Educação negativa
Filósofo revolucionou o
ensino ao defender que o conhecimento é, antes de tudo, um produto dos sentidos
e dos sentimentos, e não da razão.
Rousseau
é considerado um dos precursores da psicologia do desenvolvimento e suas ideias
influenciaram praticamente todas as vertentes da escola nova. Mas pouca atenção
tem sido dada para os aspectos filosóficos de sua proposta educacional, em
particular sua reflexão sobre a linguagem e seus desdobramentos nas
epistemologias pragmáticas que, por sua vez, fundamentam práticas pedagógicas
que têm como finalidade a formação de um homem livre e democrático.
Embora
outros filósofos do século XVIII já tivessem abordado a importância da educação
desde os primeiros anos da criança, Rousseau radicalizou ao propor uma educação
desde os primeiros dias de nascimento, contestando a ideia de que haveria na
criança uma razão pronta, a priori, e que bastaria instruí-la com ensinamentos
advindos das diferentes áreas do conhecimento.
Em
seu tratado pedagógico, Emílio
ou Da Educação, defendeu a tese de que o homem ainda
não dispõe de razão até os dois anos de idade e só após esta primeira fase
pré–racional é que passaria a desenvolver uma razão perceptiva, o que se daria
a partir do desenvolvimento físico da criança, estimulando-se os dados dos
sentidos como os da visão, o tato, a audição…, verdadeiros instrumentos da
observação e da experimentação empírica.
Assim,
dos dois aos doze anos o aprendizado deveria se dar através da experiência
direta com as coisas, sem intermediação de um ensino formal. Rousseau chega a
afirmar que “em qualquer estudo que se possa ter, sem a ideia das coisas
representadas os signos representantes não são nada”. Ou seja, o sentido
estaria nas próprias coisas observadas, e não nas palavras ou expressões que as
representam. O equívoco da educação anterior teria sido transmitir um catálogo
de signos que nada representariam para as crianças, com conseqüências nefastas
para sua formação:
“(…)
que perigosos preconceitos não começamos a lhes inspirar ao lhes fazermos tomar
como ciência palavras que não têm nenhum sentido para elas! É a partir da
primeira palavra com que a criança se contenta, é a partir da primeira coisa
que aprende confiando na palavra de outrem, sem ter ela própria percebido a sua
utilidade, que seu juízo está perdido: terá muito tempo para brilhar diante dos
tolos antes de reparar tal perda”.
Com
essas reflexões pedagógicas, Rousseau foi o primeiro pensador a propor uma
concepção de conhecimento que não vê a razão como instrumento para a formação
de ideias, mas como produto de um desenvolvimento que se dá a partir dos
sentidos e dos sentimentos. Segundo o filósofo genebrino, estes precedem a
razão e estariam na base da natureza humana. Daí a importância de uma educação
que priorize os sentimentos e desenvolva os sentidos, processo que se daria por
estágios bem delimitados, e que se iniciaria desde o ventre materno.
Necessidades naturais
Mas
sua reflexão pedagógica vai muito além de questões didáticas e metodológicas ou
mesmo epistemológicas, pois também tem finalidades políticas. A grande
preocupação de Rousseau em seus escritos filosófico-educacionais é a de como
formar um homem livre de preconceitos transmitidos pela instrução formal e é
nesse sentido que propõe uma educação negativa: nada deve ser ensinado através
de palavras até a idade de doze anos, protegendo-se, assim, “o coração contra o
vício e o espírito contra o erro”.
A
ação, segundo ele, deve anteceder a razão, deve-se exercitar os sentidos e
aprender a julgar através deles: “(…) não é claro que, quanto mais ela [a
criança] agir, mais se tornará judiciosa?”. Só no final desse processo ativo é
que se formaria uma razão intelectual, que possibilitaria discernir a verdade
da falsidade e a bondade da maldade.
Só
então é que a criança poderia ter acesso a lições verbais, quando já é capaz de
questionar e julgar o que está sendo dito; evitando-se, assim, uma mera
submissão ao discurso dos adultos, que as tornam dependentes e escravas de suas
instruções.
Para
Rousseau, toda corrupção na sociedade consistiria na existência de alguns que
mandam e outros que obedecem, e essa obediência não é natural, mas sim
convencional. Daí a importância de, na primeira fase da infância, se restringir
a dependência da criança às suas necessidades naturais e ao contato com as
próprias coisas, evitando-se ao máximo a instrução formal, como modo de
prepará-la para o exercício da autonomia e da liberdade.
É
claro que essas ideias têm implicações políticas que, na sua época,
interessaram às alas mais radicais da Revolução Francesa, como o republicano
Robespierre, pois propõem a formação de um homem livre, que terá formado uma
razão capaz de discernimento e que, portanto, não suportará qualquer tipo de
tirania ou injustiça. É um ideal que seduz até hoje todos os sistemas
educacionais que acreditam na mudança política através da educação.
Mas
essas ideias também interessam às questões filosóficas no campo educacional:
como esse desenvolvimento de uma razão autônoma se relaciona com a atividade
empírica da criança e o emprego da linguagem? Sabe-se que Rousseau escreveu um
ensaio sobre a origem das línguas e que suas preocupações com a linguagem
transparecem em seu tratado pedagógico em inúmeras passagens.
Influenciado
pelo essencialismo platônico e pela concepção referencial da linguagem do maior
representante da patrística, o filósofo medieval Agostinho, Rousseau extrai
conseqüências pedagógicas destas teorias do significado: “Em geral, nunca
substitua a coisa pelo signo, a não ser quando é impossível mostrá-la, pois o
signo absorve a atenção da criança e faz com que esqueça a coisa representada”
(Emílio).
Como
vemos, o filósofo genebrino insiste em proteger a criança da instrução verbal,
que poderia corrompê-la e desviá-la dos verdadeiros significados presentes de
algum modo no mundo empírico, seja este externo ou interno.
Como
se o papel da linguagem fosse apenas o de “etiquetar” as próprias coisas e,
mesmo assim, por vezes, desviando ou distorcendo e mesmo corrompendo seus
verdadeiros significados…
A forma do espírito
Por
outro lado, ele reconhece, paradoxalmente, o papel fundamental da linguagem na
formação do pensamento, quando afirma que as diferentes línguas “mudando os
signos, modificam as ideias que representam. As cabeças formam-se sobre as
linguagens, os pensamentos tomam o aspecto dos idiomas. Só a razão é comum, o
espírito em cada língua tem sua forma particular, diferença esta que bem
poderia ser, em parte, a causa ou o efeito dos temperamentos nacionais, e o que
parece confirmar esta conjectura é que em todas as nações do mundo a língua
segue as vicissitudes dos costumes e se altera ou se conserva como eles” (Emílio).
Nessa
passagem, percebe-se uma mudança significativa em sua concepção anterior de
linguagem, pois passa a considerar suas relações com o pensamento, desde a mais
tenra idade na criança, como também seu vínculo intrínseco com os costumes de
um povo. A ponto de não indicar o aprendizado de mais de uma língua nos
primeiros anos de vida da criança, uma vez que as línguas mudando os signos também
modificariam
as
ideias que eles representam.
O
ensino de mais de uma língua macularia um de seus princípios pedagógicos mais
fundamentais, apresentados logo no início de Emílio,
a saber, a convergência de três tipos de educação: a que vem da natureza, a das
coisas e a dos homens. Só é bem educado quando todas elas tendem aos mesmos
fins (Emílio).
Assim,
em razão dos diferentes hábitos e instituições de cada nação, seria mais
prudente evitar o ensino de outra língua até a idade de doze anos. Em outras
palavras, Rousseau introduz aqui o aspecto pragmático da linguagem, ao
reconhecer que esta está envolvida com ações e hábitos; e, nesse sentido, uma
mesma palavra pode até remeter a diferentes sentidos, em razão do “espírito” de
cada língua em particular.
Essa
reflexão sobre a linguagem presente em um tratado sobre educação revela outra
preocupação de Rousseau: investigar os processos de constituição do sentido e
suas implicações em sua proposta pedagógica. A incursão pela filosofia da
linguagem aparece curiosamente em uma nota de rodapé no Emílio e é perpassada por um tom confessional:
“Ao
escrever, fiz cem vezes a reflexão de que é impossível, numa obra longa, dar
sempre os mesmos sentidos às mesmas palavras. Não existe língua bastante rica
para fornecer tantos termos, expressões e frases quantas são as modificações
que nossas ideias podem ter. O método de definir todos os termos e de
substituir sem parar o definido pela definição é belo, mas impraticável, pois
como evitar o círculo? As definições poderiam ser boas se não empregássemos
palavras para fazê-las.”
“Apesar
disso, estou convencido de que podemos ser claros mesmo na pobreza de nossa
língua, não dando sempre as mesmas acepções às mesmas palavras, mas sim agindo
de tal sorte que, toda vez que se emprega uma palavra, a acepção que lhe damos
esteja suficientemente determinada pelas ideias que se relacionam com ela e que
cada período em que essa palavra se encontre lhe sirva, por assim dizer, de
definição.”
“Ora
digo que as crianças são incapazes de raciocínio, ora as faço raciocinar com
bastante finura. Não creio contradizer- me nisso nas ideias, mas não posso
deixar de concordar que não raro me contradiga em minhas expressões” (Emílio).
Vemos
aqui explicitado e reconhecido o aspecto pragmático da linguagem: é no uso de
nossas expressões lingüísticas que são constituídos os sentidos, uma mesma
palavra pode ter diferentes acepções dependendo do contexto em que é empregada.
Contradição aparente
Essa
constatação de Rousseau leva a contradições em sua proposta pedagógica? Segundo
ele, como se vê acima, esta é uma aparente contradição, que não prejudica a
coerência de suas ideias sobre qual deve ser a educação para a formação de um
homem livre e capaz de discernimento.
Mas
o que parece ser uma preocupação menor do autor tomará um lugar proeminente nas
ideias de filósofos que se inspiraram em Rousseau, entre eles o filósofo da
educação John Dewey, cujas ideias foram amplamente divulgadas em nosso país
através de Anísio Teixeira, que havia sido seu aluno na década de 1930.
Dewey
também vai privilegiar a atividade da criança, mas ao mesmo tempo não vai
desconsiderar as “lições verbais”, criticando, assim, as vertentes da escola
nova, fortemente influenciadas por Rousseau, que propunham um ensino que
partisse dos impulsos e necessidades naturais da criança, como se os diferentes
conhecimentos de nossa herança cultural pudessem ser construídos
espontaneamente por ela.
Embora
Dewey reconheça a importância da atividade da criança no seu aprendizado,
olhará para os conceitos de nossas teorias construídas ao longo dos séculos
como potentes instrumentos de organização da experiência empírica, resgatando,
assim, a reflexão ainda um pouco marginal e controversa de Rousseau sobre as
relações da linguagem com nossas formas de vida – que, segundo o filósofo
genebrino, moldam o nosso pensamento e constituem o espírito de cada língua.
Dewey
propõe que o ensino recupere o aspecto vivo dos conhecimentos organizados no
programa escolar para além de sua organização lógica. Um professor deve
conhecer muito bem a história de sua disciplina para identificar nos impulsos
naturais da criança aqueles que coincidem com os do cientista, que, diante de
um problema empírico, recorre aos conceitos que dispõe para resolvê-lo,
organizando a experiência de novos modos e cristalizando os resultados obtidos
em novos conceitos.
Em
suma, a ação deve anteceder a formação de novos conceitos, mas ao mesmo tempo é
regida por eles. Dewey parece dar uma ênfase maior ao papel da linguagem no
processo de aprendizagem. A razão se forma imersa na experiência empírica, mas
a partir do trabalho com os conceitos, que dirigem a ação e constituem os
sentidos atribuídos a ela.
Esse
desdobramento das ideias de Rousseau permitiu a Dewey e a outros filósofos da
educação vislumbrarem novos rumos para a educação, ampliando-se, assim, os
conceitos de ensino e de aprendizagem. Novas concepções de ensino e
aprendizagem surgiram, em que aprender não se reduz apenas a uma assimilação
passiva de signos de uma língua, seja ela qual for, mas envolve uma série de
atividades em contextos os mais diversos, condição para a constituição dos
sentidos ou, nos termos de Rousseau, para a obtenção de ideias. O ensino, por
sua vez, passa a ser visto como uma atividade que deve promover a curiosidade
no aluno e seu envolvimento direto com as coisas, propiciando situações em que
o interesse do aluno seja despertado sobre o que se julga necessário ensinar:
“A
arte do mestre consiste em nunca deixar que suas observações se entorpeçam
sobre minúcias que não se relacionam com nada, mas em aproximá-lo continuamente
das grandes relações que um dia deverá conhecer para bem julgar sobre a boa e a
má ordem da sociedade civil” (Emílio).
Partindo
do pressuposto de que toda teoria pedagógica apoia-se em uma teoria do
conhecimento, torna-se inegável a grande contribuição de Rousseau para a
filosofia da educação.
Cristiane Gottschalk
é professora da Faculdade de Educação da USP e coordenadora da área de Filosofia e Educação da pós-graduação na mesma universidade
é professora da Faculdade de Educação da USP e coordenadora da área de Filosofia e Educação da pós-graduação na mesma universidade
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