O
ARTISTA FRANCÊS QUE INSISTE EM VIRAR O
MUNDO PELO AVESSO

O artista francês JR na Casa Amarela, seu projeto social no morro da Providência, a primeira favela do Rio Rio FELIPE FITTIPALDI
Quem é o fotógrafo de óculos e chapéu que levou
Madonna a uma favela do Rio de Janeiro?
Ao se preparar para cruzar a fronteira que o levaria de volta do
México aos Estados Unidos, o artista francês JR tinha dois destinos
possíveis quando mostrasse o seu passaporte. O agente de imigração podia checar
seu nome no sistema, encontrar uma longa ficha policial cheia de detenções
mundo afora e proibir sua entrada. Ou, sem saber quem tinha diante de si, podia
simplesmente perguntar o que fazia um simpático francês de 34 anos com óculos
de sol e chapéu naquela calorenta fronteira do mundo.
- Vim ver
uma exposição.
- Ah!
Aquela do menino olhando por cima do muro? O artista é francês também, não é?
- Aham…
- Eu não
vi porque não tive tempo, mas muita gente aqui já foi ver.
O policial deixou-o passar sem
saber que se tratava do mesmo francês que havia instalado um andaime em plena
fronteira. Dele pendia uma foto em preto e branco de um bebê de mais de 20
metros de altura olhando por cima do muro que separa os Estados Unidos do
México. A instalação, como a maioria das obras de JR, era ilegal, mas sua
imagem deu a volta ao mundo e, desta vez, não o detiveram.
O suor frio que percorre seu
corpo nos postos fronteiriços é mais uma razão para que o artista nunca revele
seu verdadeiro nome. Com seus óculos e chapéu de aba curta poderia ser qualquer
jovem hipster de Paris, Berlim ou Madri. Sem esses acessórios, seria um dos
artistas urbanos mais reconhecidos do momento, que começou pixando edifícios e
trens de Paris e que chegou ao Louvre com suas fotografias em preto e branco.
JR circula entre as celebridades de Hollywood da mesma forma que convive com os
moradores das comunidades mais pobres do mundo.
O francês voltou às manchetes
duas semanas atrás ao levar a Madonna ao morro da Providência, a primeira
favela do Rio de Janeiro. A cantora apareceu no bairro sem escolta, apenas dois
dias depois de uma turista espanhola morrer atingida pelo disparo de um
policial em outra favela carioca. Madonna, com roupa de camuflagem, posou
para uma foto com policiais armados. A imagem foi amplamente criticada pelos
fãs. “Acredito que todo movimento que ela faz dá o que falar. Cometeu um erro,
mas ela não sabia o contexto. Disse a ela que foi um erro depois, mas depois de
publicada a foto já era tarde”, diz JR. “Por outro lado, a comunidade do morro
sentiu um enorme orgulho de ter sido escolhida. Ninguém quer vir aqui, não é
uma favela famosa”.
Madonna escolheu a Providência
para conhecer a Casa Amarela, projeto social que JR mantém no bairro desde
2009. Nessa casa de três andares, encravada na fronteira (mais uma) disputada
por traficantes e policiais, crianças recebem aulas de reforço de inglês,
artes, leitura, música e fotografia. A equipe de JR acaba de inaugurar uma
estrutura em forma de lua crescente, hoje o ponto mais alto da favela, de onde
se vê a cidade e onde poderão se hospedar artistas convidados para dar aulas
aos pequenos.
A Casa, cujo amarelo é fruto
aleatório de um desconto atraente na loja de tintas, é financiada por doações
anônimas de particulares e com o dinheiro que JR ganha com suas intervenções
privadas e legais. Esse 1% de seu trabalho movimenta dezenas de milhares de
dólares: uma única foto dele, montada em alumínio, foi vendida por 25.000
dólares (cerca de 80.000 reais), segundo a casa de leilões de arte Sotheby’s, e
as litografias de seus projetos não são avaliadas em menos de 800 euros. O
cachê que cobra pelos trabalhos sob encomenda, como as fotos gigantes de
atletas que instalou no Rio durante os Jogos Olímpicos, é um mistério talvez
milionário.
Paradoxalmente, parte dos
recursos vem de marcas que usam suas obras nas ruas para anunciar seus
produtos. JR aciona seus advogados e os anunciantes – alguns deles marcas de
carros de luxo – acabam pagando pelo uso não autorizado de sua arte. “É
interessante, porque eu instalei essas obras ilegalmente, para as pessoas da
rua. Mas quando uma marca usa isso para dizer ‘somos cool’ não estão
autorizados, não têm direito. Meu trabalho não é pensado para vender nenhum
produto”, contava JR na sala de aula da Casa Amarela, no último sábado. JR não
assina suas obras, mas depois de mais de uma década de trabalho, conseguiu
fazer os retratos em preto e branco colados nas paredes se tornarem sua marca,
de Istambul ao Rio de Janeiro.
JR pisou na Providência pela
primeira vez em 2008 em busca de um lugar para expandir seu projeto Women are
Heroes (as mulheres são heroínas), que já tinha intervenções na Libéria e no
Quênia. Semanas antes, três meninos do bairro haviam sido sequestrados por
militares e entregues como troféu a traficantes de uma favela rival. Foram
torturados e assassinados. O clima não era propício para falar de fotos e
instalações artísticas. JR recebeu vários nãos antes de
a favela contar a ele sua história e abrir as portas de suas casas.
“Durante toda minha vida viajei o
máximo possível para ouvir as pessoas me dizerem ‘não’. Quando estava na
França, no Quênia, ou aqui no Brasil, diziam-me: ‘É impossível. Esta gente não
está interessada em arte’. Mas era preconceito, sempre quis ir e provar isso.
Se me dissessem: ‘Desculpe, aqui não é um lugar para a arte’, claro que não
iria insistir. Mas em todos os lugares aonde fui, até na Somália, as pessoas me
diziam: ‘Por favor, traga mais arte”, conta JR.
Uma primeira intervenção,
interrompida temporariamente por um tiroteio, mudou tudo. JR e sua equipe
cobriram a enorme escada que atravessa a parte alta da favela, território de
disputa entre traficantes e policiais, com a imagem da avó de um dos meninos
assassinados. Os moradores a reconheceram e entenderam o poder do papel e da
cola. Eles, na verdade, queriam falar e ninguém parecia dar atenção. Até os
traficantes permitiram que o francês passasse 25 dias cobrindo suas fachadas de
tijolo com os rostos doloridos das mães, amigas e avós daqueles meninos,
mulheres anônimas que só queriam um bairro melhor.

As fachadas das casas da Providência ganharam as faces das suas moradoras e a atenção da mídia. JR-ART.NET
Desde que o resultado, um mosaico
de olhares e barracos, pôde ser visto do asfalto rico da cidade, o morro da
Providência ganhou manchetes que iam além da violência e da miséria. Quando os
jornais quiseram saber o que era aquilo, JR já estava longe: havia deixado todo
o protagonismo para as mulheres sem voz da comunidade. “A narrativa delas é
muito mais interessante que a minha”, diz. “A cidade via este lugar como um
local violento, viam seus moradores como monstros. O poder da arte é mudar a
percepção das coisas. Não dá respostas, mas gera muitas perguntas”.
Em 2009, no ano cultural
Brasil-França, foi lançado um livro sobre o projeto. “Aquilo permitiu que os
papéis se invertessem. As pessoas ricas de Ipanema e Leblon fizeram fila para
que as mulheres da Providência autografassem os exemplares”, relembra ao lado
de uma das protagonistas. “Não era eu quem assinava, eram elas”.
Algumas coisas mudaram no Rio e
na Providência desde então. Os meninos que JR fotografou naquela época
cresceram. Alguns morreram, outros se tornaram traficantes, mas outros estão
ali abraçando-o e colaborando com o projeto. “Há dez anos isto aqui era um
inferno. Havia armas por todos os lados, drogas... Era muito tenso. Depois o
Rio ganhou os Jogos Olímpicos e começaram a dar mais atenção. Trouxeram a TV a
cabo, começaram a recolher o lixo, as mulheres começaram a abrir seus próprios
negócios e chegou a pacificação... As ruas se encheram de gente e de crianças
brincando. A comunidade ganhou protagonismo, conseguiu chamar a atenção da
cidade”, conta. “Mas agora, depois dos Jogos, o tráfico de drogas voltou, a
pacificação não funcionou e tudo voltou a desmoronar. Isso me deixa
triste”.
Em 2011, JR ganhou o prêmio TED,
uma organização norte-americana conhecida por suas conferências inovadoras e
que tem como lema disseminar ideias que merecem ser divulgadas. O prêmio, no
valor de um milhão de dólares e que já tinha sido concedido a figuras como Bill
Clinton, o chef Jamie Olivier e Bono, exige que o homenageado formule um desejo
para mudar o mundo. Com ele, o artista lançou o projeto Inside Out, uma
iniciativa que permite a qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo enviar a JR
sua foto para que o artista a devolva impressa e pronta para ser colada na
parede. Aos seis anos de existência, é considerado o maior projeto artístico e
participativo do mundo. Já foram recebidas e impressas cerca de 400.000
fotografias em 129 países. O sonho continua sendo o mesmo que JR mencionou em
sua conferência após receber o prêmio: “Quero usar a arte para virar o mundo
pelo avesso”.
Fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/30/cultura/1509385421_593585.html

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