A ERA DO EXCESSO
Já parou
para pensar na quantidade de informações que jornais, revistas, televisão e
bilhões de sites na internet despejam diariamente sobre nossas frágeis
estruturas cerebrais? Tudo que é demais intoxica.
Vivemos em plena era do excesso. Vamos pelo
mundo como ilhas ambulantes, a flutuar num oceano coalhado de produtos
industrializados de todos os tipos, de medicamentos farmacêuticos, de poluição
ambiental, de guarda-roupas cheios de peças inúteis, de constantes propagandas
que nos conduzem à produtividade e ao consumismo insustentáveis. Sem falar no
excesso de informação feita sob medida para poluir e intoxicar nossas mentes e
nossos corações. Já parou para pensar na quantidade de coisas veiculadas pelos
jornais, revistas, pela televisão e pelos milhões de sites na internet que, sem
dó nem piedade, bombardeiam todos os dias nossas frágeis estruturas cerebrais?
Tudo que é demais faz mal. Intoxica. E
intoxicação, como verbete de dicionário, corresponde a uma “série de efeitos
sintomáticos produzidos quando uma substância tóxica é ingerida ou entra em
contato com a pele, olhos ou membranas mucosas”. Da mesma forma, tudo aquilo
que entra pelas portas dos sentidos – visão, olfato, paladar, tato, audição –
pode ser de natureza deletéria e nos intoxicar. O modelo de civilização que
inventamos é tóxico e chegou agora a um estado de paroxismo no qual a regra
geral é a perda da consciência da medida das coisas.
Como costumo lembrar, para os antigos gregos
o descomedimento – entendido exatamente como perda do senso de medida – era a
maior de todas as falhas. Eles chamavam essa perda da consciência de limites de
húbris, e consideravam que ela não tinha remissão. Quem cometia essa falha
estava condenado ao inferno por toda a eternidade. Os deuses viam a húbris como
a pior das formas de arrogância e puniam com severidade máxima todos que se
deixavam seduzir pelo descomedimento.
Mas hoje perdemos essa noção fundamental da
sabedoria grega, e manifestamos nossa perda da consciência de limites o tempo
todo. Estaríamos todos, assim, condenados à danação eterna pelos deuses gregos.
Não acredita? É fácil perceber, por exemplo, até que ponto fomos tomados pela
compulsão de fazer tudo melhor, em maior quantidade e no menor tempo possível.
Da manhã à noite ouvimos injunções vindas de fora – mas também de dentro –
repetindo que é preciso fazer isso, ou aquilo, agir assim ou assado. Pouco a
pouco, essas injunções tornam-se vozes interiores, autoritárias, que logo
deixam de ser vozes e se transformam em gritos de ordem: produzir, comprar,
consumir!
Cruzar os braços?
Mas seria então o caso de cruzar os braços,
de realmente mandar tudo para o inferno, de não fazer mais nada? Parece que
não. Soltar as rédeas significa eliminar a pressão, mas não significa que temos
de deixar de agir. Como fazer isso? Simplesmente mudando o ângulo de visão, a
perspectiva. Por exemplo: você tem um projeto e deverá apresentá-lo a um
potencial patrocinador. Você estudou, pesquisou, caprichou na elaboração do
projeto. Mesmo assim, chega ao escritório do patrocinador como quem se aproxima
do patíbulo.
Na sua cabeça, as preocupações dão pinotes
como cavalos bravios. E se eu não conseguir me explicar? E se a ideia não
agradar? E se tudo der errado? Você chega lá estressado, e sua angústia tem
origem num único ponto: a impossibilidade de poder controlar tudo. Na melhor
das hipóteses, você manda todas as preocupações para o inferno, decide
enfrentar com coragem o desafio e exclama: “O que tiver de ser será”. É nessa
postura que reside sua maior chance de ter sucesso na empreitada: quando
deixamos correr solta a lógica da vida, descobrimos que ela oferece
naturalmente as forças que conduzem ao progresso e à cura.
Midal e outros estudiosos estão convencidos
de que tal postura, aparentemente paradoxal, é suficiente. Ele diz que “essa
postura basta para suspender o desejo de perfeição, de sucesso, que nos
estrangula”. Perguntado se a compreensão profunda do significado de “o que
tiver de ser será” é decorrência da prática bem feita da meditação, Midal
comenta: “Claro, muitos hoje vêm às práticas de meditação com a ideia de que
têm um desafio a enfrentar, uma tarefa a ser executada, a obrigação de alcançar
o objetivo: a serenidade. São esses pressupostos que, quase sempre, levam à
frustração: a sensação, principalmente no começo das práticas, de não conseguir
chegar aos resultados preconcebidos em nossa mente a respeito do que deve ser a
meditação. A pessoa chega com a ideia de que terá de encarnar uma sabedoria”.
Presença plena
Dessa forma, voltando ao caso da meditação,
como a sabedoria utópica parece não chegar, o que sobrevém é um sentimento de
culpa por não se ter alcançado o sucesso esperado. Isso deriva em boa parte do
fato de que, em geral, o sentido do termo “meditação” é mal compreendido. Na
mindfulness meditation (meditação da consciência plena), por exemplo, esse
termo induziu uma intelectualização da prática meditativa dentro de um espírito
cartesiano. Na verdade, o sentido real da expressão não diz respeito a uma “consciência
plena”, e sim a uma “presença plena” a tudo que acontece em nós, e notadamente
em nosso corpo.
Para desfrutarmos da realidade como ela é – e
esta é a única realidade que existe –, devemos suspender os desejos de
perfeição e de sucesso, pois eles nos estrangulam e oprimem. Para alguns,
convém aceitar tranquilamente o fato de não sermos perfeitos. Para outros,
aceitar o fato de não sermos amados, de não conseguirmos nos manter calmos, de
ainda não dominarmos nossas emoções, etc. Tais colocações, na verdade,
constituem a plataforma básica de todas as psicoterapias, da psicanálise à
hipnose ou à de linha junguiana.
Todas elas não nos pedem um trabalho
voluntário para que aprendamos a controlar o que se passa em nós – postura que,
a rigor, nos transformaria em escravos submissos a nós mesmos. Muito mais que
isso, as técnicas psicoterápicas – bem como as religiões verdadeiras – nos
convidam a retomar o gosto pela vida, a deixar que a vida siga seu curso a
partir da sua própria lógica – e não a partir dos condicionamentos e injunções
da atual cultura da produtividade e do consumismo insustentáveis. Esse é o
grande segredo que, uma vez desvendado, nos permite escapar das intoxicações
provocadas pela nossa “civilização das 500 mil coisas”. Para a verdadeira realização
da pessoa humana, é muito mais importante “ser” do que “fazer”.
Profusão de
informações
Fonte: http://www.revistaplaneta.com.br/era-do-excesso/
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