MÁQUINA DIGITAIS: HORA DE DESCONECTAR?
Douglas Rushkoff, um dos grandes teóricos do mundo
digital, adverte: redes sociais mobilizam nosso lado réptil- primitivo, para que
troquemos a política pelo consumo
“Para o
Facebook somos o produto, não o cliente”, repete o teórico da mídia
estadunidense Douglas Rushkoff desde 2011. Embora o episódio Cambridge
Analytica e o comparecimento de Mark Zuckerberg perante o Senado
norte-americano tenham abalado a opinião pública, o que realmente chamou a
atenção deste escritor e documentarista de 57 anos foi “como as pessoas ficaram
surpresas”. “O plano de negócios do Facebook – assegura ele, falando do
subúrbio novaiorquinho de Hastings-on-Hudson, onde reside – sempre foi extrair
dados da atividade das pessoas, para vendê-los em seguida”.
As críticas do professor de Teoria dos Meios e
Economia Digital da Universidade do Estado de Nova York à empresa de Mark
Zuckerberg podem ser estendidas também à maioria das grandes companhias
fundadas em tempos de economia digital. Em seu último livro, Throwing
Rocks at the Google Bus: How Growth Became the Enemy of Prosperity [Atirando
pedras no ônibus do Google: como o crescimento converteu-se no inimigo da
prosperidade], editado pela Penguin Books nos Estados Unidos, o teórico de
meios argumenta que empresas como Amazon, Netflix ou iTunes acabando utilizando
a rede – que a seu ver prometia ser mais uma ferramenta de utilidade pública
que uma plataforma comercial – para reviver as piores práticas do capitalismo
industrial — agora, porém, “funcionando com esteróides digitais”.
Pioneiro e entusiasta da cibercultura, participante
do movimento Occupy Wall Street e ativista da democracia de código aberto,
Rshkoff é doutor em Novos Meios e Cultura Digital pela Universidade de Utrecht
(Holanda).
Em 2013, o MIT – Massachusetts Institute of
Tecnology, o incluiu – junto com Niall Ferguson e Steven Pinker – entre os dez
intelectuais mais influentes do mundo. Considerado por muitos o mais fiel
herdeiro das ideias de Marshall McLuhan e Neil Postman, é o responsável por
cunhar termos como “nativos digitais”, “meios virais” e “moeda social”. Eis sua
entrevista.
Como se
explica o mea-culpa realizado por Mark Zuckerberg perante o Senado
norte-americano, ao assumir a falta de maior responsabilidade sobre o modelo de
negócios do Facebook?
Os jovens desenvolvedores abandonam a escola para
iniciar suas empresas, com pouco ou nenhum conhecimento dos impactos políticos
e sociais dos produtos que querem construir. Zuckerberg afirmou que não tinha
ideia de que sua plataforma afetaria nossa sociedade e nossas eleições da
maneira como fizeram. Se ele conhecesse algo sobre a economia política dos
meios, não seria tão ignorante. Mas o Facebook é dirigido por alguém que só se
formou na escola secundária.
No ano
passado, o Facebook revelou os países que mais usaram sua nova modalidade de
“interações” e o México se encontrava em primeiro lugar, em nível mundial. Como
se relacionam as “interações” e as “curtidas” com o uso que a empresa poderia
estar fazendo de nossos dados?
O Facebook usa a “aprendizagem automática” para
determinar o que funciona e o que não funciona com você. Quanto mais informação
tenham sobre você, maior a precisão com que poderão prever e manipular seu
comportamento. Os botões de interação são como um dispositivo de votação
instantâneo. São como um “grupo focal” mecânico. Estão fazendo as perguntas que
lhe faria um psicólogo que tentasse hipnotizá-la.
No início
de 2014 ficamos sabendo que o Facebook havia comprado a patente para
desenvolver as lentes de realidade virutal Oculus VR. Em 2016, a empresa lançou
seu primeiro protótipo. Qual sua opinião sobre uma empresa acusada de negociar
com os dados dos usuários excursionar pelo campo da realidade virtual?
O Facebook quase perdeu a plataforma de telefones
inteligentes. Chegaram aos telefones muito tarde, e muitos temiam que a
companhia não os alcançasse. Ao comprar a Oculus Rift, asseguram-se de que, se
a realidade virtual converter-se num grande negócio (embora eu creia que isso
não ocorrerá), então estarão participando da corrida.
Mas eles ainda não sabem o que fazer com isso.
Talvez jogos. O que é certo é que criarão um entorno muito mais controlado para
manipular as pessoas, e poderão observar muitas dessas decisões insignificantes
que tomamos costumeiramente. Obterão muita informação sobre nossas formas de
movimentar-nos através desses entornos.
Que tipos
de medida os governos devem tomar para controlar o que empresas como o Facebook
poderiam fazer, através da realidade virtual, com nossos dados? Ainda dá tempo
de regular isso?
A Europa é melhor nisso do que a América do Norte.
Nos Estados Unidos acredita-se que impedir uma corporação de fazer algo é como
dizer a Deus que se cale. O mercado é a sabedoria do universo, que se expressa
nos assuntos humanos. Controlar uma empresa é considerado uma afronta à
natureza.
O problema com a regulação é que as empresas que
supostamente estão reguladas são com frequência as que terminam escrevendo as
regras. E as escrevem de modo a garantir seus próprios monopólios. Creio que o
mais fácil é converter as plataformas tecnológicas mais gigantescas – as que
todos usam – em bens públicos.
Em seu
último livro, Throwing Rocks at the Google Bus, você afirma
que a Amazon proporciona o exemplo mais claro de como – contrariamente ao sonho
da economia colaborativa que muitos imaginaram ser possível no início da
internet – os velhos valores corporativos foram amplificados graças à rede. Que
tipos de prática as grandes empresas surgidas em tempos de economia digital,
como a Amazon, executaram?
Elas destroem as empresas com que trabalham.
Exploram seus trabalhadores, conhecidos como os “turcos mecânicos” da Amazon.
Pagam uma ninharia para que façam o trabalho com os computadores, inclusive
porque não têm como denunciar, se quem os contrata decide não pagar. Exercem o
controle do monopsônio [também chamado “monopólio do comprador”] para pagar
menos e exigir mais. Não ajudam as pequenas empresas a intercambiar valor entre
elas. Convertem-se na única plataforma e aproveitam seu monopólio para expulsar
as pequenas empresas do negócio. É uma má estratégia a longo prazo, porque se
ninguém tem dinheiro, não podem gastá-lo na Amazon.
Como a
Amazon afetou a indústria do livro?
O que a Amazon fez de mais notável foi prejudicar editores e autores. Pagam por livro menos que as livrarias normais. Preferem perder dinheiro com a venda de livros para que as outras livrarias se arruinem. É um conceito difícil de entender: venderão livros abaixo do custo com o objetivo de fazer com que outras livrarias fechem. Não lhes importa o ganho de seus livros. Querem ser um monopólio. E assim, quando forem os livreiros mais importantes do mundo, poderão finalmente impor suas condições aos editores. Podem estabelecer preços, controlar a distribuição e cortar da lista de livros os que não estejam de acordo com eles. É muito assustador, na verdade. O plano, a longo prazo, é que todos os autores trabalhem diretamente para a Amazon. É o que já propõem, de fato, a alguns escritores.
O que a Amazon fez de mais notável foi prejudicar editores e autores. Pagam por livro menos que as livrarias normais. Preferem perder dinheiro com a venda de livros para que as outras livrarias se arruinem. É um conceito difícil de entender: venderão livros abaixo do custo com o objetivo de fazer com que outras livrarias fechem. Não lhes importa o ganho de seus livros. Querem ser um monopólio. E assim, quando forem os livreiros mais importantes do mundo, poderão finalmente impor suas condições aos editores. Podem estabelecer preços, controlar a distribuição e cortar da lista de livros os que não estejam de acordo com eles. É muito assustador, na verdade. O plano, a longo prazo, é que todos os autores trabalhem diretamente para a Amazon. É o que já propõem, de fato, a alguns escritores.
Você
mencionou numa entrevista anterior que empresas como a Uber estão realmente
usando seus motoristas como “pesquisadores de desenvolvimento”, e assim
preparam o terreno para o negócio real: treinar o algoritmo para as viagens que
os veículos automatizados farão no futuro…
Ao longo da história da humanidade,
e certamente desde a era industrial, as novas tecnologias fazem com que certas
habilidades humanas tornem-se obsoletas. Então, as pessoas procuram outro trabalho.
Agora mesmo está ocorrendo em múltiplos setores: alimentos, medicamentos,
educação, transportes, recursos, energia e inclusive entretenimento e arte.
O importante a ser lembrado, ao analisar esses
problemas, é enxergar o que as empresas de fato pretendem ao excluir o trabalho
humano. É realmente mais barato? É melhor? Não. Simplesmente elimina os humanos
da equação. A longo prazo, a consequência disso é que não sobrarão seres
humanos para comprar os bens e serviços.
Em 1988,
Isaac Asimov previu, numa entrevista à BBC, que graças aos computadores, em
poucos anos, cada pessoa seria capaz de aprender em seu próprio ritmo, de forma
autodidata e durante toda a vida. Você crê que, em certa medida, isso se
cumpriu?
Sim e não. A rede oferece enormes possibilidades
educativas, desde a Wikipedia até o aprendizado a distância. Mas elas
certamente não representam a cultura em rede dominante hoje em dia. E em muitos
casos está sendo utilizada para minar o impacto mais subversivo e
verdadeiramente humano da educação. Uma aula ou uma biblioteca digital online
oferece uma grande oportunidade a quem não as teve antes, mas também prescinde
do fator humano: o intercâmbio vivo de ideias e valores. Um bibliotecário
humano é muito mais que uma base de dados.
Todos tinham os mesmos pensamentos otimistas sobre
a televisão logo que ela apareceu. Ia ser a grande educadora. Supunha-se que em
particular a televisão a cabo desencadearia uma nova revolução na educação.
Contudo, nada disso aconteceu. Nenhuma mídia promoverá valores por si mesma.
Ela só pode expressar os valores daqueles que a estão desenvolvendo. Neste
momento, esses são os valores dos especuladores, razão pela qual as soluções
educativas que vemos se desenvolvendo são as que têm modelos de negócios
ampliáveis.
Há alguns
dias, o New York Times voltou a publicar um artigo sobre a
tendência, entre os executivos do Google, de inscrever seus filhos em escolas
Waldorf. Parece que ali aprendem a tecer, interagem com a natureza, mas
sobretudo não é permitido que se exponham a monitores e são proibidos de usar
gadgets. O que isso revela a você?
Escrevi sobre isso há anos, quando as pessoas
sequer acreditavam que fosse verdade. Para mim, significa que são hipócritas.
Como os executivos de televisão e publicidade dos anos 1980, que não deixavam
seus filhos ver televisão. É porque sabem que esses meios foram
intencionalmente desenhados para frustrar a cognição, fazer com que as pessoas
tenham medo, sejam burras e sintam-se sós e desesperadas. Isso não é teoria da
conspiração. Os designers de interfaces das principais empresas tecnológicas do
Vale do Silício estudam “captologia” em Stanford. Leem livros sobre o
funcionamento das máquinas caça níqueis de Las Vegas para desenhar algoritmos
que viciem.
As tecnologias digitais estão desenhadas
especificamente para viciar, criar comportamentos obsessivos e fazer com que as
pessoas prefiram as experiências digitais às reais. Os que fazem esse trabalho
sabem que muito ruim e insano, e com razão querem proteger suas famílias dos
possíveis danos.
Algumas
pessoas apontam a simplicidade moralista, a agressividade e a irritação diante
de opiniões contrárias que as pessoas demonstram na internet. Há alguma relação
entre a forma como essas plataformas foram configuradas e a ascensão online,
nos últimos anos, de grupos como ultra-direita [alt-right] nos Estados Unidos?
Essas plataformas foram concebidas para provocar
respostas simplistas, impulsivas e primitivas — subreptícias. Estas são menos
reflexivas que as reações dos mamíferos, e muito menos que as das comunidades
de humanos.
Nossas emoções e condutas mais humanas provêm de
uma parte do cérebro chamada neocortex. É a parte que as plataformas digitais
tratam de evitar a todo custo. A captologia é a ciência de driblar o neocórtex
e chegar diretamente no tronco do encéfalo. Essa é a parte que diz “matar ou
morrer”. Se essa é a parte do cérebro que está ativa online, ela fomentará esse
tipo de comportamento primitivo.
Você
incluiu os efeitos das tecnologias digitais no conceito de “choque de
presente”. Como se poderia vincular essa ideia a nossa propensão a crer em fake
news e pós-verdade?
Minha ideia de “choque do presente” se referia à
ênfase que as tecnologias digitais aplicam ao momento presente. Mas não ao
presente real, e sim a uma instantaneidade e avalanche de dados e escolhas que
fazem com que pareça que temos de estar alertas o tempo inteiro. É muito
desorientador. Isso nos leva a desejar algo familiar. Qualquer coisa com uma
forma familiar, seja ou não verdadeira. Odiamos o caos. Preferiríamos que uma
pessoa malvada governasse o mundo a que ninguém o governasse. Isso é mais
familiar e seguro.
No ano
passado, veio a público a notícia de que o governo mexicano estava usando o
software Pegasus para espionar jornalistas através de seus telefones celulares.
Que potencial têm esses aparatos para intrometer-se em nossa privacidade?
Nossos dispositivos têm capacidade de conseguir
acesso total a nossas vidas. Tudo. E não somente as coisas que você sabe sobre
si mesmo, que tipo de sexo gosta, como se masturba, que drogas usa, mas também
as coisas que não sabe sobre si. Essa é a parte mais perigosa. Podem usar
macrodados (Big Data) para saber o que provavelmente fará no futuro. Eles
sabem, antes de você, se ficará doente, se se divorciará, se mudará de sexo… qualquer
coisa.
A única coisa que impede as empresas de explorar
essa capacidade é o medo da lei ou seu sentido ético. Mas até o momento não as
vejo preocupadas com nenhum desses aspectos.
Frequentemente
nos chegam notícias de novos protótipos robóticos que fazem piruetas e se movem
com incrível agilidade por terrenos acidentados. Qual é, na sua opinião, a
característica humana que os robôs nunca poderão adquirir ou imitar?
É precisamente esse o tema de dois dos meus livros,
de modo que talvez possa responder um pouco mais brevemente. Que significa ser
humano? Podemos ver isso da perspectiva da consciência, da inteligência, da
biologia, da espiritualidade, da arte ou do amor? Em que diferem os humanos dos
animais em cada um desses aspectos, como diferem dos computadores? Como você
pode ver, é um grande conjunto de problemas.
Penso haver uma diferença entre informática e
pensamento. Creio que os computadores podem resolver muitos dos problemas que
um cérebro humano pode resolver, mas não creio que sejam conscientes de que
estão resolvendo os problemas, do mesmo modo que uma pá não sabe que está
cavando. Então, quando decidimos substituir a humanidade por computadores,
temos que perguntar: por que se incomodar, se as máquinas nem sabem que estão
lá?
No início
dos anos 1990, em São Francisco, você foi testemunha de como surgiu a cultura
rave, junto com o otimismo tecno e a espiritualidade psicodélica. A promessa
parecia ser de que a tecnologia e os valores do humanismo se uniriam, numa
simbiose promissora. Como crê que poderíamos voltar ao ethos original desse
renascimento digital, sem que ele implique um retiro perpétuo nas montanhas ou
o ingresso numa espécie de idade pré-digital?
O mais provável é que façamos isso por necessidade.
Simplesmente seremos pobres demais para participar desta sociedade industrial
digital. Precisaremos de casa e comida, e para isso teremos de voltar a
aprender os conceitos básicos. Isso nos fará trabalhar com nossas mãos e com as
outras pessoas. Aprenderemos a trabalhar juntos. Olharmo-nos nos olhos, tomar
decisões juntos e colaborar.
A outra possibilidade é que a geração que cresce
agora simplesmente compreenda que os humanos estão à beira da extinção, e que a
sobrevivência requer desconectar-se dessas máquinas, acabar com a escravidão
adotada para fabricá-las e romper com o controle mental que nos liga a elas.
Que papel
teriam os artistas e os humanistas nesse renascimento digital?
Os artistas rompem mitos. Ao admitir que o que
fazem é artifício, revelam o artifício à sua volta. Seu papel sempre foi
explorar o significado de nossa existência: romper as ilusões que se colocam no
caminho, sejam elas o medo, o mercado, a dominação ou as leis. A arte pode
ajudar a nos demonstrar que os humanos são especiais, inexplicáveis e dignos de
existir. Que há neste mundo algo além do valor utilitário. Que o mundo é mais
complexo do que aquilo que nossos cálculos algum dia resolverão. Penso que os
humanistas são os que tentam convencer-nos de que nossa arte realmente possui
essa capacidade. Essa arte verdadeira é mais que entretenimento ou cuidados paliativos.
Essa arte é o caminho a seguir.
Fonte: https://outraspalavras.net/destaques/maquinas-digitais-hora-de-desconectar/
- Acessado em 06.09.2018
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