um emprego para estas pessoas? Então este emprego não seria o de uma designação
de uma coisa. A coisa na caixa não pertence de todo ao jogo de linguagem; nem
sequer como um simples algo, porque a caixa também podia estar vazia. – Não, a
coisa na caixa é como um factor comum aos termos de uma fracção: permite simplificá-la;
o que quer que é, elimina-se.[xvii]
Com Heidegger e Gadamer, percebemos que nós, humanos, somos seres
hermenêuticos. Interpretamos tudo o tempo todo, mesmo quando o fazemos de modo
automático, inconsciente e irrefletido.
O sentido é sempre um problema de atribuição, e isso envolve também uma
espécie de jogo – aquilo que Gadamer chamava de transformação em configuração.[xviii] Vivemos a difícil relação entre a
pré-compreensão e a pós-compreensão, no âmbito de um círculo hermenêutico ou
espiral hermenêutica (como preferida Arthur Kaufmann, dado que não voltamos ao
ponto de partida, ao final da compreensão).[xix] Há preconceitos positivos e
negativos, e reconhecê-los e apartá-los depende de outros tantos
preconceitos, ad infinitum. Há pré-compreensões que facilitam
o entendimento – a exemplo da suposição de que um professor tem o que ensinar
-; há outros que a tumultuam e interditam (p.ex., o racismo, o machismo, a
homofobia, xenofobia).
Leia também: Wittgenstein e a
hermenêutica jurídica analógica
Cuida-se de epifenômeno, eu dizia. Afinal de contas, isso envolve saber
o que vem antes: o ovo ou a galinha. Envolve saber se o biscoito ou a bolacha –
decidam! – é fresquinho porque vende mais ou vende mais porque é fresquinho.
Enfim, a interpretação demandaria sempre essa relação interessante entre aquilo
que nos antecede – eis que fornecido pela tradição – e aquilo que produzimos, a
tradição que ajudamos a construir e a manter. Ao invés da busca de uma
linguagem acurada, ascética e pura, a hermenêutica deveria perseguir a
singularidade, o estranhamento, o desvelamento (aletheia heideggeriana),
pelo qual as próprias coisas se revelam, a exemplo do deslumbramento provocado
pela obra de arte…, seja a sonata de Beethoven, o Guarani de Carlos Gomes ou a
Pietá de Michelangelo. Com isso, porém, a verdade se aproxima da revelação
escolástica, e parece ganhar algumas notas de intuicionismo ou irracionalismo,
tão ao gosto da Escola de Kiel, de triste lembrança.
O fato é que Hans-Georg Gadamer buscou justamente resgatar o peso da
autoridade… aquilo que Descartes pensou ter defenestrado da história. No âmbito
das humanidades, não basta o ‘cogito ergo suum’. Pensamos o que já
foi pensado…, vivemos o que já foi vivido. Nossas angústias já foram
compartilhadas por Platão, Aristóteles, Sóflocles ou Ésquilo. Não que devamos
reproduzir as suas ideias (Sapere aude!, convocava Kant); apenas
não podemos desprezá-las ou silenciá-las. No âmbito das ciências duras, Galileu
superou Aristóteles e sua teoria do ímpeto, Einstein superou Newton/Hooke e sua
teoria da gravitação universal e é provável que o CERN supere Einstein, diante
do paradoxo EPR – Einstein, Podolsky, Rosen -, e da possível
descoberta de partículas mais velozes do que a luz. No âmbito das humanidades,
não superamos: nós dialogamos. Precisamos discutir, ainda hoje – sobretudo hoje
– a ética aristotélica, fundada na eudaimonia; precisamos
discutir a visão de mundo de Platão, de Plotino, de Bentham, de Mill, Spinoza e
assim por diante.
Não há métodos para a escolha do método. E, se houvesse, faltaria o
método para a escolha do método de escolha do método. Importa dizer: não há últimas
palavras e não há receitas de bolo para se interpretar. Até mesmo a súmula
vinculante carece de interpretação, como bem ilustra a decisão proferida pelo
min. Eros Grau, ao apreciar a reclamação n. 8.173/SP (questão envolvendo o uso
de algemas): “O enunciado da Súmula Vinculante n.
14 – textonormativo sujeito a interpretação, tal e qual quaisquer textos normativos – não seaplica à hipótese dos autos.”[xx] Não tarda, alguém ainda irá
propor a súmula super-vinculante, ou vinculante de segundo grau!
Não há como alguém criar um manual: como compreender acuradamente as
obras de arte, como apreciar a boa música! Aprenda em cinco lições! Claro que
isso não significa que não haja critérios. Há. E são esses critérios que fazem
com que alguém possa distinguir a flauta mágica de Mozart de qualquer outra
música, ainda quando tocada por diferentes intérpretes… São esses critérios que
permitem concluir que, ainda que submetido a distintas interpretações e
releituras, ‘Os miseráveis’ de Victor Hugo não se confundem com o livro
‘cinquenta tons de cinza’. Mas, cada execução, cada interpretação carrega sua
singularidade, suas notas peculiares. Não há ‘a verdadeira’, ‘pura’, ‘exata’
execução de uma sinfonia, tanto quanto não há a exata, acurada e perfeita
intelecção de uma lei.
Mas, convém repetir: há critérios!
Há leituras melhores que outras. Se é fato que a compreensão de uma
ironia ou do sarcasmo alheios depende de se descortinar a intenção de quem
fala; também é certo que ninguém pode empunhar uma suástica, alegando tratar-se
de um símbolo hindu de paz e amor… O significado compartilhado socialmente não
é esse, nem pode ser este, diante de tanta ignomínia produzida com seu emprego.
De duas, uma. Ou é alguém com problemas de socialização – dado não conhecer
algo que é consensual, na cultura -, ou mente. Tertium non datum. Melhor
dizendo: ainda que a compreensão dos símbolos dependa do consenso, ainda que a
linguagem seja polissêmica, é fato que ela também possui certas notas de
objetividade, de modo que o significado não fica à disposição do intérprete.
Sabia Arendt, o totalitarismo começa quando se imagina que tudo é
possível. É melhor, portanto, uma concepção mitológica de ‘verdade jurídica’,
do que o niilismo cético de que imagina uma espécie de ‘não me apoquenta!’,
‘tanto faz’… Ou, como enfatiza o professor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho,
em tom crítico: “Morreu, morreu.. que bom que não fui eu!!”
Legalidade:
O fato é que fomos levados a acreditar que juízes seriam agentes
técnicos, ditadores filósofos platônicos com acesso privilegiado à ‘verdade’
jurídica.
Segundo esse imaginário, a atividade de aplicar as leis seria distinta
da atividade de criá-las, convém repetir. Também aqui há suposições
mitológicas, dado que não há intelecções exatas da lei; e quase toda
compreensão da norma depende também da compreensão do caso. Ela depende também
– mas, certamente não deveria depender! – das idiossincrasias de cada
hermeneuta. O postulado da legalidade trata de um ideal regulativo da atividade
dos juízes… Algo que pode ser muito proveitoso, quando os magistrados realmente
se esforcem por conter as próprias pulsões e as próprias vontades, em prol de
uma racionalidade pública que os antecede e supera. Algo que pode ser bastante
pernicioso, por outro lado, caso se imagine que a prolação de sentenças seria
algo anódino, despido de valores e alheio à boa política, compreendida como a
correlação entre ego e aliud, como se magistrados não fossem
responsáveis pelas decisões que proferem, jogando a ‘culpa’ no sistema, no
legislador, à exemplo de um Eichmann dizendo ‘cumprir leis’.
Há leis que não se cumprem, deveríamos saber todos (apótegma de
Radbruch). Leis absolutamente injustas não deveriam vincular, eis que a todos é
assegurado o direito/dever de resistência. Caso alguma lei obrigue agentes
públicos a torturem presos, isso não pode ser aplicado. Claro que sempre
remanescerá o problema de identificação: quando uma lei pode ser reputada
extremamente injusta, para aplicação do aludido postulado de Radbruch? Ele
poderia ser oposto à própria Constituição (problema que acaba retornando,
então, ao debate com Otto Bachof). A nossa Lei Fundamental é excelente. Para
nós, o problema não é de discussão sobre legitimidade, mas – essencialmente –
sobre eficácia do discurso constitucional.
Sem dúvida que deve haver diferença entre criar normas e aplicá-las. A
criação da lei está escudada, no geral, em argumentos de conveniência e
oportunidade; e a aplicação de fontes normativas deveria estar escudada em
argumentos analítico-conceituais. No geral, o juiz não poderia decidir do mesmo
modo que um vereador, no afã de aferir se a solução judicial seria útil,
necessária, adequada, oportuna. Juiz não poderia agir como quem delibera em
caráter originário, eis que deve se reportar a escolhas e poderes que o
antecedem, convém repetir. A criação da lei teria em conta interesses gerais,
apreciados prima facie pelos legisladores; enquanto
que a interpretação/aplicação da lei – tarefas indissociáveis, dizia Hans-Georg
Gadamer – deve tomar ‘tudo em conta’. A atividade do juiz
exigiria fundamentação detalhada, ao contrário da atividade dos legisladores,
em cujo âmbito o silêncio não deixa de ser uma espécie de resposta (silêncio
eloquente, p.ex.). Ao Judiciário não seria dado suspender determinados
problemas (Aufhebung, epochè), dada a indeclinablidade da jurisdição.
Tudo isso parece correto. O nosso tempo tem esmaecido, porém, essa linha
divisória. Cada vez mais juízes têm deliberado com base em argumentos de
conveniência e oportunidade, como se fossem parlamentares discutindo o que
seria mais adequado ou salutar para a comunidade política…, como se estivessem
inovando o sistema, ao invés de aplicar normas já dadas (mito útil, convém
repetir). A aplicação de uma ‘teoria da proporcionalidade’ tupiniquim, com
degradação dos postulados advogados por Dworkin ou Alexy, também tem
contribuído para isso. Aliás, na base disso encontra-se a distinção entre
conceitos de classe e conceitos de ordenação, empregada por Hempel, Oppenheim e
Radbruch (correlata à distinção entre regras e princípios, feita por Alexy)…,
não raras vezes desconsiderada por quem reputa cabível interceptação telefônica
no âmbito do Direito de Família (degradando o art. 5, XII, CF – uma regra – em
uma espécie de mandado de otimização).
Abstraio um exame mais profundo disso – tema para outro dia. Por ora,
apenas menciono que não se pode aplicar a teoria da proporcionalidade como quem
busca subterfúgios retóricos para o próprio decisionismo. Se é o caso de se
aplicar tal teoria, que isso seja empreendido com consistência, partindo da
distinção entre regras e princípios… e atentando para o fato de que, nem tudo
quanto alguém chama de princípio, o é para dita teoria (p.ex., o princípio da
legalidade penal ou tributária é uma regra, eis que não admite aplicação
gradual, incidindo na base do tudo-ou-nada. Ou há lei definindo uma conduta
como crime, e tal requisito foi cumprido; ou não há…). Não tarda, e ainda se
cominarão penas em solo brasileiro sem sequer se preocupar com lei prévia,
invocando-se apenas o tal do postulado da proporcionalidade… Lei para quê? Não
é? Basta a ponderação promovida em nome do ‘bem comum’… E o que é o bem comum?
Aquele que o exegeta decide, oras… “Isso não está claro?” –
replicará alguém. Não. Não está. Não tarda, e a Constituição valerá menos do
que bilhete da sorte de biscoito chinês.
Reitero, as leis não regulam sua própria interpretação. Se a
Constituição viesse com um adendo hermenêutico – as regras de interpretação
constitucional – tais regras também teriam que ser interpretadas e assim
sucessivamente. Ficamos reféns, no final das contas, da hermenêutica. Ela é o
que aprisiona; mas, também é o que liberta.
O sentido depende da comunidade de falantes, depende do consenso
subjacente ao idioma. Mas, as palavras são polissêmicas e há distintos
consensos, há distintas comunidades de falantes. A palavra ‘divisas’ significa
algo para o analista do Banco Central, algo distinto para o comerciante da
fronteira e talvez algo ainda distinto para o Procurador da República, no afã
de apresentar uma denúncia. Isso não significa que a interpretação possa ser
fruto de alguma ‘robizonada’ – expressão de Gadamer -, como se o agente pudesse
decidir, solus ipsus, por si, que sentido atribui ao texto
(Humpty Dumpty dizendo que as palavras significam o que ele quer que
signifiquem!).
A pretensão vertida no art. 100, CTN – o de impor limites à intelecção –
é sempre bem vinda, ainda que também seja um mito útil. Ao invés da doxa, referido
dispositivo sustenta que a interpreteção deve privilegiar a episteme. Claro
que o art. 100, CTN, também demanda interpretação; e claro também que a alusão
ao ‘sentido técnico’ não resolve muito o problema, dado que nada impede que
haja vários.
Ainda quanto à epistemologia:
Nesse âmbito, de modo panorâmico, pode-se ter em conta também a teoria
dos mundos, de Karl Popper – debatida no texto “epistemologia sem sujeito
conhecedor”[xxi] -, e tomada como ponto de partida
por Habermas, na sua dissociação entre pretensão à verdade (correspondência),
pretensão à correção normativa (retitude) e pretensão à autencidade
(sinceridade). Vejam só: “Choveu no dia 01 de janeiro/17, às 14:03h no
centro de Curitiba/PR!” Alguém pode dizer: “mentira. Estava
lá, naquela data, e isso não ocorreu!” (pretensão de verdade como
correspondência). Alguém pode dizer: “não se deve dançar na
chuva!” (pretensão normativa); ou pode dizer “gosto da chuva” (manifestação
da psique, de acesso privilegiado). Ele diz gostar de chuva, mas demonstra
irritação quando chove. Logo, mente!
Popper advogava que a totalidade do que existe poderia ser distribuída
em distintos conjuntos. Haveria o conjunto dos fatos (i.e., eventos, processos,
estados) – suscetíveis de provas empíricas, a exemplo dos estudos promovidos
por físicos, químicos, biólogos. Haveria o conjunto das enteléquias (i.e.,
matemática e lógica), suscetível de demonstração, desde que aceita a premissa,
eis que a lógica e a matemática não demonstram os pontos de partida… No caso da
matemática, o quinto enunciado de Euclides (teorema das paralelas) não é
verdadeiro no âmbito da geometria de espaços curvos, desenvolvida por Gauss,
Riemann e Lobachevsky. Também haveria, por fim, o conjunto dos valores. Segundo
Habermas, esse último conjunto abrangeria tanto as relações do sujeito com suas
próprias opções (plano da ética) – saber se, sozinho na ilha, alguém pode se
suicidar, matar outros animais ou fazer um altar para alguma divindade. Também
haveria o espaço do Direito (pretensões éticas lançadas contra terceiros… O
sujeito não apenas quer cultuar uma divindade, mas quer que todos também o
façam…). Para que o Direito seja minimamente racional, ele deve estar fundado
em argumentos de reciprocidade (se alguém advoga a existência de uma religião
oficial, deve aceitar que não seja aquela que ele professa). Por fim, segundo
Habermas, haveria também o plano da Moral (não confundir com moralismo!),
compreendida como relação do sujeito com toda a humanidade, a exemplo da
temática ambiental, genocídio etc., temas que superariam o embate meramente
jurídico.[xxii]
Tais questões suscitam polêmicas significativas, sobremodo porquanto
partem da premissa de que seria possível graduar culturas em termos de
racionalidade… Ademais, podem justificar o ‘direito de intervenção’ – um Estado
poderia invadir outro para impedir que escravize seus habitantes? Também
parecem justificar a aplicação retroativa de normas penais, a exemplo do que
ocorreu em Nuremberg, a nem sempre fácil conjugação do Direito Constitucional pátrio
com os tratados que exigem entrega de nacionais e preconizam prisão perpétua,
não admitindo cláusulas de reserva (p.ex., Tratado de Roma, com a criação do
Tribunal Penal Internacional). Ainda que seja um teórico crítico, de vertente
marxista, Jürgen Habermas se socorreu bastante de construções de intelectuais
liberais, a exemplo do já citado Popper, Mead ou Searle. Ele esposou, ao que
releva, a ideia de ‘sociedade aberta’, defendida por Popper, como aquela que
permite que dogmas e tabus possam ser problematizados, ao contrário de
sociedades fechadas, em que a dissidência não é tolerada.
Releva muito mais, aqui, atentar para a dificuldade de se racionalizar
valores. Note-se que a ciência natural tem ofertado um léxico e inúmeros
procedimentos para se aferir o grau de verdade de asserções empíricas. A
matemática desenvolveu destacados métodos de demonstração e prova dos seus
lemas, teoremas, postulados e axiomas. No âmbito dos valores, todavia, tudo
parece gravitar em torno da distinção entre moda e gosto… A moda é coercitiva;
o gosto é idiossincrático. Carecemos de mais ciência política, a fim de que
possamos tomar posição diante do liberalismo, libertarianismo, comunitarismo,
anarquismo, feminismo e assim por diante.
A questão está em saber se é possível obter alguma equação – alguma
sequência de Fibonacci – que permita a alguém realmente descobrir a ‘beleza
atemporal’. Note-se que há culturas que reputam belo que as mulheres tentem
esticar seus pescoços, com o uso de argolas (mulheres-girafa da tribo Padaung,
Tailândia); outras culturas imaginam belo que as mulheres tenham pés pequenos,
submetendo-as a verdadeiras torturas (uso de tamancos de madeira, na China,
décadas atrás); outras ainda acham belo os homens-peruca, a exemplo da tribo
Huli, da Papua Nova Guiné; sem mencionar o que ocorre na nossa própria ‘forma
de vida’.
Talvez fique mais claro atentar para o seguinte. Anos atrás, quem
usasse tattoos seria alvo de estigmas sociais, a exemplo
daquela marca presente na obra ‘a letra escarlate’ de Nathaniel Hawthorne.
Hoje, no geral, isso não ocorre. Tempos atrás, quem vestisse roupas em um cachorrinho
e o carregasse no colo seria certamente internado em algum sanatório. Hoje em
dia, há lojas especializadas em roupas para pets; há dentistas para
cachorros (!), e há notícia de processos judiciais em que casais discutem a
guarda e direito de visita dos animais de estimação.
Tudo isso parece idiossincrático. De modo semelhante, porém, questões
como aborto, eutanásia, fé, corpo – os distintos tabus sociais, enfim – não são
solucionadas de modo totalmente racional. Nesse âmbito, há uma dificuldade significativa
para se racionalizar e axiomatizar valores, já sabia Aleksander Peczenik.[xxiii] A fim de se obter algum ponto
arquimediano, os teóricos cogitam de construtos regulativos – bússolas que
deveriam orientar a escolha da melhor resposta -, a exemplo do imperativo
categórico kantiano, do juiz Hércules de Dworkin, do juiz Iolaus do Marcelo
Neves, do auditório universal aludido por Charles S. Peirce, Perelman-Tyteca e
Habermas (condições ideais de fala), dentre vários outros. Sempre remanesce,
todavia, a sensação de que tais construtos se prestam a projetar e
universalizar os valores já compartilhados por quem os emprega; talvez não
impedindo que um sádico tente impor aos demais o próprio sadismo (conforme
crítica promovida por Kelsen, na obra O problema da Justiça).[xxiv] Esse é um tema, porém, para
outro dia.
Vedação de analogia:
Como cediço, há setores do discurso jurídico que se fundam na noção de
tipicidade – i.e., na tipicidade fechada, e não nos chamados ‘tipos ideais’
weberianos, meros modelos de aproximação.[xxv] Com isso, supõe-se que os
legisladores promoveriam a reprovação de determinadas condutas, e não de
outras. E aos juízes não restaria alternativa senão aplicar a norma de modo
automático, cominando a pena apenas quando a interpretação dos fatos se amoldassem
cabalmente à exata interpretação da lei. Por sinal, Jimenez de Assúa e Nelson
Hungria advogavam que a analogia não seria admissível sequer favor
libertatis, dado comprometer a distinção entre juízes e legisladores.
Mas, estavam errados, a meu ver, dado que a analogia a favor dos suspeitos,
acusados e condenados é uma decorrência direta do postulado da isonomia e
também da compreensão de que a culpabilidade é limite da pena, mas, não a sua
fundamentação (é possível que haja culpabilidade sem que se siga a pena; mas
jamais se pode admitir pena sem culpabilidade).
Também aqui, percebe-se facilmente, há certa carga mitológica. Dizia
Claus Roxin que a questão não estaria em proibir a analogia no Direito Penal.
Antes, de reconhecer quais seriam permitidas e quais deveriam ser evitadas, eis
que, em si, ela seria inexorável.[xxvi] Ainda que não se possa dizer
qualquer coisa de qualquer coisa, os limites semânticos dos textos de lei são
mais porosos do que se costuma admitir. O que não significa, repito, que tais
limites não existam. Arthur Kaufmann discorreu, por exemplo, sobre o
alcance da analogia – raciocínio por abdução -, quando em causa o conceito de
arma, para efeitos de agravamento do roubo. Caso se repute que arma é o que
lança projéteis, lançar ácido muriático sobre o rosto da vítima não seria uma
espécie de ‘uso de arma’. Caso se repute que arma é o que tem aptidão para
lesionar, o punho de um lutador de box deveria ser reconhecido como tal…
Gosto muito de um exemplo fornecido por Juan Pablo Montiel e Lorena
Ramirez Ludeña,[xxvii] com base no texto de Sokolowski. A
legislação alemã sobre drogas ilícitas, reputa crime o tráfico de plantas
alucinógenas (anexo I, §1.1 – Betäubungsmittelstrafrecht). No afã
de ganhar uma grana, o sujeito começa a vender um cogumelo delirante. É acusado
pelo Ministério Público alemão pela venda de cerca de 22kg da substância e
condenado em primeira instância. Ele recorre e o Oberlandgericht –
colegiado recursal de 2ª instância – diz que o juiz se equivocou gravemente!
Afinal, todo mundo sabe que cogumelo não é planta, eis que é um ser
heterotrofo, não produzindo clorofila. Cogumelo pertenceria ao reino Fungi (reino
dos fungos). E, dado que a lei penal rotulava como crime o tráfico de plantas entorpecentes,
e não fungos entorpecentes, a solução seria a absolvição, por atipicidade da
conduta. A acusação recorre e o BGH – equivalente ao STJ brasileiro – afirma,
grosso modo: “não me interessa o que dizem os biólogos!” “Os
legisladores quiseram justamente atingir a aludida situação: venda de
substância entorpecente, ainda que se cuide de um cogumelo!” (sentença
– BGH 1 StR 384/06). Com quem estava a razão?
Como já sabia o ‘segundo’ Wittgenstein, as palavras não estão pelas
coisas. Então, o sentido das palavras depende do uso, no âmago de uma
específica comunidade de falantes. Todavia, comunidades de falantes há várias,
cada qual empregando as palavras desse ou daquele modo: biólogos, juristas,
analistas do BACEN. Por vezes, o emprego ‘técnico’ do termo pode ser prestar
para reduzir o poder punitivo – sempre que o significado ‘técnico’ seja mais
restritivo que o uso vulgar -; noutros casos, pode ocorrer o contrário. Diante
de sociedades complexas, com distintos códigos morais e com distintos léxicos,
como interpretar a lei?
Nesse âmbito, é salutar que os juízes tenham consciência do papel que
nos cabe. A tarefa de atuar como diques de contenção – segundo conhecida
metáfora de Zaffaroni -, impedindo a tsunami do poder
punitivo; impedindo a expansão do Estado de polícia que dormita no âmago do
Estado de Direito (eis a dúvida: não será o Estado de Direito que dormita no
âmago do Estado de Polícia? Qual seria mais episódico?).
Uma vez mais: o postulado da legalidade possui notas mitológicas, dado
que toda interpretação também é inovação. Não há soluções acuradas para
problemas dessa ordem. Contudo, se isso tudo é certo, também é fato que deve-se
buscar coerência e consistência – como bem enfatizam Francesco Viola e Giuseppe
Zaccaria -,[xxviii] a fim de não se dar vida àquele
juiz de que falava Rabelais, decidindo os casos que lhe eram submetidos com o
mero lançamento de dados… como se a busca por justiça admitisse soluções
randômicas de tal ordem.
Crimes, criminalização, estigmas:
Sabe-se, por outro lado, que, por muito tempo, a Criminologia amparou-se
na noção do déficit. Como se o crime fosse fruto de alguma
deficiência na socialização (Enrico Ferri), deficiência no sentimento de
empatia e probidade (Garófalo), ou alguma deficiência orgânica (Lombroso), por
sinal, algo que terrivelmente tem sido ressuscitado pela obra de Andrei Rainer[xxix] no âmbito do seu ‘projeto
Lombroso’. Rainer tenta descobrir ‘criminosos natos’ com o exame de
determinados alelos, resgatando o exame dos gêmeos separados no nascimento,
algo que tende ao postulado “veritas, non auctoritas facit legem”,
como se o crime fosse retrato de algum desvio ontológico, dado pela natureza
das coisas…, questão alvejada pela crítica de Luigi Ferrajoli.[xxx]
Desde o artigo seminal de Sutherland – is white collar crime
crime? -, questão retomada com as recentes pesquisas de Vincenzo
Ruggiero (Crime and Markets: essays in anti-criminology), sabe-se que
muitos crimes apenas podem ser cometidos em situação de excesso. No geral, não
há como alguém sem renda sonegar IRPF, evadir divisas etc. Mas, convém deixar
isso em epochè.
O fato é que a Criminologia Crítica desnudou que, antes de se falar em
crime, deve-se falar em criminalização. Não há desvios naturais. Matar é crime;
matar na guerra é reputado ato de heroísmo. Na base do sistema de repressão
penal encontra-se a seletividade – cifras negras e cifras douradas -, aquilo
que os alemães denominam de Dunkelfeld: a diferença entre os
crimes havidos e aqueles noticiados/percebidos. Longe de ser um defeito do
sistema, a existência da impunidade é o que o tornaria funcional, diz Zaffaroni
no livro ‘Em busca das penas perdidas’. Do contrário, parcela expressiva da
população restaria encarcerada, diante de um Congresso que planeja tornar crime
a conduta de fumar na presença de crianças, adolescentes ou gestantes, em
veículo privado ou público (projeto de lei do Senado n. 694/2015), cominando-se
pena entre 02 e 04 anos de reclusão, com aumento em 1/3 (um terço) em caso de
reincidência!
Os estigmas e preconceitos é que servem de critérios para a seleção, em
boa parte dos casos – claro, nem sempre –, dos sujeitos que serão alvo de
diligências policiais (batidas, revistas etc.) e aqueles que não chamarão a
atenção do aparato de repressão. A briga entre vizinhos no bairro ‘nobre’ é
mera altercação, na favela é rixa. A subtração promovida pela moça de classe
média alta, na loja do Shopping, talvez seja encarada como um
problema episódico, como um sintoma de que ela carece de mais atenção da
família e de ajuda dos seus entes queridos. Diante do mesmo contexto, pessoas
vulneráveis não contarão com a mesma sorte. Haverá promotores para acusar e
juízes para condenar, mesmo quando se trate de verdadeira bagatela ou mesmo
quando se cuide de furto famélico. Na favela, a posse de inexpressivo volume de
‘baseado’ será reputado tráfico; na balada, a significativa quantia de ecstazy poderá
ser rotulada como posse para o próprio consumo.
O desvio não é ontológico, convém repetir. Afinal de contas, a noção de
desvio depende das expectativas coletivas. E essas são fugidias, vinculando-se
a papeis sociais, status e outras variáveis. Como sabia John
Searle, identificar a composição da água – H2O – seria um fato bruto; diferenciar
uma mesa e um altar seria um fato institucional (pois depende das expectativas
sociais envolvidas). Saber se o veneno foi a causa da morte da vítima seria um
fato bruto (mundo dos fatos, Karl Popper); saber se isso deve ser rotulado como
homicídio doloso seria um fato institucional (dependendo das pretensões
normativas envolvidas).
Muito mais poderia ser dito sobre isso, sobremodo diante da tendência,
nesse nosso tempo, da normatização dos conceitos penais, por força do embate
entre a concepção de Hans Welzel (fundada na busca de estruturas
lógico-materiais) e a concepção do seu discípulo Günther Jakobs (fundada na
alegação de que o Direito seria autopoiético, constituindo a sua própria
realidade). Para Welzel, sequer a Constituição poderia criminalizar a atividade
de uma pessoa jurídica, eis que incapaz de ação e de culpabilidade. Para
Jakobs, nada o impediria, cuidando-se de uma questão exclusivamente política,
insuscetível de ser confrontada a alguma ‘natureza das coisas’.
Por ora, convém apenas ter em conta que, no âmago do sistema de
repressão penal, encontra a noção de pré-juízo, pré-compreensão, pré-conceito.
Há preconceitos positivos, dizia acima, com base em Gadamer… O fato de alguém
ler o presente artigo decorre de algum preconceito, de alguma suposição de que
encontrará algo útil no que escrevo. Também há, todavia, preconceitos
negativos, a exemplo do racismo, do machismo, da homofobia, a serem enfrentados
e superados, conquanto façam andar a máquina de repressão penal. Há quem
oferte, como alternativa, a isonomia no encarceramento em massa: todos presos,
diante da suspeita. Essa solução não serve. O Estado Penal não pode atuar como
uma espécie de Hobin Hood,que subtrai aos liberdade aos ricos, no
afã de entregar espetáculo aos pobres. Todos iguais diante da lei e pela lei,
nas garantias da lei. E se a condenação é devida, se sobrevenha ao final de um
processo escorreito; afinal, não se cuida aqui de um discurso de leniência.
Antes, de um discurso que desconfia do exercício do poder, como há de ser todo
e qualquer discurso democrático.
Provas:
De certo modo, o problema da verdade não deixa de ser um problema de
certificação. Quem pode assegurar que determinada alegação é verdadeira? Com
que critérios? Nesse âmbito, Foucault ofertou provocações interessantes, ao
longo da obra ‘Verdade e formas jurídicas’ – um conjunto de palestras
ministradas na PUC-RJ.[xxxi] No início, a certificação da
verdade era promovida com o uso do ‘símbolo grego’. O rei confidencia
algo a alguém e lhe entrega metade do vaso quebrado… Quando falece, o
confidente comparece, relata o segrego e apresenta a metade do objeto. Voilà! Verdade!
Por sinal, é o que existe, ainda hoje, com os selos de cartório atestando que
Fulano é Fulano, a exemplo daqueles brasões de cera apostos nos envelopes, na
Alta Idade Média.
Também há a certificação da verdade por meio de testemunhas, a exemplo
do relato do meteco, na obra do Édipo Rei, de Sófocles, ao
relatar ter encontrado Édipo na floresta e tê-lo levado para o reino vizinho.
Por fim, Foucault menciona a inquisitio e sua ambição de
verdade – como diz o amigo Salah Kaled, em excelente obra.[xxxii] Segundo o filósofo francês, a inquisitio teria
dado origem, de certo modo, à ciência moderna. Não, por certo, por estimular a
curiosidade individual e por assegurar liberdade de crítica. Mas, por acreditar
na submissão do mundo à investigação, como se o sujeito pudesse devassar o
mundo e seus segredos.
Muita coisa pode ser dita sobre a inquisitio e seus
métodos de ‘certificação’ da verdade, sobremodo diante de um sistema de provas
tarifadas…. Era o que justificava, dizia Foucault, que a tortura fosse
aplicada, ao mesmo tempo, como sanção e também como meio de prova…, algo
paradoxal. Como uma pena era aplicada no curso do processo? Não que hoje algo
diferente ocorra, diante de preventivas que são verdadeiras sanções
antecipadas. De todo modo, na obra Vigiar e Punir, Foucault argumentava que
isso apenas era possível diante de uma noção de prova tarifada. Uma só
testemunha não servia para condenar – tertius unus, tertius nulus -,
mas, já servia para autorizar a tortura. Uma testemunha somada à confissão sob
tortura servia, então, para condenar. Afinal de contas, diante desse sistema,
ninguém era inocente diante da suspeita; quando menos, seria ‘meio culpado’.
O exame dos elementos de convicção ainda é promovido de modo
verificacionista, como se as provas se prestassem a confirmar o que já se julga
saber, ao invés de evidenciar a efetiva verdade das alegações a serem
demonstradas. Pode-se condenar com base em indícios? Em princípio, sim. Afinal,
abstraindo aqui o debate sobre a legitimidade da própria repressão penal, o
dolo apenas é aferido por abdução, não permitindo provas diretas (alguém pode
confessar um crime que não cometeu, no afã de salvar algum ente querido, por
exemplo). O dolo é inferido – mas, não pode ser presumido! – a partir das ações
praticadas pelo agente, comprovadas nos autos, sob contraditório (art. 155,
CPP). Cuida-se, enfim, de um exame indiciário (art. 239, CPP).
Há quem invoque a alegoria do pássaro e do gato na caixa. Alguém coloca
um felino e um pardal na caixa, totalmente lacrada, e permanece ao lado, na
espera. Exemplo cruel. Ao final de alguns minutos, abre a caixa e vê apenas o
gato, com penas na boca. Conclui: o gato engoliu o pássaro. Caso, todavia, a
caixa tenha furos – haja contraindícios -, o sujeito tenha se ausentado, a
janela esteja aberta, já não poderá afirmar, com essa mesma pretensa certeza,
que o felino é o culpado. Também aqui, cuida-se de um problema de assimetria
dos enunciados universais, de modo que o emprego de demonstrações indiretas,
indiciárias, deve ser empregada sempre com redobrada circunspeção, ainda que
não possa ser desconsiderada, em termos absolutos.
Vive-se o dilema, bem se percebe. O pêndulo oscila entre um sistema de
provas tarifadas (art. 158, CPP, p.ex.) e um sistema de apreciação da prova em
seu conjunto, ambos insuficientes para dar conta do problema do complexo
problema da epistemologia processual penal. O sistema de provas tarifadas
pode recair no arbítrio do legislador; o sistema da ‘livre’ apreciação de
provas pelo magistrado pode redundar em arbítrio judicial.
Arremate:
Juízes somos uma amostra estatística de uma sociedade inquisitorial, que
gosta de amarrar gente em poste e lançar pedras. “Todos nós,
brasileiros, somos carne da carne daqueles negros e índios supliciados. Todos
nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura
mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a
gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também
somos. Como descendentes de escravos e de senhores de escravos, seremos sempre
servos da maldade destilada e instilada em nós, tanto pelo sentimento da dor
intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade
sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa
fúria. A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a
cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade
racista e classista.”[xxxiii]
Não desconsidero, pois, a violência do brasileiro cordial. Mata-se, no
país, até mesmo por conta da cor de olho da vítima, ou por não se gostar do
time para o qual ela torce. Mata-se, pura e simplesmente. Enquanto sociedade,
tentamos segurar os canhões com palavras, no afã de impedir o morticínio.
Tentamos controlar os juízes, na esperança de que apliquem leis que nos são
dadas por parlamentares que deveriam representar efetivamente o povo (outro
mito). A hermenêutica suscita complicados problemas epistemológicos, questões
relevantes sobre prova e sobre limites a serem impostos aos intérpretes.
O fato é que, a despeito da própria polissemia do idioma, lex
habemus. No geral, temos leis boas. A Constituição é o nosso produto
cultural por excelência. Falta-nos, porém, a cultura de legalidade, algo que as
leis mesmo não podem nos fornecer, porquanto é o pressuposto para que sejam
respeitadas e aplicadas no cotidiano.
Flávio Antônio da Cruz é Doutor em Direito do Estado pela
UFPR, Bacharelando em matemática e Juiz Federal Substituto.

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