TROPICÁLIA, 50 ANOS
Chaves para
compreender um movimento que transbordou as fronteiras da música, cultivou
muito mais que a inovação estética e propôs que fôssemos todos mutantes, jamais
estagnados
Cerca de
meio século depois de ser “abatida em pleno
vôo pelo AI-5”, como diz Tárik de Souza, a Tropicália faz por
merecer um destino de Fênix, renascendo das cinzas. A chama ainda ardente da
Tropicália inspira a nós do Confluências: Festival de Artes Integradas a dar novos impulsos às práticas e valores da trupe
que revolucionou estética e política no Brasil que então gemia sob os tanques e
torturas que se seguiram ao golpe militar de 1964 e suas “tenebrosas
transações”.
Acreditamos
que a Tropicália, apesar de ser compreendida pelo senso comum como um movimento
musical, transborda das fronteiras da música e expressa-se através de variadas
linguagens artísticas, tendo intenções mais amplas do que uma mera inovação das
formas musicais. A Tropicália propunha a renovação da vida através das
confluências sem medo de elementos aparentemente díspares, mas que a trupe
provou serem deliciosamente mescláveis. Propunha que fôssemos todos Os Mutantes, jamais
estagnados.

Na capa do disco
manifesto “Tropicalia ou Panis et Circenses” (ouça: https://youtu.be/KIiwbHqtb7w), é explícita a confluência entre
a cultura popular (de que Tom Zé e Gilberto Gil eram tão
inventivos representantes) e a cultura mais erudita (ali representada pelo
maestro Rogério Duprat, que parece tomar chá em um penico que remete à obra de MARCEL DUCHAMP. Ali também está clara a confluência entre a literatura e a
música, com a presença do poeta e jornalista Torquato Neto (também
um dos mais brilhantes letristas de nossa MPB) e do poeta José Carlos Capinam
(representado em fotografia emoldurada que seu parceiro Gil carrega como
porta-estandarte).
As
confluências não param de proliferar na história da constituição da Tropicália:
o nome do movimento vem do ramo das artes plásticas, era o nome de batismo de
uma instalação bolada em 1967 por Helio Oiticica, o célebre
inventor dos parangolés e divulgador de motes vanguardistas como “incorporo a
revolta” e “seja marginal, seja herói”.

Parangolé de Oiticica

Caetano e Nara na companhia dos Beatles (faltou cola e Paul McCartney ficou fora da parede…)
Quando Caetano Veloso criar
a canção “Tropicália”, fará isto não só sob a influência de Hélio Oiticica e
seus parangolés, mas tremendamente impactado também pelo cinema de Glauber Rocha –
que havia realizado, aos 23 anos de idade, a obra-prima “Deus e o Diabo na
Terra do Sol”, e que na época de eclosão tropicalista havia lançado ao mundo
seu desnorteante “Terra em Transe”. Pouco tempo depois de finalizar a
composição da música, relembra Caetano, ele foi assistir a outro fenômeno
descomunal da cultura brasileira da época: “O Rei da Vela”, peça de Oswald de
Andrade encenada pelo Teatro Oficina Uzyna Uzona de Zé Celso Martinez Corrêa.
A
devoração antropofágica da diversidade cultural é um dos motes dos artistas
Tropicalistas que, segundo Celso Favaretto em seu livro “Tropicália: Alegoria
Alegria”, “retém do primitivismo antropofágico a concepção cultural sincrética,
o aspecto de pesquisa de técnicas de expressão, o humor corrosivo, a atitude
anárquica com relação aos valores burgueses” (pg. 57).
No
livro Antropofagia e
Tropicalismo, publicada pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul e que me foi recomendado pela Salma Jô e pelo Macloys do Carne
Doce, o artigo inaugural de Bina Friedman relembra que o próprio movimento
antropofágico já era pura confluência. Confluências múltiplas entre Oswald e
Tarsila, por exemplo, por razões tanto óbvias – a transa sexual-criativa do
casal – quanto outras menos evidentes – entre o Manifesto Antropófago e
o Abaporu (1928):

“Inspirado no quadro
de Tarsila do Amaral – que aliás teria detonado a idéia do Manifesto Antropófago e
que a artista reproduziu em bico de pena para ilustrar o primeiro número
da Revista de
Antropofagia, Oswald funda, cunha, teoriza e consagra na
literatura modernista o tema e o tratamento da Antropofagia. (…) A devoração do
bispo Sardinha, aproveitada por Oswald como metáfora, propõe, em irreverência e
ironia, um novo calendário nacional: a história brasileira deveria iniciar a
partir de uma data que sugeria uma reação dessacralizante com o poder… O
episódio do bispo Sardinha é marotamente aproveitado por Oswald como data
do Manifesto
Antropófago (“Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha”).
Devorado em 1554 por índios antropófagos quando o navio em que viajava
naufragou na costa brasileira, o Bispo Sardinha do texto alude ironicamente à
história do Brasil Colônia. O Manifesto rende, com o chiste, uma
‘homenagem’ carnavalizada a
todos que, na pessoa do bispo, deveriam ser comidos.” (FRIEDMAN: 1993, p. 9,
10)
Bebendo na
fonte da utopia antropofágica oswaldiana, do Cinema Novo, do dionisismo teatral
do Oficina, da Poesia Concreta, da “geléia geral brasileira” de que falou Décio
Pignatari, a Tropicália explode em 1967 no cenário artístico como algo que
chuta para escanteio a mesmice, a caretice e a zona de conforto. Bagunça com a
polarização entre Jovem Guarda e MPB, subverte os códigos transformados em
clichê que caracterizaram seja o iê-iê-iê, seja a canção-de-protesto engajada.
Muitos
dos episódios lendários desta empreitada estão descritos por Carlos Calado em
seu Tropicália
– A História de Uma Revolução Musical (Editora 34). O mesmo autor, pela mesma editora, também
publicou o seminal estudo biográfico sobre Os Mutantes – A Divina Comédia dos Mutantes.
Frederico
Coelho tem um excelente livro que nos ajuda a expandir os horizontes sobre o
tal do Tropicalismo (termo cunhado pelo jornalista cariosa Nelson Motta): “Eu,
Brasileiro, Confesso Minha Culpa e Meu Pecado – Cultura Marginal no Brasil das
Décadas de 1960 e 1970” (Civilização Brasileira & Paz e Terra, 2010, 335 pgs). Nele, Coelho defende que, a partir de 1967, o “movimento
apresentou posturas e práticas que liberavam o artista e o intelectual do
compromisso de obrigatoriamente relacionar sua obra a uma ‘cultura nacional’ ou
a um ‘povo’. Suas ações abalaram a crença necessária desses segmentos no
nacional-desenvolvimentismo de esquerda e colocaram em xeque seu temor xenófobo
do ‘imperialismo estrangeiro’, assumindo uma nova forma de inserção desses
agentes no mercado de bens culturais” (p. 111).
Embora a música popular brasileira seja o “epicentro” de
eclosão do tropicalismo, Coelho argumenta que o tropicalismo foi “um movimento
cultural mais amplo e diretamente conectado à emergência, pós AI-5, do que
chama de marginália, que aproveita-se de aberturas e rupturas estabelecidas pelos
artistas durante a breve aventura da Tropicália. “Mais do que um movimento
musical, o tropicalismo representou um novo elemento em um espaço de ação que
já estava ficando imobilizado pela díade engajados / alienados.” (p. 112)
Abrindo espaços para a renovação da cultura brasileira, Tropicália e Marginália
transbordam de qualquer caixa de categorização de diversos setores artísticos:
Glauber Rocha, Hélio Oiticica, Torquato Neto, todos eles são artistas do
híbrido, da mescla, da confluência entre vertentes, sempre “desafinando o coro
dos contentes” (para lembrar verso inolvidável de Torquato, musicado por Jards
Macalé em “Let’s Play That”).
Se em 1967 a
Tropicália pôde explodir no cenário através da exuberância de “Alegria,
Alegria” ou de “Domingo no Parque”, em 1968 a situação torna-se mais escura,
tensa, violenta. Glauber filma Câncer enquanto
a barra pesada do aprisionamento, da tortura e do exílio se abate sobre boa
parte dos artistas mais relevantes do país. A mordaça do regime de exceção
instalado através da violência militar truculenta busca abater em pleno vôo a
ave demasiado águia da Tropicália. É preciso calar a ferro e fogo esses
arruaceiros que dizem seja
marginal, seja herói e celebram heróis perigosos como Ernesto
Che Guevara ou Carlos Marighella.
“Temas
como banditismo, armas de fogo, enfrentamentos armados entre policiais e
estudantes, desagregação de valores da classe média brasileira, grupos
marginalizados da sociedade, entre outros, passam a fazer parte do universo
temático das canções tropicalistas a partir da segunda metade de 1968. Canções
como “Enquanto Seu Lobo Não Vem” (Caetano Veloso), “Divino Maravilhoso”
(Caetano e Gilberto Gil), “É Proibido Proibir” (Caetano), “Marginália II”
(Torquato e Gil) ou “Deus vos salve esta casa santa” (Torquato e Caetano) eram
emblemáticas para esse momento de radicalização. São canções que tratam de
‘bombas’ e de ‘botas’, de não ter tempo para ‘temer a morte’, das pichações dos
jovens de maio de 1968 em Paris, de ‘pânico e glória’ e de ‘laço e cadeia’.”
(COELHO, p. 116).
Ver links:
https://www.youtube.com/watch?v=e1udrJwWnPk
https://www.youtube.com/watch?v=KIiwbHqtb7w
https://www.youtube.com/watch?v=Utly4DHH37o
https://www.youtube.com/watch?v=CkydG29xWUU
Por Eduardo Carli de Moraes,
em A Casa de Vidro
Fonte: http://outraspalavras.net/outrasmidias/capa-outras-midias/tropicalia-50-anos/
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