O PROGRESSO DA
CIÊNCIA-ESPETÁCULO

Insatisfeita com sua condição, a humanidade quer
acreditar nas promessas da tecnologia. Mas quando esta se manifesta, a
impostura do imediato e a ilusão de proximidade privam o homem de se conhecer a
si próprio e aos outros
“O progresso” como eles dizem, “funciona”, declarava Tom
Smallways, herói de um romance de H. G. Wells. “Funciona e a gente se pergunta
como é que pode continuar funcionando.” Cem anos após esta declaração, cabe
perguntar como é que pode continuar funcionando. Será que o paradoxo do
desenvolvimento científico, como o do ilusionismo – ao qual ele deve muito –
produziu um perigoso bando de anões, metidos a gigantes, que consideram
verdadeiro o que era apenas manipulação das aparências, falcatruas e, em certos
casos, um prato feito de absurdos?
Durante o longo status quo nuclear do século XX, o
progresso tecno-científico assumiu um aspecto muito particular pois, ao entrar
no domínio da pura estratégia militar, tornou-se uma arte do falso ao serviço
da arte da mentira2. Quando, na
época, se falava de “sociedade do espetáculo”, de “política-espetáculo”, de
“alienação das massas”, no fundo, tratava-se, principalmente de
“ciência-espetáculo”. O que estava em pauta era a espetacular revolução do
complexo militar-informático-científico que passou, em poucas décadas, da
ameaça totalitária à ameaça planetária, graças ao desdobramento dos satélites
de observação, isto é de uma “grande lente” cujo objetivo declarado era o de
transformar o planeta em uma única sala de filmagem e de projeção...
A
era dos super-homens
A partir de então, os Terráqueos, deslumbrados, puderam
ver em suas múltiplas telas inúmeros prodígios – cada qual mais mítico que o
outro – e sonhar com novas perspectivas médicas, cirúrgicas, genéticas,
olímpicas...
Em 4 de outubro de 1957, o Sputnik I era colocado em
órbita e desafiava os ocidentais emitindo o seu bip-bip publicitário. Foi
enviado então ao espaço um pequeno zoológico, e o bom público se comoveu com a
cachorra Laika, morta em nome da ciência, antes que o super-homem soviético,
Yuri Gagarin, fosse lançado por sua vez na pista das estrelas, em 12 de abril
de 1961. Oito anos mais tarde, em 21 de julho de 1969, os telespectadores
puderam ver ao vivo o super-homem norte-americano, Neil Armstrong, saltitar e
apanhar pedras no solo de um circo lunar.
Como homem de espetáculo prevenido, Orson Welles, em seu
comentário sobre a televisão e as imagens computadorizadas, observava: “Fizemos
um milagre e todo mundo diz: ‘É maravilhoso!’ Mas quem se interessará pela
segunda viagem do homem à Lua ? Ninguém.”
O
futuro adversário do progresso
O importante não era fazer durar a representação cósmica,
mas aturdir o público do mundo inteiro, enquanto já se projetava a futura
“guerra nas estrelas”, prometida desde 1984 por um outro homem das artes
cênicas, ex-ator de Hollywood e presidente dos Estados Unidos: Ronald Reagan.
As dispendiosas aventuras do homem na lua foram
interrompidas abruptamente em 1973. O Cabo Kennedy voltava a ser Cabo Canaveral
e, em 1977, morria um dos principais instigadores do grande espetáculo
intersideral, o ex-nazista Werner von Braun que, na juventude, sonhara ser
escritor de ficção científica. O colapso da União Soviética, em 1991, o fim da
política dos blocos e o surgimento da globalização econômica exigiam uma
revisão urgente da ciência-espetáculo. “Trezentos anos de diástole, e
subitamente, como um punho que se fecha, a sístole imediata, inesperada.” Sem o inimigo de ontem,
desaparecido, era absolutamente imperativo revelar a um público que se tornara
apático a identidade do futuro adversário do progresso, de quem iria impedir a
humanidade de progredir.
Culpabilidade
e insuficiência
O culpado já tinha sido escolhido: era o homem (leia,
nesta edição, o artigo de Jean-Claude Guillebaud). Bastava recorrer à
mística pós-adâmica, com as velhas especulações sobre a cibernética e a
eugenia. Voltamos, então, a nos interrogar sobre as estruturas fisiológicas do
ser humano – que pouco mudaram desde o neolítico, ao contrário dos sistemas de
sociedade e, principalmente, das máquinas, cujos progressos foram constantes.
Aliás, será que sabemos o que é um homem? Existe, efetivamente, uma humanidade,
mas homens? Apenas organismos vivos desproporcionais, simultaneamente grandes e
pequenos demais, “presos no Universo, como numa jaula” afirmava Blaise Pascal.
Ilustrando uma frase de Flaubert – “A maneira mais
profunda de sentir uma coisa é sofrendo com ela” –, o sociólogo Alain
Ehrenberg, autor de La Fatigue d’être soi<>6,
observava recentemente os estragos causados pela sístole do progresso e sua
nova propaganda: “A depressão, que pouco interessava à psiquiatria da década de
50, tornou-se o distúrbio mental mais comum no mundo. (...) A neurose é uma
tragédia da culpabilidade, enquanto a depressão é um drama da insuficiência.
Vivemos um momento, após a libertação dos costumes na década de 60, em que o
homem pergunta: ‘O que sou capaz de fazer?’, ao invés de perguntar: ‘O que me é
permitido fazer?’Ilusões de ótica
A fuga do homem de seu estado
congenitamente incompleto, da insatisfação de ser ele próprio, não parecia mais
passar pela “ilícita ciência das almas” do psicanalista, ou pela abolição dos
tabus religiosos e das velhas proibições éticas. Porém, quando Emil Michel Cioran escrevia: “Viver é enganar-se sobre
suas próprias dimensões”, ele enunciava melhor que ninguém a resposta trazida
pela aceleração técnica a uma exigência supra-sensível permanente,
pateticamente formulada por Nietzsche: “Aqui estou e nada posso fazer.”
Saber como as coisas surgem é,
para o comum dos mortais, a menor das preocupações, e tanto faz se as
aparências do mundo ficam reduzidas a fugitivas ilusões de ótica, desde que o
pára-brisas ou a telinha retirem de cada um a medida de sua pequenez. Não é por
acaso que, há vários anos, se verifica a deterioração do foco utilitário dos
aparelhos high tech e sua reorientação para fins sectários, sincréticos, new
age, para-filosóficos, trans-políticos…
O reencontro à porta do paraíso
O imediato, a ubiqüidade, a
onisciência dos monitores e dos terminais de computadores ou de televisores
domésticos se encarregam, no final, de devolver métodos imemoriais, empregados
por cada pessoa para afirmar sua dependência em relação ao que o deixa fora de
si – o que, por raros instantes, parece tornar os corpos inconsistentes –
sonho, transe, orgasmo, hipnose, álcool, droga, estimulantes... E entre essas
técnicas de desaprovação de si, as imagens, as palavras, esses “poderes
inflexíveis”, dizia Alfred Döblin9,
“capazes de nos impedir de viver em nosso lugar”.
Recentemente, por exemplo, um
jornal regional francês publicou um obituário em que o tema budista se
assemelha aos da conquista espacial ou da série televisiva Star Trek: “X…, esse
pequeno cosmonauta, decidiu mudar de missão e seu rosto nos mostra que ele
despertou para o budismo e poderá renascer em melhores condições.”
Por seu lado, engenheiros de
software queriam batizar seu computador “Golem” na mais pura tradição rabínica,
traders de Wall Street, ainda traumatizados pelo recente crack da informática,
contratavam os serviços de sacerdotisas vodus “para purificar seus sites de
forças maléficas”… E, enquanto alguns radicais proibiam a entrada em seus
cemitérios de usuários da Internet, criavam-se sites mortuários na rede que
permitiam às famílias dos internautas de luto recolher-se sobre os túmulos dos
defuntos sem precisar se deslocar... Sem também nenhum deslocamento, os membros
da seita cibernética americana Heaven’s Gate acreditavam que, com o suicídio
coletivo, poderiam reencontrar-se instantaneamente, com armas e bagagens, à
porta do paraíso, além das telas de seus computadores...
A impostura do imediato
Durante estas décadas de
progresso, o que não cessou de progredir de maneira incomensurável foram as
ideologias, as utopias, os logros, os desvios e os blefes de todo gênero,
colocados a partir de agora na gaveta das ilusões perdidas. Afinal, trata-se da
impostura do imediato, revelada em tempos trágicos por Dietrich Bonhœffer. Uma elaboração técnica de falsa
proximidade. O que o progresso destruiu, é a humilde substituição do perto e do
próximo – o “saber ser a si mesmo”, de que Montaigne nos falava como da coisa
mais importante no mundo – em favor do “desconhece-te de ti próprio”, abominado
por Franz Kafka.
Agora, existem “simuladores de
proximidade”, como existem simuladores de tiro, de vôo ou de direção. A
ciência-espetáculo deixou de ser sideral para se confundir com um reality show,
explorando até o fim a impostura do imediato, a falsa proximidade do perto e do
próximo. A “cândida câmera” dos irmãos Lumière, o documentarismo, o cinema
neo-realista, e depois os paparazzi e a imprensa marrom, após terem criado uma
falsa intimidade com as “estrelas”, acabaram por destruí-las...
Uma prévia das guerras do futuro
Essas circunstâncias são
atualmente reatualizadas graças à incrível propaganda feita ao redor de
seriados televisivos como Loft Story … Os objetos de experiência deste tipo de
programa não são os voluntários enclausurados na intimidade forçada do loft, e
sim os milhões de telespectadores, atores secretos contratados sem saber para
os primeiros capítulos de um temível jogo global, uma revolução biosférica em
que a humanidade se esforça por sondar, reagir e eliminar virtualmente esse
outro mundo que é o homem. Já dá para imaginarmos a ferocidade que alcançarão
os próximos programas de “tele-realidade”. Não nos enganemos, a “modernidade”
de Big Brother e de seus clones é uma seqüência direta daquela dos conflitos do
Golfo e do Kosovo.
“Empate, uma aberração
política”, dizia-se da guerra, após 1989. Velha como o mundo, a guerra parecia
não levar a mais nada, mas, ao contrário, arruinava as estruturas nacionais,
desorganizava exércitos tradicionais, destruía sistemas econômicos... Anthony
Blair, um homem da mídia, já avisara em 1999, no início da guerra do Kosovo:
“Trata-se de uma guerra de novo tipo, não por um território, mas por valores
universais...” Aquela não seria uma guerra especificamente militar, mas apenas
o esboço das futuras guerras orbitais.
No decorrer do conflito no
Kosovo, os dois adversários declarados – Sérvia e Otan – não se encontraram em
lugar algum, assinalando assim o desaparecimento de um campo de batalha que
existia ainda, em estado larval, em 1991, durante a guerra do Golfo. A “guerra
humanitária” do Kosovo, tornada possível graças a espetaculares “progressos”
científicos, passava a fazer sentido. Ao eliminar o antigo campo de batalha,
eliminava, por tabela, qualquer proximidade real, o imediato e o risco de uma
confraternização possível entre os homens… (Trad.: David Catasiner)
Fonte:
http://diplo.uol.com.br/2001-08,a24
– 02/10/2007
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