REFLEXÕES SOBRE OS
PRIMEIROS 180 DIAS DE 2015 (IX):
“A democracia como técnica de governo”
A questão paradoxal que se quer colocar em
debate nas linhas que seguem é o fato de se apresentar um discurso consensual
sobre o que é democracia na atualidade, mesmo que esta pretensão se apresente
de forma difusa, ou reducionista como reconhecimento da garantia de direitos
individuais e sociais.
Outro aspecto
desta condição paradoxal do entendimento corrente sobre o que é democracia e suas implicações reside em
posicionamentos autoritários, reacionários, impositivos de governos, de relações geopolíticas e
financeiras globais que se apresentam como democráticas. Ou ainda, numa sociedade cada vez mais
individualizada, de insulamento dos indivíduos em torno da proteção e garantia
de interesses privados, a democracia se apresenta como discurso/dispositivo de
afirmação dos interesses individuais de segurança.
Talvez se possa corroborar com o argumento do
filósofo italiano Giorgio Agamben de que não sabemos adequadamente do que
estamos falando, quando afirmamos que vivemos numa democracia. Ainda nesta
direção, também o pensador italiano Giovanni Sartori, nos chama atenção para o
fato de que estamos desprovidos na contemporaneidade de concordância teórica e,
necessariamente prática em torno de propostas políticas consistentes e, por
decorrência a democracia se apresenta esvaziada de sentido e finalidade.
Apresenta-se como condição cadavérica, desprovida de vitalidade advinda de
demandas societárias articuladas em torno da afirmação do espaço público e do
bem comum.
A polissemia discursiva, que demarca o
esvaziamento da democracia na modernidade e, sobretudo, na contemporaneidade
advém de inúmeras variáveis. Tais variáveis demonstram a profundidade e a
urgência do debate, de procurar compreender o que de fato está ocorrendo na
relação entre o poder constituído, personificado no Estado, nas instituições,
no exercício político dos governos, que conduzem a “Razão política,
administrativa e jurídica de Estado e, sua relação com o poder constituinte, os
indivíduos/cidadãos, que conferem legalidade e legitimidade às instituições e
formas políticas constituídas.
A política que entre os gregos antigos,
gênese da civilização ocidental se apresentava como o espaço da disputa, do conflito,
de debate em vista a preservação do espaço público como justificativa para uma
vida qualificada e, por extensão do bem comum, como condição de possibilidade de
alcance da felicidade. Assim, desde sua origem a política é o campo do conflito
de disputa de interesses, de negociações entre os diversos grupos constitutivos
da cidade-comunidade, mantendo como fim último a preservação do espaço público que
justifica a vida dos cidadãos. Porém, na
modernidade, como a emergência e centralidade da economia política, a vida
biológica dos indivíduos e, da população passa a ser o objeto primeiro dos
cálculos políticos do exercício poder soberano do Estado. A política
transforma-se em gestão política, jurídica e administrativa dos corpos. Importa
como condição primeira potencializar a vida biológica dos recursos humanos
(indivíduo e população) que constituem e fortalecem o Estado.
Esta condição, ou percepção da política como
gestão dos recursos humanos e naturais que pertencem a um Estado,
materializa-se em nossos dias na percepção generalizada de que a política tenha
se transformado no campo de batalhas pela gestão dos bens e recursos
públicos. Parece que o que está em
questão no plano da política é a disputa e manutenção do poder pelo poder. Ou
dito de outra forma, se o campo da política foi reduzido à gestão da população
e do território em função das demandas globais e locais da economia financeira,
o que esta efetivamente em jogo para os políticos e para sociedade é a
manutenção do poder como gestão eficiente e eficaz da coisa pública. Ideologias
partidárias, projetos políticos de sociedade, de desenvolvimento nacional,
territorial, regional, ou mesmo local faz pouco, ou nenhum sentido. O que se busca, ou o que se quer é uma gestão
pública, ou da política que dê segurança de que os direitos individuais e
sociais na esfera da plena produção e do pleno consumo estejam assegurados.
Neste contexto político, a democracia assume
inúmeras concepções, apresenta-se como justificava para os mais diversos
discursos, posicionamentos e interesses, mas, sobretudo, como técnica de gestão
dos bens públicos. Em sua condição
indefinida, amorfa, polissêmica, todos podem ser democráticos, assume-se e, se
estimula a ideia de que a livre expressão da opinião pública é condição ontológica
e, portanto, suficiente da democracia. Todos têm o “direito” de expressar
opiniões sobre qualquer questão, desprovidos de assumirem o dever de
responsabilizar-se pelo que foi dito na forma da opinião. Na esteira desta
concepção de democracia como técnica de governo, ou de governos que se sucedem
na tarefa de gestores do corpo biológico dos indivíduos e da população assumem
importância estratégica na conformação da pauta política os meios de
comunicação de massa. A partir de sua condição de alcance e difusão massiva,
disseminam a concepção de que democracia apresenta-se na forma inquestionável
da opinião pública. Promovem a percepção de que a política é o palco do faz de
conta, do engodo, do ganhar a qualquer custo, dos benefícios privados, da
gestão eficiente e eficaz dos negócios públicos à luz da racionalidade da
gestão dos negócios privados. Na mesma
direção, promovem o embate entre personagens políticos, conferem dimensões
épicas a escândalos políticos, potencializam a representação social de que na política
ou se é do bem, ou se é do mal, reduzindo-a a condição moral e maniqueísta.
Visões reducionistas da política, entendida e
desejada como gestão do bem público. Se a política é gestão, a democracia
apresenta-se apenas como técnica de governo dos corpos. Assim, sociedades
passam a ser consideradas mais, ou menos democráticas pelo acesso ao direito
de “liberdade de expressão” da opinião
pública, mesmo que esta condição não exija do cidadão o dever de procurar compreender e
envolver-se efetivamente no debate em torno de um projeto de sociedade, de
espaço público, de bem comum. Pensar
sobre o exercício da cidadania como condição da democracia é uma das tarefas
mais urgentes do tempo em curso.
Prof. Sandro Luiz
Bazzanella
Professor de
filosofia no ensino superior.
Nenhum comentário:
Postar um comentário