“2017 FOI ANO DE GRAVE DETERIORIZAÇÃO DOS DIREITOS
HUMANOS NO BRASIL"

Para Maria Laura Canineu, diretora da Human Rights
Watch no Brasil, a degradação dos direitos humanos em 2017 é responsabilidade
do Estado, e não da crise econômica
Enquanto Michel Temer e o ministro da Fazenda, Henrique
Meirelles, se preparam para uma viagem oficial a Davos, onde pretendem vender a
imagem de “um novo Brasil”, um destino seguro para investimentos, o País figura
entre as nações com os mais graves retrocessos na área de direitos humanos,
segundo o relatório anual da Human Rights Watch, divulgado na quinta-feira 18.
Em entrevista a CartaCapital,
Maria Laura Canineu, diretora do escritório brasileiro da organização, afirma
que a crise econômica não pode ser um obstáculo para resguardar a
dignidade humana.“Em 2017, houve grave deterioração da situação no Brasil, em
que problemas crônicos foram exacerbados pela contínua negligência das
autoridades”, lamenta a advogada.
CartaCapital: Em
2017, o governo cortou verbas para as ações de combate às formas contemporâneas
de escravidão, o que levou à diminuição do número de operações e de
trabalhadores resgatados. Quais são os impactos dessa decisão política?
Maria Laura Canineu: Ao longo dos anos, o Estado
brasileiro avançou muito nessa questão. Como resultado dos esforços do
Ministério Público do Trabalho e do Ministério do Trabalho, dezenas de milhares
de brasileiros submetidos a condições análogas à escravidão foram resgatados.
No
entanto, em 2017, o próprio governo tentou flexibilizar a definição do trabalho
escravo, em prejuízo dos direitos humanos e do trabalho digno. Obviamente, com
a redução desses esforços, há um profundo impacto na vida daqueles que não
puderam ser libertados.
CC: Em 2016, 437 policiais brasileiros foram mortos, a maioria fora de
serviço. No mesmo ano, policiais mataram pelo menos 4.224 cidadãos. Nesse
contexto, o Congresso aprovou um projeto que impede o julgamento de militares
em Operações de Garantia da Lei e da Ordem em tribunais comuns presididos por
civis. Essa nova lei não pode ser interpretada pelos soldados como uma espécie
de “carta branca” para cometer violações?
MLC: A violência policial continua a ser uma de nossas maiores
preocupações. Nesse ponto, vale destacar três aspectos. Primeiro, temos uma
polícia despreparada para proteger a população. O número de resolução de crimes
no Brasil é ínfimo.
Em segundo lugar, ela abusa de
suas prerrogativas. A polícia mata demais em confrontos com suspeitos, e há
graves indícios de execuções extrajudiciais. Além disso, os policiais também
estão desprotegidos, com direitos restringidos. É evidente a ameaça à sua
integridade física, às boas condições de trabalho, à liberdade de expressão.
Documentamos casos de policiais
presos ou que sofreram punições desproporcionais por participar de greves no
Espírito Santo, Rio Grande Norte e Rio Grande do Sul. Evidentemente, o projeto
que confere à Justiça Militar a atribuição de julgar crimes
cometidos por soldados contra civis é um grave retrocesso.
As normas
internacionais são muito claras de que a violência policial, especialmente a de
natureza grave, não pode ser investigada e julgada no âmbito militar, porque
ele não é imparcial. Essa não é uma lei comum de ser aprovada em épocas de
pleno exercício da democracia e do Estado de Direito.
CC: Em
2016, mais de 24 mil adolescentes estavam internados em unidades
socioeducativas no Brasil, quase 24% acima da capacidade das instituições.
Nesse contexto, como a senhora avalia as propostas de redução da maioridade
penal?
MLC: Alguns dos problemas do sistema
prisional também estão presentes no sistema de retenção juvenil, que
deveria ser “socioeducativo”. Em São Paulo, houve uma evolução em relação à
estrutura e às oportunidades educacionais nos últimos dez anos. Estados como Ceará, Pernambuco e
Paraíba ainda se encontram, porém, em situação bastante desumana, e não é
incomum haver mortes dentro das unidades. Tanto o projeto que prevê o aumento
do tempo de internação quanto aquele que permitiria a redução da maioridade
penal, em nossa opinião, são nocivos. Em comparação com outros países, esses
projetos podem aumentar a reincidência, prejudicando a segurança pública. Essas
crianças e adolescentes têm um perfil bastante vulnerável.
CC: Em junho
de 2016, havia 720 mil presos no Brasil, a terceira maior população carcerária
do mundo. A superlotação é evidente: são dois detentos por vaga
disponível. Esse ambiente abre espaço para a expansão das facções criminosas?
MLC: A superlotação
e o reduzido número de servidores, muito inferior à necessidade e às
recomendações internacionais, tornam impossível controlar as prisões. Esses
dois fatores deixam os detentos vulneráveis à violência e ao recrutamento das
facções, que oferecem “proteção”. As rebeliões de janeiro de 2017 (que
resultaram na morte de mais de uma centena de presos apenas em três estados) expõem
a situação de extrema insegurança deles. Muita coisa pode ser feita.
Primeiro, o Estado precisa
retomar o controle do sistema prisional. Outro ponto é a ampliação do acesso à
Justiça. As audiências de custódia são fundamentais para determinar se um
preso, ainda não condenado, pode aguardar o julgamento em liberdade.
Atualmente, apenas 12% dos presos têm acesso às atividades educacionais e 15%,
às atividades laborais.
É ínfima a porcentagem de presos com acesso a reais oportunidades
de ressocialização. O padrão internacional é a separação de presos provisórios
e os já condenados. No Brasil, isso não é encontrado em todo o sistema. Por
fim, eu destacaria a reforma da Política de Drogas, que contribui para esse
contexto de superlotação.
CC: Segundo o 11º Anuário Brasileiro de
Segurança Pública, apenas 11% dos 4.657 assassinatos de mulheres
foram classificados como feminicídios em 2016. O Estado está preparado para
lidar com a violência de gênero?
MLC: O Brasil tem 61 mil homicídios por ano.
O feminicídio é um crime bastante específico. A mulher está sujeita a essa
violência pelo simples fato de nascer mulher, de existir. Se a violência
doméstica não for combatida desde o início, quando a mulher leva esse problema
para o conhecimento das autoridades, mais tarde ela pode resultar em
feminicídio.
Em 2016, fizemos um trabalho em
Roraima, onde só existe uma Delegacia da Mulher. Cerca de 8,4 mil casos de
violência contra a mulher estavam prescritos, porque não houve nenhuma
investigação. Nesses inquéritos, há denúncias de assédio, agressão física e
ameaças, fora os casos não reportados à polícia. Existe uma série de empecilhos
e por isso há uma subnotificação enorme. A mulher procura ajuda, mas o Estado
não responde adequadamente.
CC: O
relatório também destaca o aumento da violência no campo em 2017, quando os
conflitos por terra resultaram na morte de 64 brasileiros entre janeiro e
outubro.
MLC: Assusta o
número de mortes de pessoas envolvidas em conflitos de terra em 2017, é o maior
desde 2003. Pior: as medidas políticas adotadas no ano passado podem agravar
essa situação. O governo reduziu o orçamento da Fundação Nacional do Índio
(Funai) e os deputados da CPI do Índio, em sua maioria ligados ao agronegócio,
incriminaram várias lideranças indígenas. É um ambiente favorável à violência no campo, que
está relacionada ao avanço da grilagem e dos madeireiros ilegais.
As vítimas típicas são os
trabalhadores rurais, os sem-terra e os indígenas. Todos eles integram grupos
vulneráveis, excluídos economicamente. Para essa população, o acesso à Justiça
é bastante dificultado. As investigações de assassinatos e outros tipos de
violência são bastante deficientes. Não há recursos suficientes nem interesse
político para promover uma melhor investigação policial. O nível de impunidade
é gritante.
CC: A
crise econômica também tem impacto na garantia ou na violação de direitos?
MLC: O ano de 2017 foi de grave deterioração da situação dos direitos
humanos no Brasil, onde problemas crônicos foram exacerbados pela contínua
negligência das autoridades. Existe uma série de violações que continuam sem a
devida atenção, independentemente da crise econômica.
As
violações mais graves, seja no sistema prisional, seja nas ruas, por parte da
própria polícia, representam uma falência histórica do Estado brasileiro. Em
época de maior ou menor potencialidade econômica, o País não enfrentou os seus
problemas estruturais. Muitas ações demandam recursos, mas existem medidas
simples que nunca foram tomadas.
Fonte: https://www.cartacapital.com.br/revista/987/2017-foi-ano-de-grave-deterioracao-da-situacao-dos-direitos-humanos-no-brasil
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