quinta-feira, 27 de março de 2014

Educação negativa


Educação negativa

Filósofo revolucionou o ensino ao defender que o conhecimento é, antes de tudo, um produto dos sentidos e dos sentimentos, e não da razão.


Rousseau é considerado um dos precursores da psicologia do desenvolvimento e suas ideias influenciaram praticamente todas as vertentes da escola nova. Mas pouca atenção tem sido dada para os aspectos filosóficos de sua proposta educacional, em particular sua reflexão sobre a linguagem e seus desdobramentos nas epistemologias pragmáticas que, por sua vez, fundamentam práticas pedagógicas que têm como finalidade a formação de um homem livre e democrático.

Embora outros filósofos do século XVIII já tivessem abordado a importância da educação desde os primeiros anos da criança, Rousseau radicalizou ao propor uma educação desde os primeiros dias de nascimento, contestando a ideia de que haveria na criança uma razão pronta, a priori, e que bastaria instruí-la com ensinamentos advindos das diferentes áreas do conhecimento.

Em seu tratado pedagógico, Emílio ou Da Educação, defendeu a tese de que o homem ainda não dispõe de razão até os dois anos de idade e só após esta primeira fase pré–racional é que passaria a desenvolver uma razão perceptiva, o que se daria a partir do desenvolvimento físico da criança, estimulando-se os dados dos sentidos como os da visão, o tato, a audição…, verdadeiros instrumentos da observação e da experimentação empírica.

Assim, dos dois aos doze anos o aprendizado deveria se dar através da experiência direta com as coisas, sem intermediação de um ensino formal. Rousseau chega a afirmar que “em qualquer estudo que se possa ter, sem a ideia das coisas representadas os signos representantes não são nada”. Ou seja, o sentido estaria nas próprias coisas observadas, e não nas palavras ou expressões que as representam. O equívoco da educação anterior teria sido transmitir um catálogo de signos que nada representariam para as crianças, com conseqüências nefastas para sua formação:
“(…) que perigosos preconceitos não começamos a lhes inspirar ao lhes fazermos tomar como ciência palavras que não têm nenhum sentido para elas! É a partir da primeira palavra com que a criança se contenta, é a partir da primeira coisa que aprende confiando na palavra de outrem, sem ter ela própria percebido a sua utilidade, que seu juízo está perdido: terá muito tempo para brilhar diante dos tolos antes de reparar tal perda”.

Com essas reflexões pedagógicas, Rousseau foi o primeiro pensador a propor uma concepção de conhecimento que não vê a razão como instrumento para a formação de ideias, mas como produto de um desenvolvimento que se dá a partir dos sentidos e dos sentimentos. Segundo o filósofo genebrino, estes precedem a razão e estariam na base da natureza humana. Daí a importância de uma educação que priorize os sentimentos e desenvolva os sentidos, processo que se daria por estágios bem delimitados, e que se iniciaria desde o ventre materno.

Necessidades naturais
Mas sua reflexão pedagógica vai muito além de questões didáticas e metodológicas ou mesmo epistemológicas, pois também tem finalidades políticas. A grande preocupação de Rousseau em seus escritos filosófico-educacionais é a de como formar um homem livre de preconceitos transmitidos pela instrução formal e é nesse sentido que propõe uma educação negativa: nada deve ser ensinado através de palavras até a idade de doze anos, protegendo-se, assim, “o coração contra o vício e o espírito contra o erro”.
A ação, segundo ele, deve anteceder a razão, deve-se exercitar os sentidos e aprender a julgar através deles: “(…) não é claro que, quanto mais ela [a criança] agir, mais se tornará judiciosa?”. Só no final desse processo ativo é que se formaria uma razão intelectual, que possibilitaria discernir a verdade da falsidade e a bondade da maldade.

Só então é que a criança poderia ter acesso a lições verbais, quando já é capaz de questionar e julgar o que está sendo dito; evitando-se, assim, uma mera submissão ao discurso dos adultos, que as tornam dependentes e escravas de suas instruções.
Para Rousseau, toda corrupção na sociedade consistiria na existência de alguns que mandam e outros que obedecem, e essa obediência não é natural, mas sim convencional. Daí a importância de, na primeira fase da infância, se restringir a dependência da criança às suas necessidades naturais e ao contato com as próprias coisas, evitando-se ao máximo a instrução formal, como modo de prepará-la para o exercício da autonomia e da liberdade.

É claro que essas ideias têm implicações políticas que, na sua época, interessaram às alas mais radicais da Revolução Francesa, como o republicano Robespierre, pois propõem a formação de um homem livre, que terá formado uma razão capaz de discernimento e que, portanto, não suportará qualquer tipo de tirania ou injustiça. É um ideal que seduz até hoje todos os sistemas educacionais que acreditam na mudança política através da educação.

Mas essas ideias também interessam às questões filosóficas no campo educacional: como esse desenvolvimento de uma razão autônoma se relaciona com a atividade empírica da criança e o emprego da linguagem? Sabe-se que Rousseau escreveu um ensaio sobre a origem das línguas e que suas preocupações com a linguagem transparecem em seu tratado pedagógico em inúmeras passagens.
Influenciado pelo essencialismo platônico e pela concepção referencial da linguagem do maior representante da patrística, o filósofo medieval Agostinho, Rousseau extrai conseqüências pedagógicas destas teorias do significado: “Em geral, nunca substitua a coisa pelo signo, a não ser quando é impossível mostrá-la, pois o signo absorve a atenção da criança e faz com que esqueça a coisa representada” (Emílio).

Como vemos, o filósofo genebrino insiste em proteger a criança da instrução verbal, que poderia corrompê-la e desviá-la dos verdadeiros significados presentes de algum modo no mundo empírico, seja este externo ou interno.
Como se o papel da linguagem fosse apenas o de “etiquetar” as próprias coisas e, mesmo assim, por vezes, desviando ou distorcendo e mesmo corrompendo seus verdadeiros significados…

A forma do espírito
Por outro lado, ele reconhece, paradoxalmente, o papel fundamental da linguagem na formação do pensamento, quando afirma que as diferentes línguas “mudando os signos, modificam as ideias que representam. As cabeças formam-se sobre as linguagens, os pensamentos tomam o aspecto dos idiomas. Só a razão é comum, o espírito em cada língua tem sua forma particular, diferença esta que bem poderia ser, em parte, a causa ou o efeito dos temperamentos nacionais, e o que parece confirmar esta conjectura é que em todas as nações do mundo a língua segue as vicissitudes dos costumes e se altera ou se conserva como eles” (Emílio).

Nessa passagem, percebe-se uma mudança significativa em sua concepção anterior de linguagem, pois passa a considerar suas relações com o pensamento, desde a mais tenra idade na criança, como também seu vínculo intrínseco com os costumes de um povo. A ponto de não indicar o aprendizado de mais de uma língua nos primeiros anos de vida da criança, uma vez que as línguas mudando os signos também modificariam
as ideias que eles representam.

O ensino de mais de uma língua macularia um de seus princípios pedagógicos mais fundamentais, apresentados logo no início de Emílio, a saber, a convergência de três tipos de educação: a que vem da natureza, a das coisas e a dos homens. Só é bem educado quando todas elas tendem aos mesmos fins (Emílio).

Assim, em razão dos diferentes hábitos e instituições de cada nação, seria mais prudente evitar o ensino de outra língua até a idade de doze anos. Em outras palavras, Rousseau introduz aqui o aspecto pragmático da linguagem, ao reconhecer que esta está envolvida com ações e hábitos; e, nesse sentido, uma mesma palavra pode até remeter a diferentes sentidos, em razão do “espírito” de cada língua em particular.
Essa reflexão sobre a linguagem presente em um tratado sobre educação revela outra preocupação de Rousseau: investigar os processos de constituição do sentido e suas implicações em sua proposta pedagógica. A incursão pela filosofia da linguagem aparece curiosamente em uma nota de rodapé no Emílio e é perpassada por um tom confessional:

“Ao escrever, fiz cem vezes a reflexão de que é impossível, numa obra longa, dar sempre os mesmos sentidos às mesmas palavras. Não existe língua bastante rica para fornecer tantos termos, expressões e frases quantas são as modificações que nossas ideias podem ter. O método de definir todos os termos e de substituir sem parar o definido pela definição é belo, mas impraticável, pois como evitar o círculo? As definições poderiam ser boas se não empregássemos palavras para fazê-las.”
“Apesar disso, estou convencido de que podemos ser claros mesmo na pobreza de nossa língua, não dando sempre as mesmas acepções às mesmas palavras, mas sim agindo de tal sorte que, toda vez que se emprega uma palavra, a acepção que lhe damos esteja suficientemente determinada pelas ideias que se relacionam com ela e que cada período em que essa palavra se encontre lhe sirva, por assim dizer, de definição.”

“Ora digo que as crianças são incapazes de raciocínio, ora as faço raciocinar com bastante finura. Não creio contradizer- me nisso nas ideias, mas não posso deixar de concordar que não raro me contradiga em minhas expressões” (Emílio).
Vemos aqui explicitado e reconhecido o aspecto pragmático da linguagem: é no uso de nossas expressões lingüísticas que são constituídos os sentidos, uma mesma palavra pode ter diferentes acepções dependendo do contexto em que é empregada.

Contradição aparente
Essa constatação de Rousseau leva a contradições em sua proposta pedagógica? Segundo ele, como se vê acima, esta é uma aparente contradição, que não prejudica a coerência de suas ideias sobre qual deve ser a educação para a formação de um homem livre e capaz de discernimento.

Mas o que parece ser uma preocupação menor do autor tomará um lugar proeminente nas ideias de filósofos que se inspiraram em Rousseau, entre eles o filósofo da educação John Dewey, cujas ideias foram amplamente divulgadas em nosso país através de Anísio Teixeira, que havia sido seu aluno na década de 1930.

Dewey também vai privilegiar a atividade da criança, mas ao mesmo tempo não vai desconsiderar as “lições verbais”, criticando, assim, as vertentes da escola nova, fortemente influenciadas por Rousseau, que propunham um ensino que partisse dos impulsos e necessidades naturais da criança, como se os diferentes conhecimentos de nossa herança cultural pudessem ser construídos espontaneamente por ela.

Embora Dewey reconheça a importância da atividade da criança no seu aprendizado, olhará para os conceitos de nossas teorias construídas ao longo dos séculos como potentes instrumentos de organização da experiência empírica, resgatando, assim, a reflexão ainda um pouco marginal e controversa de Rousseau sobre as relações da linguagem com nossas formas de vida – que, segundo o filósofo genebrino, moldam o nosso pensamento e constituem o espírito de cada língua.

Dewey propõe que o ensino recupere o aspecto vivo dos conhecimentos organizados no programa escolar para além de sua organização lógica. Um professor deve conhecer muito bem a história de sua disciplina para identificar nos impulsos naturais da criança aqueles que coincidem com os do cientista, que, diante de um problema empírico, recorre aos conceitos que dispõe para resolvê-lo, organizando a experiência de novos modos e cristalizando os resultados obtidos em novos conceitos.
Em suma, a ação deve anteceder a formação de novos conceitos, mas ao mesmo tempo é regida por eles. Dewey parece dar uma ênfase maior ao papel da linguagem no processo de aprendizagem. A razão se forma imersa na experiência empírica, mas a partir do trabalho com os conceitos, que dirigem a ação e constituem os sentidos atribuídos a ela.

Esse desdobramento das ideias de Rousseau permitiu a Dewey e a outros filósofos da educação vislumbrarem novos rumos para a educação, ampliando-se, assim, os conceitos de ensino e de aprendizagem. Novas concepções de ensino e aprendizagem surgiram, em que aprender não se reduz apenas a uma assimilação passiva de signos de uma língua, seja ela qual for, mas envolve uma série de atividades em contextos os mais diversos, condição para a constituição dos sentidos ou, nos termos de Rousseau, para a obtenção de ideias. O ensino, por sua vez, passa a ser visto como uma atividade que deve promover a curiosidade no aluno e seu envolvimento direto com as coisas, propiciando situações em que o interesse do aluno seja despertado sobre o que se julga necessário ensinar:

“A arte do mestre consiste em nunca deixar que suas observações se entorpeçam sobre minúcias que não se relacionam com nada, mas em aproximá-lo continuamente das grandes relações que um dia deverá conhecer para bem julgar sobre a boa e a má ordem da sociedade civil” (Emílio).
Partindo do pressuposto de que toda teoria pedagógica apoia-se em uma teoria do conhecimento, torna-se inegável a grande contribuição de Rousseau para a filosofia da educação.

Cristiane Gottschalk
é professora da Faculdade de Educação da USP e coordenadora da área de Filosofia e Educação da pós-graduação na mesma universidade

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