INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL,
NOVO PESADELO?
Sinais distópicos: além de eliminar trabalho humano em massa,
máquinas e programas podem, em breve, tornar infernal o controle sobre os
assalariados.
Em “Vida
de Galileu”, provavelmente sua peça mais notável, Bertolt Brecht imagina a fala
final do grande cientista do Renascimento a seus pares. A obra foi escrita
durante o tormento da II Guerra Mundial, em meio os exílios do autor – por
isso, o Galileu de Brecht já não compartilha o entusiasmo automático pela
Ciência presente em outras obras da tradição iluminista e mesmo marxista. Diz
ele, em tom de advertência quase desesperada: “O precipício entre vocês e a
humanidade pode crescer tanto que ao grito alegre de vocês, grito de quem
descobriu alguma coisa nova, responda um grito universal de horror”. Há duas semanas,
a revista britânica Economist publicou um longo estudo sobre os novos avanços a Inteligência
Artificial – especialmente seu uso nos locais de trabalho. Diante da leitura, é
impossível não sentir de novo o calafrio que assombrou o dramaturgo alemão.
Desenvolver
Inteligência Artificial, explica Economist, significa dotar
computadores e softwares de capacidade para processar imensos volumes de dados
e – principalmente – para encontrar padrões e fazer previsões sem ter
sido programados para tanto. Alguns usos podem parecer neutros, ou até
benéficos. A Amazon e a Leroy Merlin (rede francesa que vende, no varejo,
materiais de construção e de uso doméstico) desenvolveram sistemas que
recompõem estoques com enorme precisão e economia. Podem fazê-lo porque seus
computadores levam em conta, além da simples reposição do que foi comprado
pelos clientes, dados como as previsões de tempo e a ocorrência de feriados
(que podem alterar a frequência às lojas). Os algoritmos permitem prever a
demanda por milhões de produtos, com até 18 meses de
antecedência. Abstraia, por um momento, o interesse nas empresas. Pense nos
enormes desperdícios – sociais, ambientais, econômicos – que poderiam ser
evitados se fosse possível saber antecipadamente, por exemplo, quantos milhões
de toneladas de papel, de tomates ou de alumínio será preciso produzir, num
determinado período, para satisfazer às necessidades humanas.
Mas, em
sociedades regidas pelo lucro, dinheiro atrai dinheiro – e a tecnologia acaba
alocada para os setores em que contribuiu para concentrar riquezas. O Caesar’s,
um conglomerado norte-americano de hotéis e cassinos (presente também no
Brasil) usa Inteligência Artificial, por exemplo, para identificar os prováveis
objetos de consumo de cada cliente e induzir à compra. Os usos mais
devastadores, porém, estão no mundo do trabalho.
A
Inteligência Artificial permitirá eliminar uma imensa quantidade de empregos. A
substituição, nos callcenters, de humanos por sistemas
crescerá cinco vezes, até 2021, em todo o mundo. O Metro, um grupo varejista
alemão, planeja trocar os caixas de suas lojas por scanners que
leem o código de barras dos produtos já no carrinho de compras e fazem a
cobrança. A Bloomberg, uma agência global de notícias econômico-empresariais,
já desenvolveu programas que, sem necessitar de qualquer auxílio humano,
examinam relatórios financeiros de empresas e redigem notícias sobre eles.
Convenhamos: são documentos que não requerem análises refinadas. Mas – pergunte
a si mesmo – os redatores liberados de tais tarefas maçantes serão
redicrecionados para outras mais nobres? Poderão, por exemplo investigar o resultado
social da atuação de tais empresas? Ou terminarão ou simplesmente descartados?
Além de
desempregar em massa, a Inteligência Artificial poderá estabelecer níveis
inéditos de controle sobre quem mantém a ocupação. A relação de novos
instrumentos é aterradora. A Amazon acaba de patentear uma pulseira que transmitirá, do pulso dos
trabalhadores, informações detalhadas sobre cada passo deles nas instalações da
empresa. O mesmo bracelete emitirá automaticamente pequenas vibrações, quando
houver sinais de que o desempenho do funcionário não atende a todos os
requisitos de produtividade.
É um
entre muitos exemplos. O Workday, outro software, cruza
constantemente 60 tipos de informação para prever comportamento dos empregados.
O Humanyze (sim,
os nomes são orwellianos) detecta cada contato dos funcionários com seus
colegas e se conecta com suas agendas e e-mails. O Slack, um aplicativo de mensagens, avalia a
rapidez dos trabalhadores para cumprir certas tarefas e permite identificar
quem esteja divagando, ou em suposta má conduta. Slack, aliás,
é acrônimo para “searchable log of all conversation and knowledge” (algo como
“registro disponível de toda a conversação e conhecimento”). O Cogito escuta os
diálogos telefônicos entre trabalhadores e clientes e estabelece “rankings de
empatia”. O Veriato,
acoplado a computadores, mede as pausas no trabalho e mesmo a velocidade dos
toques no teclado…
A conjuntura
favorece as empresas. Num cenário de desemprego muito elevado, lembra o estudo
do Economist, os assalariados estão sendo induzidos a assinar
contratos de trabalho que autorizam a invasão de sua privacidade. Este
retrocesso é viabilizado por dispositivos como a “prevalência do negociado
sobre a lei”, presente na contrarreforma trabalhista brasileira.
A
Inteligência Artificial é necessariamente desumanizadora? Para autores como o
economista norte-americano Jeremy Rifikin,
a resposta é, evidentemente, não. Em Sociedade com Custo Marginal Zero: A Internet das Coisas, os Bens Comuns Colaborativos e o Eclipse do Capitalismo, Rifkin imagina um
cenário completamente distinto do descrito por Economist – que
hoje parece prevalecer. Ele vê, na convergência de três revoluções tecnológicas
(da conectividade, das novas energias e dos transportes), a chance de uma
brutal economia de recursos. Ela estaria associada, porém, não à concentração
de riquezas, mas à garantia do acesso de todos aos bens necessários para uma
vida digna, com mínimo consumo dos bens naturais. Uma brevíssima síntese do
pensamento do autor (que hoje presta consultoria ao governo chinês) pode ser
vista neste vídeo - https://www.youtube.com/watch?v=4Ji_e6tv21c.
Há anos,
Immanuel Wallerstein não se cansa de alertar: a crise do capitalismo é profunda
e provavelmente terminal. Mas isso não é, necessariamente, uma boa notícia. No
lugar do sistema hoje hegemônico podem surgir tanto uma sociedade muito mais
democrática e igualitária quanto outra, que aprofunde como nunca as marcas de
exploração, hierarquia alienação que já vivemos. Os dilemas, esperanças e
ameaças da Inteligência Artificial – algo que vale estudar em profundidade –
parecem lhe dar toda razão.
Fonte: AnTONIO
MARTINS - 22/04/2018
https://outraspalavras.net/posts/inteligencia-artificial-novo-pesadelo/-
Acessado em 18.05.2018
Nenhum comentário:
Postar um comentário