A BANALIDADE DO MAL
Barbárie: compartilhar
Longe do
silenciamento das massas promovido pela TV ou o rádio, a internet autoriza a
fala, o julgamento, a expressão emotiva e, nessa permissão codificada, deles
nos dispensa, desacostuma, até que, sem a menor necessidade de censura, os
atrofia. Se o automatismo resultante é mais palpável na operação oca de
“curtir”, este se torna menos evidente nos espaços destinados à escrita
No final
da década de 1990 assisti, na graduação, a uma aula de Gabriel Cohn a respeito
do livro Revolução ou barbárie, de Rosa Luxemburgo. Lá pelas tantas, ele parou
a exposição, olhou para a lousa e se deteve por alguns segundos, em silêncio,
pensando consigo mesmo, até que murmurou: “Barbárie… barbárie…”. Voltando-se
novamente para os estudantes, disse: “Talvez falte apenas colocar a plaquinha”.
Estávamos em plena era do “desmanche”, como
se dizia à época. O neoliberalismo desembarcara por aqui com sua procissão de
demissões, precarizações, privatizações, reestruturações, limitações
orçamentárias e cinismo. Colocava-se então, nos termos de Paulo Arantes, como
uma “necessidade meteorológica”. O cinismo viril com o qual se apresentava a
paradoxal obrigação moral de fazer cumprir o que determina a natureza, contudo,
não chegara a seu ápice, ou melhor, ao fundo que hoje vemos levar do “inempregável”
ao “vagabundo” francamente aniquilável. Não se pode negar – aliás, pelo
contrário, propagandeia-se – que a placa está posta, e em letras ofuscantes de
neon. Em termos de ideologia, o aprofundamento nunca é apenas uma alteração de
grau, daí a questão de Cohn não poder mais se apresentar como tal: sabemos da
barbárie e acostumamo-nos com ela. Mais que isso, participamos cotidianamente
de sua exposição espetacular.
II
Parece fazer alguns anos, dada a quantidade
de esgoto que afluiu desde então, mas foi no último janeiro que o secretário
nacional da Juventude declarou, a respeito dos massacres em presídios de
Roraima e Manaus, que o sangue fora pouco, que chacinas do gênero deveriam
ocorrer de modo regular, semanalmente. O site do G1, bem como a maioria
esmagadora da mídia, caracterizou a declaração como “polêmica”, inserindo-a no
campo racional do debate e, ao mesmo tempo, posicionando-se acima dele, em sua
neutralidade noticiosa. A pretensa neutralidade está excluída de antemão pela
própria divulgação neutra da imagem de um genocídio sistemático, pois o que se
neutraliza na exposição é o asco pré-reflexivo que tal sentença produz – ou
deveria produzir, não fosse midiatizada pela descrição imaculada, aparentemente
não mediata, portanto. Por meio do procedimento asséptico, o gatilho da
“polêmica” está pronto para o que se seguirá: os espaços de debate ficam
abertos para os prós e contras poderem se colocar a respeito do que fora
anteriormente posto como passível de argumentação. Apenas por isso já não
deveria parecer estranho que a maioria dos comentários ao pé da página aplauda
a solução final proposta, dado que a notícia é, em si mesma, a celebração do
que pode – é permitido –, a partir de então, existir.
Não são todos, contudo, que o fazem: outros, do
mesmo modo, expressam horror, lamento, tristeza etc. Para além da evidência de
que o choque, transmutado em escândalo, funciona como legitimação da matéria,
bem como da empresa de mídia na qual foi enlatada e distribuída, temos então
uma indignação que, como se sabe, nasce com data de validade vencida. Isso
porque a verdadeira mercadoria da mídia digital é o debate em si – melhor
dizendo, o ingresso para nele tomarmos parte. Não é à toa que, como em qualquer
produto da cultura industrializada, o escândalo-do-dia tenha sua fórmula pronta
para replicação infinita: 1. O caso; 2. A opinião indignada – essa é válida
para os dois lados do embate, qualquer que seja; 3. O momento argumentativo:
textos mais longos, subprodutos da polêmica, que podem se desdobrar em outros
spin-offs igualmente polêmicos; 4. O momento autorreflexivo: quando a própria
polêmica é polemizada em sua falsidade e/ou inutilidade ou defendida como algo
relevante; 5. Próxima: o vídeo de mais um assassinato levado a cabo pela PM ou
algum post a respeito de, digamos…, turbantes. Não apenas o formato, mas também
o jargão petrificado – denúncia/revolta/exigência de punição – “conferem a tudo
um ar de semelhança”. Apesar da grita, ou de qualquer conteúdo que,
secundariamente, a acompanhe, a indiferença já está posta na forma espetacular
da reação: uma torrente de posts, textos em blogs, comentários, memes, matérias
a respeito das “reações dos internautas” e um infindável etc. Em outros termos,
uma coleção de mercadorias.
Parece difícil nos recordarmos, apesar de ser
uma obviedade, que a internet é a indústria cultural reestruturada e que, como
tal, tem como finalidade a acumulação. A mudança-chave com relação às empresas
fordistas está na gestão do trabalho: enquanto aquelas contavam com um corpo de
empregados regulares, os youtubes da vida podem dispensar o trabalho do câmera,
do roteirista e do ator, pois somos nós que o realizamos gratuitamente. O
Facebook, por exemplo, é um jornal diário cuja produção de conteúdo é realizada
pelo consumidor. Simples assim. E talvez seja essa simplicidade o que mais
obscureça o objeto, pois a nova indústria cultural consegue, ao mesmo tempo,
ampliar a extração de mais-valia absoluta e relativa e, o que no caso desse
setor particular é o mais relevante, manter sua ideologia basilar, nos termos
daqueles que cunharam o termo, as massas, agora renomeadas “multidão”.
Evidentemente não se trata de mera denominação; a participação ativa daqueles
que antes não passavam de receptores passivos transforma tanto o campo da produção
como o do consumo, isso para não falarmos das próprias subjetividades aí
forjadas. Não obstante, trata-se ainda da produção calculada do espetáculo,
mesmo que o manejo das quantidades seja terceirizado ao espectador empoderado,
por exemplo, na forma de “curtidas”, nosso Ibope pessoal. Ou, no caso da
revolta, o rostinho vermelho emburrado, afinal a customização é, hoje, a alma
do negócio. Seria absolutamente constrangedor carimbarmos esse símbolo como
resposta a uma notícia como a supracitada, não fosse o fato de já estarmos
familiarizados com ela – paradoxalmente, acostumados ao choque – e aclimatados
à reação a ela correspondente.
O reino da equivalência ainda impera e, assim
como antes, faz sucumbir tudo o que possa surgir de substancialmente novo. E disto
se sabe: o esquecimento é esperado e, no caso de alguém exposto negativamente,
é mesmo ansiado; no caso de quem almeja alguma permanência, cabe levar em
consideração uma contabilidade eficiente para a gestão da autoimagem em um
espaço “volátil”, como gostam de se referir ao mundo os advogados do mercado. A
impermanência, ou melhor, a descartabilidade quase imediata de imagens,
informações, ideias ou opiniões – também intercambiáveis entre si – torna-se
segunda natureza, o que não significa que, diante dos conteúdos que escorrem
acelerados tela acima, não devamos estar de prontidão: a sagacidade exigida é
diretamente proporcional à desatenção necessária para que nada se fixe. Em
particular, o espanto, que, assim rotinizado, atende à temporalidade de urgências
sucessivas, às quais é imperativa alguma resposta, qualquer resposta. A
história aí contada, plena de ocorrências, sem nenhum acontecimento, só pode se
sustentar pela hipermobilidade produtiva, tão ansiosa quanto exaurida.
Daí a declaração do indizível nos parecer
algo pertencente a um passado remoto do qual, no entanto, não podemos nos
libertar. Em primeiro lugar, por sua reposição infinita e homogênea na forma da
“polêmica”, mas, principalmente, porque a demissão do secretário da Juventude
está aí pressuposta, inscrita em sua dinâmica circular, como um de seus dois
desfechos possíveis, até a próxima.
III
Contudo, a desinfecção da repulsa instintiva
é apenas em aparência a passagem para o âmbito do debate racional. Não que essa
aparência seja logro, ela é forma vazia, na qual se desenrola nosso pastiche de
opinião pública. Temos, para isso, os elementos cênicos apropriados: o espaço
primeiro do emissor, acessível a qualquer um que subscreva determinada rede
social; contamos com o dispositivo reativo, a “curtida” e demais símbolos
correspondentes ao afeto desencadeado – mais que isso, nos é dado o acesso aos
sorrisos ou às lágrimas dos demais; por fim, e mais fundamental, podemos
replicar a emissão primeira ou ainda responder às réplicas, tréplicas, e assim
por diante. Tudo nos leva a crer que a hierarquia da indústria cultural
fordista foi superada e que estamos em um espaço horizontal e aberto. Ou
melhor: acreditando nisso ou não, a exterioridade do debate posta nesses
mecanismos crê por nós. Assim como, em nosso nome, chora.
Longe do silenciamento das massas promovido
pela TV ou o rádio, a internet autoriza a fala, o julgamento, a expressão
emotiva e, nessa permissão codificada, deles nos dispensa, desacostuma, até
que, sem a menor necessidade de censura, os atrofia. Se o automatismo
resultante é mais palpável na operação oca de “curtir”, este se torna menos
evidente nos espaços destinados à escrita. Ou não: basta irmos um pouco além do
sobrevoo que praticamos todos os dias diante da prolixidade – e isso mesmo
quando perspicazmente sintética – para nos darmos conta do caráter coisificado
das palavras. Os termos cuja função primeira é a autopropaganda são precedidos
de hashtag, operação que se presta simultaneamente a uma classificação
automática para o mercado das disputas para o consumo. Não que o destino de
palavras livres da pequena grade seja diverso; seu caráter de carimbo é
indiferente à origem e reduz qualquer sentido visado à capacidade calculada de
circulação ampliada: “coxinhas”, “petralhas”, “feminazi”, “esquerdomacho”,
“manipulação”, “doutrinação”, “fascistas”, “esquerdopatas”, “isentões”,
“diferentões”, “golpe”, “corrupção”, “fora”, “fica”. Uma guerra autorreferida e
autopropulsionada de palavras-imagens que, como projéteis, devem ser tão duras
quanto impermeáveis. Elas simulam a truculência e nela se esgotam. Daí também a
tendência, própria de uma indústria de embates, ao binarismo, cuja tradução nos
termos desse buraco negro que a tudo abarca e uniformiza é “polarização”:
efeito e premissa.
O nome de nosso torturador-maior, latido pelo
deputado em sessão solene, é palavra de mesma natureza, pois o compartilhamento
é, do mesmo modo, o fim inapelável do que se profere para microfones e câmeras.
Como notou Priscila Figueiredo, em “Ouvir Bolsonaro?”: “O exagero retórico aqui
é necessário, pois o nome ‘Ustra’, pronunciado com devoção – como se devesse
adquirir características táteis, tomar corpo e grudar em outros corpos,
especialmente no corpo de Dilma –, constituía mais propriamente uma fórmula invocatória
de tudo que não deveria jamais ser trazido à lembrança, a não ser sob uma
controlada e precisa ritualização, pois deve ser respeitado o temor de que
certas palavras acordem os mortos” (Outras Palavras, 4 mar. 2017). Eis o
problema: e se se tratasse, precisamente, de um ritual que, pelo contrário,
nada invoca senão seu próprio impacto?
IV
A respeito desse deputado, ou de qualquer um
de seus similares, o Porta dos Fundos fez um esquete interessante: o personagem
se encontra com seus assessores para fabricarem o próximo escândalo. Passam em
revista, sistematicamente, os temas de maior ou menor potencial de difusão, bem
como a forma de abordá-los: quanto mais bestial, mais apropriado. A piada é boa
por indicar a racionalidade propagandística operante na desfaçatez própria de
figuras como Trump, Dória e do crescente exército de especialistas no gênero –
parte significativa deles, não à toa, gente parida e amamentada pela indústria
cultural –, qual seja, é a onipresença da coisa, e não a caracterização ou qualificação
a ela associadas, a fonte de seu poder. Trata-se do fundamento do share of
mind, do qual sabemos e o qual ao mesmo tempo ignoramos ao compartilhar a
bestialidade, tomando o cuidado vão de cercá-la dos adjetivos cabíveis. Ou,
pelo contrário, recusando sua exibição explícita, mas, do mesmo modo,
comentando, ampliando, pela negatividade, sua presença fantasmática. É na
ausência desse espectro, contudo, que a cena não pode fechar seu circuito,
deixando a piada incompleta, pois não se trata de pura racionalidade
instrumental, momento secundário da crença exteriorizada.
A rede é imperativa: rejeita a leitura
apassivada, impele à participação. A pergunta, no início da página do Facebook,
semelhante à anedota do cônjuge paranoico, interpela com o uso do nome próprio:
“No que você está pensando, Silvia?”. Como aquele que está sentado no sofá,
provavelmente não pensando em coisa alguma, a única resposta impossível é o
silêncio. O truque seria de pouca eficácia não fosse o mundo digital a mediação
universal de nosso tempo, totalidade essa cuja capacidade de integração faria a
TV corar, caso já não estivesse a ele também amalgamada. Isso não se deve à
tecnologia, como gostam de imaginar aqueles que aí enxergam a pureza do
instrumento desinteressado, mas ao fato de esta estar a serviço da articulação
produtiva de uma sociedade atomizada por sua conversão em mercado. Não
aparecer, melhor dizendo, não agir diante desse outro equivale imaginariamente
a definhar; fora da tela restaria o abismo. Por isso, mais que conferir
estatuto de realidade a tudo o que existe, a ela é atribuído o papel de
geradora da existência – como nas leituras que entendem que os grandes eventos
políticos se devem ao fato de, nela, serem replicados. Mas não é necessário
irmos tão longe: a crítica a tal ilusão não é capaz de romper o feitiço prático
que impede, como que por força da natureza, a desconexão, desdobrando, desse
modo, a realidade tateável do fantasma.
A circulação em rede tem, por isso, o mesmo
sentido para Bolsonaro e para aqueles que, com toda a razão e justiça,
gostariam de compartir a cusparada que, em plenária, ele recebeu. Trata-se de,
virtualmente, dar concretude ao acontecimento que, de outro modo, teme-se ser
esquecido. Então todos, de todos os lados, precisam agir, chamando atenção para
o ocorrido: urgem o compartilhamento, a opinião, a expressão, seja de orgulho,
seja de desgosto. Não é apenas o aparato que nos impele a participar; a
incitação é, principalmente e por isso, eficaz, nossa – como em outra das
proposições-pedregulho próprias das redes sociais: “Precisamos falar sobre…”. A
compulsão pela exibição, entretanto, só pode ser amplificada pelo próprio
formato concorrencial do dispositivo: o que se entende por batalha e, para
piorar, política tem na acumulação meramente quantitativa sua medida; mais que
isso, é na disputa por nichos, mediante uma circulação eficiente de
informações, que se busca constituí-la.
A pulverização do comando para a participação
tanto quanto a emulação que a empurra impõem o caráter tendencialmente
virulento da mensagem – característica que ao jargão não escapa, mas que a
muitos não soa nem um pouco estranha: importa “viralizar”. Meio e fim se tocam
na circulação do que acontece; por isso mesmo, cabem demonstrações cada vez
mais performáticas, para que o que acontece apareça onde as coisas supostamente
acontecem: em rede. Há algo de escancaradamente teatral nos rosnados, impressos
ou filmados, dos ideólogos da barbárie, bem como nas selfies tiradas ao lado de
membros de uma corporação genocida como a PM – nesse quesito, creio que os
videozinhos do prefeito-apresentador dispensam comentários… Contudo, o que
dizer dos rapazes que tatuaram o corpo de um rapaz com aquilo que consideraram
ser seu pecado? Ainda que não tivessem filmado, tendo em vista a exposição e
circulação do crime na internet, sua ação encerra em si mesma o espetáculo
visado: meio e mensagem tornam-se, na ferida exposta, uma única e mesma coisa.
Assim como as palavras digitadas, essas, marcadas na carne com agulha e tinta,
acreditam em nome dos sujeitos.
V
Seria irônico, não fosse trágico, que a
denúncia da crueldade tenha realizado seu verdadeiro fim: a existência em
espetáculo. Não foram poucos os que repassaram a imagem, ou pior, que, em meio
ao automatismo do debate, produziram memes com crimes diversos desenhados na
testa de outros alvos, considerados mais adequados ao estigma. Mais que a
super-ratificação do real bárbaro, e à revelia das intenções, corroborou-se a
precisão da técnica: também ela uma denúncia. A memória da dor está condenada
no mesmo gesto que busca fixá-la: passar adiante é, ao mesmo tempo, e à revelia
das intenções, seguir adiante.
*Silvia Viana é professora de Sociologia da
Fundação Getulio Vargas (EAESP/FGV).
Fonte: http://diplomatique.org.br/barbarie-compartilhar/
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