O que perde a
juventude sem Filosofia em sala de aula
Tornar opcional o ensino de Filosofia corresponde a
tirar dos estudantes a disciplina mais adequada para ajudá-los a pensar sobre o
que os torna verdadeiramente humanos
Na próxima semana o Senado tratará da Medida Provisória referente
à reforma do Ensino Médio. Na MP está em questão tornar opcional o ensino de
Filosofia (bem como de outras disciplinas) e, como o Senado tem a prerrogativa
de propor emendas à MP, ainda vale tentar obter alguma clareza no debate,
apostando na capacidade de lucidez e ponderação dos senhores senadores.
Certamente
uma das razões para desobrigar do ensino de Filosofia é uma razão econômica,
embora seja irrisória a quantidade de dinheiro público que será poupada com o
corte de professores e de aulas dessa disciplina (maior será o dano social à
vida dos profissionais e dos estudantes). Outra razão é burocrática e refere-se
à menção explícita de nomes de disciplinas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional. Outra razão, enfim, é mais séria e, vistos os debates que têm
ocorrido em nosso país durante os últimos dois anos, ela parece ser o principal
motor para desobrigar do ensino de Filosofia: trata-se de uma razão
sócio-ideológica que diz respeito à preocupação de setores da sociedade
brasileira com a “doutrinação comunista e ateia” que seria praticada nas aulas
de Filosofia.
Dito
dessa maneira, tudo parece uma caricatura. Na realidade, porém, não há nada de
caricatural. Essa razão foi levantada por vários deputados e senadores, além de
representantes da sociedade civil. Professores de Filosofia seriam marxistas,
militantes petistas, anticristãos, adeptos do casamento homossexual,
abortistas, anticapitalistas, contrários à meritocracia e outras coisas mais.
Assim,
para além das simpatias e dos ódios, é necessário e urgente perguntar: esse
diagnóstico corresponde à realidade? Seriam todos os professores de Filosofia
comunistas e ateus? Seria realmente um ganho para a história mental de nosso
país tornar opcional o ensino de Filosofia?
Num
momento histórico em que muitas pessoas redescobrem a importância do pensamento
filosófico (quando mesmo grandes empresas têm valorizado profissionais dotados
de conhecimentos filosóficos, porque são capazes de análises mais globais e de
pensamentos mais complexos), urge perguntar por que o Brasil pretende frear a
ampliação da cultura filosófica em vez de acelerá-la?
Aliás, outros países da América Latina também têm puxado o mesmo
freio, o que faz pensar que a verdadeira razão para desobrigar do ensino de
Filosofia talvez venha do medo de velhos fantasmas como o comunismo, a
destruição do cristianismo, o ataque contra os valores da família etc.
Um
parêntese histórico curioso: os partidos de direita e de centro-direita fazem
hoje o que setores da esquerda fizeram no passado e fazem também atualmente.
Refiro-me a todos aqueles de esquerda que são contra o ensino de
Filosofia porque, como dizem, “diante da falta de professores em alguns
locais, quem dará as aulas serão padres, pastores, historiadores e gente com
qualquer diploma universitário”. Hoje os membros da direita dizem que quem dá
as aulas são “marxistas, comunistas, petistas, ateus, gays, lésbicas e assim
por diante”.
Indo
ao núcleo dessa preocupação, é urgente perguntar se esse diagnóstico
corresponde à realidade. E a resposta para essa questão é redondamente
negativa.
Tenho
conhecimento de causa, não apenas pelo trabalho na universidade em que leciono,
mas também pela observação in loco em vários pontos do Brasil. Atendo-me
apenas ao ponto talvez mais sensível, o aspecto religioso, posso afirmar que o
maior número de professores de Filosofia do Ensino Médio é de pessoas
religiosas ou agnósticas (pessoas que não se dedicam nem a afirmar nem a negar
a existência de Deus e têm grande respeito pelas pessoas religiosas). Talvez
por motivos sociais (o crescimento das religiões cristãs evangélicas e de
setores do cristianismo católico, do budismo, das religiões africanas e outras
religiões), o fato é que a maioria dos professores nos vários pontos que tenho
visitado de norte a sul é uma maioria religiosa ou respeitosa da religião. Do
ponto de vista político, muitas delas são inclusive de direita ou de
centro-direita, muito longe de serem petistas.
Obviamente, quando faz parte do programa curricular o estudo de
pensadores ateus, todos são obrigados a lê-los, inclusive os professores
religiosos. Nesse aspecto, o que conta é a importância desses filósofos para a
história do pensamento; não se pode querer evitá-los como se tivéssemos o
direito de “proteger” os estudantes ocultando deles a verdade histórica.
Ademais, a prática de ler pensadores ateus pode converter-se em um excelente
exercício de reflexão que pode ajudar os estudantes a amadurecer sua fé
religiosa, pondo-a em teste, e mesmo a intensificá-la.
Queremos ou não queremos formar cidadãos livres, responsáveis e
construtores de uma sociedade respeitosa e democrática? Se esse é um dos
objetivos centrais da educação, filtrar aquilo que chegará aos estudantes,
deixando a Filosofia em segundo plano e ao gosto das possibilidades
“opcionais”, significa atacar a única disciplina que, no contexto atual,
levanta a pergunta pelo sentido dos saberes, das práticas, das artes, da
religião, enfim, dos vários aspectos da existência.
O caso do falso debate entre criacionismo eciência
Para
dar um exemplo mais concreto do bem que a formação filosófica pode fazer mesmo
a pessoas religiosas, evoco aqui uma experiência que vivi quando lecionei no
Ensino Médio (e que constantemente se repete na universidade): um grupo de
estudantes estava muito angustiado depois de algumas aulas de Biologia, pois
haviam estudado a teoria do Big Bang ou do que se chama em geral de “a grande
explosão” que teria ocorrido nos inícios do Universo, e o professor de Biologia
teria afirmado que a teoria do Big Bang provava a inexistência de Deus.
A
ocasião não podia ser melhor para que eu atuasse como professor de Filosofia. A
primeira coisa que propus em aula foi estudar o modo como se constrói o
conhecimento em Biologia e nas ciências em geral, avaliando sobretudo a base
que permite construir conceitos como início, causa, fim, finito, infinito,
além de debater o que significa uma teoria e mesmo a verdade em ciência. Alguns estudantes quiseram
logo tirar a conclusão de que o professor de Biologia estava errado, porque
perceberam não apenas que nenhum cientista pode ter a pretensão de dizer que
“viu” ou experimentou a infinitude do Universo (mesmo que ele seja infinito),
mas também que não há a menor condição de provar cientificamente a inexistência
nem a existência de um ser criador. Mesmo que haja evidências em um sentido ou
outro, nunca haverá provas propriamente ditas. Outros estudantes, porém,
estavam realmente abalados, porque percebiam que o discurso científico é extremamente
bem construído e baseia-se em dados que podem ser debatidos e testados por
todos os que se instruem nas regras desse discurso.
Depois
de várias aulas de reflexão, de leitura de textos de Filosofia da Ciência, de
Teoria do Conhecimento e de Filosofia da Religião, o ganho foi enorme,
principalmente porque a conclusão mais adequada e mais lúcida era a de que a
teoria do Big Bang não anula a fé na criação e que tampouco a fé na criação
impede de adotar a teoria do Big Bang.
O
dado comum percebido por todos era o de que o debate “criacionismo versus eternidade
ou infinitude do Universo” é um falso debate, fundamentado no erro de tomar o
criador do Universo por uma “parte” do mesmo Universo (e, por conseguinte,
passível de ser provado ou não). Tanto os estudantes religiosos se apegavam a
uma visão demasiado infantil do criador, como o professor de Biologia também
era imaturo ao achar que sua briga era com aquele criador infantil. O erro
conceitual do professor era explícito: ele tratava o ser divino como uma parte
do mundo, querendo submetê-lo às leis da Física, da Química e da Biologia, em
vez de entender que o ser divino, para ser tratado adequadamente, deve ser
visto como transcendente ao mundo e suas leis.O mesmo erro era cometido pelos
estudantes, pois, ao defendê-lo, o reduziam a uma parte do mundo e traíam sua
transcendência.
Trocando
em miúdos, o Universo pode ter surgido de uma explosão inicial, pode ter sempre
existido, pode caminhar para um fim ou para a eternidade. Nenhuma dessas
teorias impede pensar que um ser divino criador está no fundamento do Universo.
Nunca será irracional crer que há um porquê para o dinamismo cósmico, pois
provar a irracionalidade dessa crença exigiria provar o absurdo de seu
fundamento mesmo, o ser divino, que, por definição, não é parte do mundo, não
estando, portanto, sujeito a nenhum tipo de prova. Crer ou não crer são
atitudes que envolvem não apenas o pensamento, mas também o sentimento
(especificamente o sentimento religioso, na linha do que diziam Friedrich Schleiermacher
e Rudolf Otto) e a vontade.
Relegar
o ensino de Filosofia à categoria de “opcional” é diminuir ou anular a
possibilidade de os estudantes desenvolverem exercícios desse tipo. É construir
uma visão formativa em que os saberes técnicos têm prioridade, caindo-se na
ilusão de que mais aulas de Português e Matemática vão realmente fazer os
estudantes pensar e exprimir-se com correção.
Nós,
brasileiros de hoje, temos uma grave responsabilidade pelo tipo de mente que
desejamos formar nas crianças e jovens. São eles que continuarão a construção
do Brasil. Queremos um futuro com pessoas de mente aberta, respeitosa e madura
ou de mente fechada, medrosa, imatura e agressiva?
Caso o estudo de Filosofia se torne opcional, é óbvio
que alguns estudantes continuarão a ter acesso a ela, porque frequentarão as
melhores escolas; mas a imensa maioria sequer ouvirá falar dela. O que sentimos
diante desse quadro? Vamos dar de ombros e deixar acontecer a construção de um
país desigual, autoritário, exclusivista, violento e mentiroso?

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