terça-feira, 7 de julho de 2015

REFLEXÕES SOBRE OS PRIMEIROS 180 DIAS DE 2015 (IX): “A democracia como técnica de governo”



REFLEXÕES SOBRE OS PRIMEIROS 180 DIAS DE 2015 (IX):
 “A democracia como técnica de governo”

A questão paradoxal que se quer colocar em debate nas linhas que seguem é o fato de se apresentar um discurso consensual sobre o que é democracia na atualidade, mesmo que esta pretensão se apresente de forma difusa, ou reducionista como reconhecimento da garantia de direitos individuais e sociais.
Outro aspecto desta condição paradoxal do entendimento corrente sobre o que é  democracia e suas implicações reside em posicionamentos autoritários, reacionários, impositivos de  governos, de relações geopolíticas e financeiras globais que se apresentam como democráticas.  Ou ainda, numa sociedade cada vez mais individualizada, de insulamento dos indivíduos em torno da proteção e garantia de interesses privados, a democracia se apresenta como discurso/dispositivo de afirmação dos interesses individuais de segurança.

Talvez se possa corroborar com o argumento do filósofo italiano Giorgio Agamben de que não sabemos adequadamente do que estamos falando, quando afirmamos que vivemos numa democracia. Ainda nesta direção, também o pensador italiano Giovanni Sartori, nos chama atenção para o fato de que estamos desprovidos na contemporaneidade de concordância teórica e, necessariamente prática em torno de propostas políticas consistentes e, por decorrência a democracia se apresenta esvaziada de sentido e finalidade. Apresenta-se como condição cadavérica, desprovida de vitalidade advinda de demandas societárias articuladas em torno da afirmação do espaço público e do bem comum.

A polissemia discursiva, que demarca o esvaziamento da democracia na modernidade e, sobretudo, na contemporaneidade advém de inúmeras variáveis. Tais variáveis demonstram a profundidade e a urgência do debate, de procurar compreender o que de fato está ocorrendo na relação entre o poder constituído, personificado no Estado, nas instituições, no exercício político dos governos, que conduzem a “Razão política, administrativa e jurídica de Estado e, sua relação com o poder constituinte, os indivíduos/cidadãos, que conferem legalidade e legitimidade às instituições e formas políticas constituídas.

A política que entre os gregos antigos, gênese da civilização ocidental se apresentava como o espaço da disputa, do conflito, de debate em vista a preservação do espaço público como justificativa para uma vida qualificada e, por extensão do bem comum, como condição de possibilidade de alcance da felicidade. Assim, desde sua origem a política é o campo do conflito de disputa de interesses, de negociações entre os diversos grupos constitutivos da cidade-comunidade, mantendo como fim último a preservação do espaço público que justifica a vida dos cidadãos.  Porém, na modernidade, como a emergência e centralidade da economia política, a vida biológica dos indivíduos e, da população passa a ser o objeto primeiro dos cálculos políticos do exercício poder soberano do Estado. A política transforma-se em gestão política, jurídica e administrativa dos corpos. Importa como condição primeira potencializar a vida biológica dos recursos humanos (indivíduo e população) que constituem e fortalecem o Estado.

Esta condição, ou percepção da política como gestão dos recursos humanos e naturais que pertencem a um Estado, materializa-se em nossos dias na percepção generalizada de que a política tenha se transformado no campo de batalhas pela gestão dos bens e recursos públicos.  Parece que o que está em questão no plano da política é a disputa e manutenção do poder pelo poder. Ou dito de outra forma, se o campo da política foi reduzido à gestão da população e do território em função das demandas globais e locais da economia financeira, o que esta efetivamente em jogo para os políticos e para sociedade é a manutenção do poder como gestão eficiente e eficaz da coisa pública. Ideologias partidárias, projetos políticos de sociedade, de desenvolvimento nacional, territorial, regional, ou mesmo local faz pouco, ou nenhum sentido.  O que se busca, ou o que se quer é uma gestão pública, ou da política que dê segurança de que os direitos individuais e sociais na esfera da plena produção e do pleno consumo estejam assegurados.

Neste contexto político, a democracia assume inúmeras concepções, apresenta-se como justificava para os mais diversos discursos, posicionamentos e interesses, mas, sobretudo, como técnica de gestão dos bens públicos.  Em sua condição indefinida, amorfa, polissêmica, todos podem ser democráticos, assume-se e, se estimula a ideia de que a livre expressão da opinião pública é condição ontológica e, portanto, suficiente da democracia. Todos têm o “direito” de expressar opiniões sobre qualquer questão, desprovidos de assumirem o dever de responsabilizar-se pelo que foi dito na forma da opinião. Na esteira desta concepção de democracia como técnica de governo, ou de governos que se sucedem na tarefa de gestores do corpo biológico dos indivíduos e da população assumem importância estratégica na conformação da pauta política os meios de comunicação de massa. A partir de sua condição de alcance e difusão massiva, disseminam a concepção de que democracia apresenta-se na forma inquestionável da opinião pública. Promovem a percepção de que a política é o palco do faz de conta, do engodo, do ganhar a qualquer custo, dos benefícios privados, da gestão eficiente e eficaz dos negócios públicos à luz da racionalidade da gestão dos negócios privados.  Na mesma direção, promovem o embate entre personagens políticos, conferem dimensões épicas a escândalos políticos, potencializam a representação social de que na política ou se é do bem, ou se é do mal, reduzindo-a a condição moral e maniqueísta.

Visões reducionistas da política, entendida e desejada como gestão do bem público. Se a política é gestão, a democracia apresenta-se apenas como técnica de governo dos corpos. Assim, sociedades passam a ser consideradas mais, ou menos democráticas pelo acesso ao direito de  “liberdade de expressão” da opinião pública, mesmo que esta condição não exija  do cidadão o dever de procurar compreender e envolver-se efetivamente no debate em torno de um projeto de sociedade, de espaço público, de bem comum.  Pensar sobre o exercício da cidadania como condição da democracia é uma das tarefas mais urgentes do tempo em curso.

Prof. Sandro Luiz Bazzanella
Professor de filosofia no ensino superior.

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