MISÉRIAS
(E GRANDEZA) DA FILOSOFIA

Um
caminho para levar o pensamento crítico de filósofos realmente dignos desse
nome ao grande público e resistir à onipresença midiática de intelectuais de
segundo escalão a serviço do poder.
Depois
do que atualmente se chama o fim dos grandes discursos – cristianismo,
freudismo, marxismo, estruturalismo – e não obstante sua pretensa morte, nunca
a filosofia esteve tão bem. E, ao mesmo tempo, nunca esteve tão mal… Bem,
porque, sem descontinuar, esperam-se dela sentido, respostas a questões éticas
e políticas, existenciais.
Portanto:
como pensar, viver e agir sem referências transcendentais num mundo submetido
unicamente às leis do mercado? Mal, porque, diante dessa demanda generalizada,
a oferta permite aos medíocres, aos comerciantes, aos cínicos, aos oportunistas
passarem adiante uma série de mercadorias de má qualidade.
Primeiro
tempo: misérias da filosofia. Nesse universo tão implacável quanto os outros –
o sábio nunca se separa de sua adaga e de seus venenos! -, falsamente
policiado, mas verdadeiramente brutal e selvagem, quem legitima o filósofo? Os
estudos universitários? O concurso de ingresso ao magistério de nível médio? O
doutorado? O ensino da disciplina? Com certeza não, pois haveria uma excessiva
abundância. Um Michel-Edouard Leclerc, por exemplo, aluno de seu amigo Michel
Serres, diplomado pela Sorbonne, parece dificilmente merecer esse epíteto.
Linhagem existencial e
linhagem de gabinete
Na
Antigüidade, a coisa era simples: o filósofo vive como filósofo. A prova de sua
essência? Sua existência. Vê-se, por seus hábitos alimentares, pelo corte rente
de seus cabelos ou por seus pelos hirsutos, por seu bastão, sua tigela, sua
veste de linho branco ou seus andrajos, que se está diante de um pitagórico, um
estóico ou um cínico. Porque, nessa época, o termo filósofo designa o indivíduo
que põe em prática uma teoria que lhe permite alcançar a sabedoria – um estado
de beatitude entre ele e ele, entre ele e os outros, entre ele e o mundo.
O
cristianismo oficial modificou a definição ao longo dos séculos. Ainda hoje,
vivemos em parte sob o regime cristão. Este chama de filósofo o personagem que
coloca sua inteligência, seu saber, sua retórica e seu trabalho a serviço do
poder instalado e forja para o uso dos poderosos um arsenal conceitual que
permite, em seguida, a legitimação política de sua ação. Durante séculos, a
filosofia funcionou como disciplina incestuosa e numa lógica de gabinetes. As
pessoas se esforçavam para dissertar sobre o sexo dos anjos, seu número e a
disposição dos tronos no Paraíso, a excelência da guerra santa e justa, os
fundamentos ontológicos aristotélicos da transubstanciação e outras questões
apaixonantes de um corpus escolástico que continua fascinando alguns filósofos
contemporâneos que têm o gosto dos sofismas e das retóricas abstrusas.
Ainda
hoje, a filosofia é trabalhada por essas duas tradições: linhagem existencial e
linhagem de gabinete. Os primeiros pensam em função de uma salvação individual
e visam a uma vida transfigurada, para além da vida mutilada da maioria das
pessoas. São filósofos 24 horas por dia e tentam fazer coincidirem seus
pensamentos e suas ações. Os segundos refletem por outrem, os outros, o mundo,
e não aplicam necessariamente a si suas conclusões, e são, em contrapartida,
muito hábeis em dar lições a todo o planeta.
Epicuro e Heidegger
É
difícil imaginar Epicuro sendo epicurista das 9 horas ao meio-dia, das 14 horas
às 18 horas, tirando férias em agosto – onde? Em Saint-Paul de Vence; ou
aspirando à aposentadoria – para fazer o quê? Gerenciar suas ações na bolsa;
preocupado em preservar seus fins de semana – com que objetivo? Convidar seus
amigos para irem a Marrakesh… Em compensação, não há contra-indicação ao que
Heidegger, em sua pequena cabana na floresta negra e, depois, na Universidade,
explica à sombra dos crematórios sobre o esquecimento do ser, o niilismo
europeu, a restauração da metafísica, e depois denuncia colegas – Eduard
Baugmarten – ao NSDAP1 , com sua carteira do partido
nazista no bolso. Os dois modos de ser são radicalmente antinômicos.
Em
que ponto estão os filósofos hoje? Uns acreditam ainda nas potencialidades
magníficas do Jardim, outros na convivência com a época. Houve filósofos a
soldo do Estado cristão, depois os famosos “idiotas úteis” à ideologia
marxista-leninista, passando pelos cúmplices dos poderes instalados – Platão e
Denys, Voltaire e Frederico II, Carl Schmidt e Adolf Hitler, Jean Guitton e
Philippe Pétain, Alexandre Kojève e Antonio de Oliveira Salazar, Jean-Toussaint
Desanti e Josef Stalin, Jacques Attali e François Mitterrand etc.
Fratura recente
Uma
parte das misérias da filosofia contemporânea decorre de um momento de fratura
recente: 1977. Esta data permite, na verdade, pensar os “novos filósofos” de
outro modo que não como uma pura e simples moda midiática, o que se fez com
demasiada freqüência. É necessário reler ou ler os textos a fim de parar de
reduzir esse tempo filosófico a uma história recortada, de aparição de efebo no
estúdio do programa Apostrophes ou de happening de um Maurice Clavel,
autoproclamado “jornalista transcendental” – muito jornalista mas, no todo, bem
pouco transcendental..
Que
diz esse momento dos “novos filósofos? Gilles Deleuze faz, em seu tempo, uma
análise dessa máquina de guerra: nada de livro, nada de idéias, mas uma
orquestração midiática de amigos e malandros do meio parisiense das “pessoas de
letras” para debates televisionados. A obra desses filósofos? Sua cena na
telinha. Gilles Deleuze enganou-se ao acreditar que se tratava de uma concha
vazia. Aliás, será que se deu o trabalho de ler esses livros? Ele tinha mais o
que fazer e ninguém o critica por isso. Mas as três ou quatro obras que
monopolizaram a crônica na época declaravam guerra à esquerda realmente de
esquerda sob o pretexto de que ela provinha de Marx, portanto de Lênin,
portanto do Gulag. Para evitar o stalinismo na França, seriam celebrados então
novos ídolos: o advento de Tocqueville, a reabilitação de Raymond Aron,
seguidos, mais tarde, por Marcel Gauchet e consortes.
L’archipel
du Goulag2, tão celebrado pelos “novos filósofos”,
demonstrava, pois, que a esquerda francesa era perigosa! Jean-Marie Benoist,
professor assistente de Claude Lévi-Strauss, escreve Les Nouveaux primaires3,
em 1978. A última capa esclarece: “Simpatizante ativo dos novos filósofos”.
Visitado pelo ímpeto que estimula Chateaubriand lutando contra Napoleão, o
filósofo disputa uma vaga de conselheiro geral no Val-de-Marne contra Georges
Marchais. E perde…
A vitória dos “novos
filósofos”
No
entanto, os “novos filósofos” ganharam: seu ódio de uma esquerda verdadeira, a
assimilação desta ao gulag, ao terrorismo, ao stalinismo, portanto, in fine, ao
nazismo, substituída por dois mandatos lamentáveis, para a esquerda, de um
François Mitterrand que, convertido ao liberalismo alguns meses após sua
chegada ao poder, acelerou o movimento de decomposição. Desde então, no Partido
Socialista, a leitura de De la Démocratie en Amérique4 substitui
a de Jaurès. Laurent Fabius instala-se na cadeira de Léon Blum, cadeira que não
acha suficientemente grande para si.
Trinta
anos depois, o balanço é conhecido: desesperança política, abstencionismo
recorde, oportunismo dos partidos que se revezam no poder, violência urbana,
aumento da delinqüência, desemprego exponencial, instabilidade do emprego exacerbada,
transferências de empresas para outros países, acompanhadas agora por ameaças
patronais, retrocesso do social, racismo, xenofobia, anti-semitismo, miséria
social, sexual, mental, afetiva, triunfo da mediocridade mercantil nos canais
de televisão e entre um bom número de editores, desmembramento das políticas de
saúde, de educação, de cultura etc. E presença de Jean-Marie Le Pen no segundo
turno da eleição presidencial.
Oferta débil para
qualquer demanda
Surfando
no mercado liberal, a filosofia tem também seus oportunistas: houve o que
Daniel Accursi chama, em La Nouvelle guerre des dieux5 ,
os “filósofos de sacristia” que atacavam o pretenso “pensamento 68”, fabricado
inteiramente com um pouco de leituras mal feitas e muita má-fé, para tentar
ocupar o lugar deixado vago no mercado midiático pela explosão da Nova
filosofia, enquanto cada ex-combatente dessa defunta corrente agia agora por
conta própria.. O humanismo kantiano, a volta à ética do autor da Doctrine de la vertu, desemboca, para
Luc Ferry, seu principal bajulador, num ministério onde o nietzschianismo de
opereta fez mais a lei do que o imperativo categórico…
Houve,
depois, La Sagesse des modernes6 , novo breviário ético
para os tempos pós-modernos em que se podia ler que uma canção de Edith Piaf
vale mais que todo Pierre Boulez, que o dodecafonismo é uma impostura porque
não se pode assobiar Répons embaixo do chuveiro (sic…), que a moral cristã
merece uma espanada para tirar o pó conceitual quanto à forma, certamente, mas
de modo algum quanto ao conteúdo, que o slogan da Frente Nacional, “primeiro os
franceses”, não é monstruoso, que em termos de bioética é urgente esperar e
nada fazer, tudo isso regado com uma gota de Epicuro, uma pitada de Kant e de
uma pequena dose de Espinosa.
Eis
porque é preciso votar em Raffarin – que não se engana quanto a isso, visto que
ele confessa na imprensa sua amizade, sua preferência, seu interesse por Luc
Ferry, André Comte-Sponville, Bernard-Henri Lévy, Alain Fienkelkraut e alguns
outros autores do mesmo nível. Falsamente indignados, surpresos, um ou outro
relatou que não conhecia o primeiro-ministro, que só o havia encontrado uma vez,
etc. Mas também se pode gostar das idéias dessas pessoas que falam e publicam!
Que eles não se queixem, portanto, pelo fato de que alguém os leia,
excepcionalmente… E, que se saiba, essas idéias não são francamente
incompatíveis com… digamos, para rir um pouco, a Weltanschauung do Poitevin.
As
misérias da filosofia, para acabar esse aspecto, supõem algumas palavras sobre
a produção formatada por e para o mercado de uma oferta débil para responder a
qualquer demanda filosófica: pequenos tratados, breves manuais (sic), sínteses
sobre as grandes questões em tamanhos pequenos, obras para filosofar sem
Prozac, breves vade-mecum, convites para se tornar filósofo em 24 horas ou
utilizando o celular, e outros livros que constituem uma biblioteca cor-de-rosa
da filosofia. Será possível descer mais baixo?
Filósofos dignos desse
nome
Segundo
tempo, para não morrer de desespero: grandeza da filosofia. De fato, existem
filósofos simpatizantes daquilo que fundamentalmente nega a filosofia,
oportunistas, cínicos, jovens lobos que têm pressa em utilizar o mundo
midiático para se tornar uma figura, um nome suscetível de ser barganhado,
depois reciclado no mercado: jornalista pago por artigo em algum jornal nas
páginas “idéias”, responsável pelo setor cultural de uma revista, consultor de
televisão, figurante em um programa de idéias divulgadas depois da meia-noite,
diretor de coleção, conselheiro literário, membro de um júri, leitor de uma
editora e outras prebendas que apontam sem dificuldade o amigo dos poderes. O
testemunho concreto. Contentemo-nos com olhar.
Mas
há, igualmente, filósofos dignos desse nome, aqueles que dão as costas, por sua
vida, seu pensamento, sua obra, seus escritos, seus comportamentos, seus
engajamentos, aos simpatizantes da infâmia. Há algum tempo, podia-se contar com
um Michel Foucault e Gilles Deleuze; recentemente, com Pierre Bourdieu; hoje,
com um conjunto de filósofos que pensam nossa modernidade de maneira crítica:
como Jacques Derrida refletindo sobre a hospitalidade, o direito à filosofia, a
amizade, a televisão, o terrorismo; Alain Badiou pensando a ética, a estética,
mas também o Kosovo, o 11 de setembro e Le Pen/Chirac; René Schérer efetuando
novas variações seriais e fourieristas sobre o cosmopolitismo; Jacques
Bouveresse analisando o poder da imprensa e a nocividade dos jornalistas na
fabricação de uma opinião pública; Noam Chomsky provando a existência de um Estados-Unidos
diferente daquele do Império; Raoul Vaneigem persistindo num situacionismo
lírico e alegre; Toni Negri dissecando a globalização; depois, Annie Le Brun,
fiel aos vislumbres negros do surrealismo; André Gorz pensando radicalmente o
trabalho, a renda de subsistência, o capital imaterial; François Dagognet
formulando uma epistemologia de esquerda, radical e progressista; Bernard
Stiegler analisando a miséria simbólica e seus efeitos reais hoje. Como não se
alegrar com a fecundidade de um pensamento contemporâneo intenso, crítico, que
mostra a vitalidade de uma filosofia enfrentando aquela que colabora com o
mundo do jeito que ele vai?
Vozes necessárias
Outra
razão para se alegrar: a possibilidade de fazer ouvir uma parte de suas idéias
através da televisão. Porque é preciso sair da alternativa que obriga a
responder à pergunta de maneira simples e sucinta, binária e maniqueísta: a
favor ou contra a televisão em si, de modo absoluto! Igualmente, paremos de
acreditar que existe uma linha de ruptura entre filósofos midiáticos e os
outros. Donde a necessidade de definir uma ética que recuse os dois excessos: a
recusa pura e simples, por princípio – que, com freqüência, é a posição
daqueles que não são convidados e para os quais se torna uma questão de honra
nunca pôr os pés na televisão! -, ou a aceitação sistemática, para ali dizer
qualquer coisa. De modo que é preciso agir como nominalista (o nominalismo é a
arma de guerra contra todos os platonismos), saber que não há televisão em si,
mas programas específicos nos quais se pode, ou não, propor um discurso
alternativo à opinião pública comum, alimentada 24 horas por dia por essa mídia
que é financiada pela publicidade…
Que
Jacques Derrida fale no programa de Edwy Plenel, no canal LCI, sobre o 11 de
setembro, sobre os Estados delinqüentes, que François Dagognet defenda há muito
tempo a homoparentalidade ou a excelência da transgênese na telinha, que se
possa também ouvir Peter Sloterdijk, no programa de Franz-Olivier Giesbert,
tentar uma definição do pós-moderno contemporâneo, que Toni Negri converse com
o excelente Pierre-André Boutang no canal Histoire, como outrora se pôde ouvir
e ver Jankélévitch no programa de Bernard Pivot, Pierre Bourdieu em La Marche
du siècle, Jean-Grançois Lyotard no de Guillaume Durand, que convidou
igualmente Paul Ricouer, René Girard, Claude Lévi-Strauss etc… Todas elas são
vozes necessárias e é útil ouvi-las.
Fórum hiper-moderno
A
televisão não é a Sorbonne: nela não se professa durante duas horas diante de
um público que assiste à aula do professor, o qual lê suas notas sem ser
interrompido ou questionado. Não lhe peçamos o que nunca pretendeu dar: ela não
é a mídia servil do Collège de France, da Universidade ou da Ecole pratique des
hautes études, mas um fórum hiper-moderno. De modo evidente, se esse lugar não
é o anfiteatro do douto, não deve tampouco ser sua sarjeta: colocar a filosofia
na rua não obriga a deixá-la se prostituir. Cada pessoa deve saber, conforme o
convite que lhe é feito, se quer aparecer no programa “Tout le monde en parle”,
ou no “Vivement dimanche” – para onde convergem, em contrapartida, aqueles que
vivem no mundo liberal como um peixe dentro d’água.
Quanto
ao resto, a aparição de um filósofo crítico na televisão vale, sobretudo pela
possibilidade de pôr outras pistas à disposição de quem assiste: o essencial
começa depois de desligar o televisor. Comprar o livro, ler, trabalhar. A
televisão é um meio – etimologia de mídia -, não um fim. Para um pensador
crítico, ir a ela não é um pecado mortal, nem mesmo venial, mas um possível
gesto militante, uma resistência de pixel7 , como se
pôde falar, nos anos negros, de uma resistência de papel.
Em
resumo: há um pensamento crítico e filósofos em quantidade, animados, atuantes.
Eles podem aparecer midiaticamente para fazer ouvir uma palavra alternativa ao
mundo liberal. Se essa oportunidade não for aproveitada pelo telespectador para
efetuar um trabalho pessoal, é menos um problema da televisão transformada em
bode expiatório do que de preguiça intelectual do telespectador que não se
interessa pela filosofia.
Ofertas dignas da
filosofia
Outro
motivo para se alegrar e para diagnosticar um excelente estado de saúde: o
desejo de filosofia. Deixemos de lado os sucessos de livraria fabricados pela
moda, pelo tempo, o que chamo acima de biblioteca cor-de-rosa. Olhemos, antes,
para o lado dos intempestivos gregos e romanos que têm tiragens consideráveis:
sonho, por exemplo, com as reedições, em novas traduções, de livros ou de
fragmentos escolhidos de Sêneca, sobre a velhice e a vida feliz, de Marco
Aurélio, sobre a preocupação consigo e com a sabedoria, de Cícero, sobre a
amizade, o dever, o sofrimento, a morte, de Plutarco, sobre a consciência tranqüila,
de Aristóteles, sobre a ética, muitas provas do desejo de um saber e, depois,
do desejo de reatar com os problemas das filosofias existenciais.
Visto
que a filosofia constitui o objeto de um desejo, é necessário que haja ofertas
dignas dela. Deixemos de lado o café filosófico que recorre ao modelo do
estúdio de televisão com um animador raramente formado em filosofia. Sobre
assuntos amplos, imprecisos ou formulados como uma questão de curso para a
última série do ensino médio, freqüentemente aparecem improvisações pessoais
sem método, sem argumentos, sem lógica, sem substância e, principalmente, sem
conteúdo crítico. A máquina de café filosófico funciona vagamente lubrificada
por um ou dois nomes de filósofos úteis para decorarem discursos públicos, que
tomam a filosofia como refém, mas que, em seu nome, fabricam muito mais uma
oportunidade de sociabilidade do que um exercício filosófico comunitário.
Pensar fora dos guetos
Deixemos
também de lado a Universidade, que reproduz o sistema social, ensina uma
historiografia fabricada sob medida por ela e para ela – platonismo, idealismo,
cristianismo, escolástica, tomismo, cartesianismo, kantismo, espiritualismo,
hegelianismo, fenomenologia e outras oportunidades para não tocar no mundo do
jeito que ele vai….
Depois,
reencontremos formas para praticar diferentemente a filosofia. Quando Bergson
ensinava no Collège de France, as senhoras ali se espremiam, as pessoas se
instalavam nas janelas, as saídas de emergência ficavam apinhadas de público,
punham-se flores sobre a mesa à qual se sentava para fazer sua intervenção – a
tal ponto que ele confessava não ser, afinal de contas, nenhuma bailarina… Ou
Sartre que, em 1945, fez sua conferência sobre o existencialismo em uma sala
perturbada pelos fãs: correria nos guichês de entrada, empurrões, cadeiras
quebradas, pancadas e ferimentos, mulheres em síncope, desmaios, polícia… Dois
momentos em que o público de não especialistas vinha em massa ouvir falar da
relação entre liberdade e vontade, ou das relações entre essência e existência.
Nos dois casos, o público não iniciado veio à filosofia sem a mediação das
instituições habituais.
No
espírito dessa vontade de pensar fora dos guetos, foi criada, em 2002, a
fórmula da Universidade Popular de Caen, conservando o mais interessante da
fórmula universitária: a transmissão de um conteúdo, o trabalho de pesquisa colocado
à disposição do público, a seriedade das informações, a progressão no tempo. A
mesma coisa com o café filosófico, interessante pela liberdade de entrar e de
sair, de ir e vir sem nenhum controle, sem exigência de diplomas, sem nenhuma
condição para vir – gratuidade integral, uma fórmula sem qualquer obrigação ou
sanção. Na primeira hora, propõe-se um curso, com teses críticas e
alternativas; na segunda, examinam-se, coletivamente, as propostas do primeiro
período.
Filosofia alternativa e
radical
Nessa
Universidade Popular8 , os conteúdos são alternativos:
nela se ensinam as idéias feministas (Séverine Auffret) ou o pensamento
político (Gérard Poulouin) na perspectiva de um pensamento crítico e no
espírito da Escola de Frankfurt; nela se abordam também, numa lógica
existencial, a psicanálise (Françoise Gorog), o cinema (Arno Gaillard), a
epistemologia (Jean-Pierre Le Goff), o jazz (Nicolas Béniès), a arte
contemporânea (Françoise Niay); e se pratica a filosofia para crianças (Gilles
Geneviève) a partir da idade de sete anos, considerando-se que a filosofia não
se resume a seu exercício escolar e calibrado – a dissertação e o comentário de
texto canônico – mas que ela pode também consistir na conversa sobre o natural
questionando – e portanto, filosófica – as crianças. Mais tarde, tendo
trabalhado durante anos com eles, pode-se, de modo razoável, considerar os
trabalhos práticos institucionais aos quais, com demasiada freqüência, se reduz
a disciplina para a maior parte dos alunos. Porém, somente mais tarde. A equipe
considera a fórmula de Antoine Vitez, falando sobre o Teatro Nacional Popular
(TNP) – “O elitismo para todos” -, um imperativo categórico.
No
que me diz respeito, proponho ali uma contra-história (filosófica) da
filosofia, concentrando-me nos mecanismos da historiografia clássica: contra a
tradição denunciada acima – a tirania dos idealismos platônicos, cristãos e
alemães -, é proposta, ano após ano, uma leitura do arquipélago pré-cristão
visto do lado antiplatônico, atomista, materialista, cínico, cirenaico,
epicurista; uma desconstrução da fábula cristã e o exame das diversas
dimensões, bem como de seu contexto, das resistências ao cristianismo –
agnósticas, epicuristas renascentistas e humanistas; depois, a proposta de um
outro Grande Século que reabilite o pensamento barroco dos libertinos, antes de
continuar, nos anos seguintes, observando o princípio cronológico. O objetivo?
Mostrar a existência, ocultada pela instituição, de uma filosofia alternativa,
crítica, radical, hedonista, praticável, útil e existencial.
Misérias limpas e
misérias sujas
A
Universidade Popular, com base no princípio libertário do fundador Georges
Deherme, se propõe ser um “intelectual coletivo” para usar uma fórmula de
Pierre Bourdieu. Em outros termos, trata-se, primeiro, de uma equipe
constituída por indivíduos que têm, todos eles, suas particularidade, mas que
estão sempre preocupados em confrontar suas teses, suas teorias, seus
trabalhos, suas leituras com o grupo. Essa comunidade filosófica não visa a uma
univocidade ideológica, mas a uma coerência: uma prática existencial, feliz e
política da filosofia, um engajamento de esquerda que pressupõe que não se
acumula o saber para fins pessoais mas, sim, que o saber seja partilhado, dado
e distribuído aos que, normalmente, dele são privados – o popular da
Universidade Popular.
Com
freqüência, tenho sido criticado pelo uso de “popular” na fórmula Universidade
Popular porque nossa época vendida ao liberalismo transforma em populista todo
empreendimento popular e denuncia como demagogia a aspiração a uma real
democracia direta. O filósofo mundano, parisiense, superexposto pela mídia,
preocupa-se preferencialmente com as misérias limpas: Kosovo, Ruanda,
Afeganistão, Argélia, o 11 de setembro. A miséria suja? O povo, as periferias,
o operário, o proletário, o sem-teto, o sem-direito, o assalariado que recebe
apenas o salário mínimo, o empregado com contrato temporário e, para dizer numa
só palavra, o pobre: que importância podem ter? É a negligência deles que
fabrica o segundo turno da eleição presidencial que conhecemos: da miséria suja
nascem as políticas sujas. Não as impedir, ainda que modestamente, sobretudo
modestamente, é contribuir para elas.
Combate ao microfascismo
O
fascismo de farda, militar, de botas, desapareceu enquanto tal. O poder está em
toda parte – ensinamento de Foucault – e o microfascismo substituiu, portanto,
a fórmula totalitária maciça – ensinamento de Deleuze. Como combater esse
microfascismo? Por meio de micro-resistências. Construir individualidades
esclarecidas, fortes, serenas, poderosas, decididas, dotadas de uma vontade
firme, bem consigo mesmas – que é a condição para se estar bem com os outros.
Passar da vida mutilada à vida justa e boa através da vida transfigurada. Um projeto
existencial e político.
O
intelectual coletivo que é esta comunidade filosófica da Universidade Popular
propõe, como anti-república de Platão (fechada, cercada, totalitária,
hierarquizada, racial), um Jardim de Epicuro (aberto, livre, igualitário, amigável,
cosmopolita) fora dos muros. Não mais confinado num espaço arquitetônico e
sedentário, mas nômade, irradiando a partir de si. Essa micro-sociedade móvel
pode produzir efeitos por capilaridade: após o desaparecimento do projeto
revolucionário insurrecional e do único apoio deleuziano do “devenir
revolucionário dos indivíduos”, restam-nos as revoluções moleculares –
ensinamento de Guattari. Tarefa eminentemente apaixonante…
(Trad.: Iraci D. Poleti)
Notas:
1 - Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães.
Organizado a partir de 1920.
2 - Alexandre Soljénitsyne, L’archipel du Goulag, Seuil, Paris, 1973.
3 - Jean-Marie Benoist, Les nouveaux primaires, Hatier, Paris, 1978.
4 - Alexis de Tocqueville, De la démocratie en Amérique, Flammarion, Paris (reedição col. de bolso).
5 - Daniel Accursi, La nouvelle guerre des Dieux, Gallimard, Paris, 2004.
6 - Luc Ferry et André Comte-Sponville, La Sagesse des modernes, Robert Laffont,
Paris, 1999.
7 - N.T.: Um pixel (picture element) é a menor partícula homogênea capaz de ser registrada e
transmitida por um sistema informático.
Michel Onfray - outubro 1, 2004
Fonte: https://diplomatique.org.br/miserias-e-grandeza-da-filosofia/
Nenhum comentário:
Postar um comentário