BRASIL: A IMPERFEITA SEPARAÇÃO DOS PODERES

Vivemos uma situação na
qual o Judiciário legisla, o Executivo julga e o Legislativo executa.
O grande
autor austríaco Stefan Zweig, que se refugiou no Brasil — onde se
suicidou — escreveu um belíssimo romance intitulado A Confusão dos Sentimentos em
que conta a história de um rapaz desorientado que se sente atraído, ao mesmo
tempo, por seu professor de literatura e por sua jovem mulher. O romance trata
admiravelmente da ambiguidade do relacionamento nesse ménage à trois, e
das alternâncias nas relações de dominação que os ligam.
A
analogia do romance de Zweig com a situação no Brasil pode parecer um pouco
forçada, pelo contexto, pelas diferenças entre situações individuais e
situações coletivas, pelas consequências. Mas a semelhança, parece-me, não é
tão absurda tendo em vista que, em ambos os casos, instaura-se o caos. No caso
do romance de Zweig, trata-se de caos na vida e na alma de três pessoas, levando-as
a extremo sofrimento. No caso do Brasil, o caos político, judiciário e
econômico leva igualmente a extremo sofrimento, só que não mais para um
único indivíduo, mas para toda uma sociedade.
A
extrema “confusão” ora prevalecente no Brasil não deixa de vir também dos
sentimentos. É, entre outros, fruto do total desrespeito ao princípio
fundamental em que se apoiam as democracias, ou seja, o da separação dos três
poderes. Por mais simbólica que seja a praça de Brasília que leva esse nome,
rodeada que é pelo Palácio do Planalto, sede do Executivo, pelo Congresso, onde
se deveria legislar, e pelo templo da justiça, o Supremo Tribunal Federal, é apenas um símbolo. Em nosso
país, vivemos uma situação na qual o Judiciário legisla, o Executivo julga e o
Legislativo executa. E onde, da mesma forma, o Executivo entra em choque com o
Legislativo, que por sua vez, se acha competente para desfazer sentenças
judiciais.
Há
vários exemplos recentes dessa confusão. O que mais chamou a atenção talvez
tenha sido o decreto de indulto que saiu do Palácio do Planalto às vésperas
do Natal.. Menos daninho porque menos abrangente, mas igualmente escandaloso,
foi a interferência do legislativo carioca na ordem de prisão do seu presidente
e de dois de seus comparsas. Há ainda o caso, desta vez dentro do mesmo poder
mas em instâncias diferentes, do ministro do Supremo que manda soltar um amigo
seu condenado em 1ª instância. Esses exemplos não esgotam os casos ocorridos.
São apenas os que mais chamaram a atenção por sua ousadia e pelo descaso com a
opinião pública.
Recorro
ao pensador francês Charles de Montesquieu, cuja obra De l’Esprit des Lois (O
Espírito das Leis) permanece, passados mais de 250 anos, o grande clássico
sobre a separação dos poderes. O fundamento de sua ideia relativa aos três
poderes, é o de que a separação é indispensável porque, se o legislador se
confunde com o executor, está aberta a porta aos nepotismos, favoritismos e à
corrupção, já que existe sério risco de que o legislador formule e aplique leis
que lhe sejam mais favoráveis. Se o executivo se confunde com o juiz, como
controlar as decisões que dele emanam?
Acredito
que se Montesquieu pudesse ver o que está-se passando no Brasil do século XXI,
felicitar-se-ia pela sua clarividência. Nossa situação é a prova contrario sensu da
absoluta necessidade de se respeitar a separação e a independência dos três
poderes. Nos Estados Unidos, exemplo de democracia por excelência, ora
testada inclusive pelo atual governo que quer livrar-se dos constrangimentos da
Constituição, observa-se rigorosamente o princípio da separação dos poderes,
mas existe, para evitar os abusos de poder de cada setor, o mecanismo dos checks and balances,
através do qual os poderes podem controlar-se uns aos outros, dentro de suas
competências. É assim que o Judiciário pode e deve controlar a
constitucionalidade das leis e das ações do Executivo, que o Executivo pode
vetar leis (sendo que o Congresso pode cancelar o veto por uma maioria de dois
terços) e que o Congresso é competente para decidir sobre o impeachment do
Executivo e sobre a alocação de recursos proposta por ele. Longe de entrar em
contradição com o princípio de Montesquieu, esses checks and balances asseguram
a fiel observância do papel de cada um, sob pena de advertências e sanções.
Atualmente
no Brasil, a separação dos poderes se dilui na prática: o controle de um sobre
as ações de outro é relativo. Há vários casos, como o da nomeação de uma
ministra do Trabalho condenada em ações trabalhistas e de um diretor do
Detran que perdeu a carteira por repetidas infrações às leis do tráfego.
Justificativas absurdas como, por um lado, que é constitucional que o
presidente nomeie quem quiser, ou, por outro, dizer que um diretor de Detran
não precisa ter carteira de motorista válida, demonstram a absoluta falta de
decoro e de compostura dos nossos governantes.
Nos
EUA, há uma prática denominada vetting,
que bem poderia ser implantada no Brasil. Antes de anunciar nomes para altos
cargos do Governo, o indivíduo é investigado para que se comprove que não está
envolvido em situações duvidosas. Uma espécie de “atestado de bons
antecedentes”. Só depois de receber uma avaliação positiva é que o presidente
ou o ministro procede à nomeação. Esse mecanismo evita os constrangimentos que
estamos testemunhando agora.
Infelizmente,
enquanto imperarem no Brasil, como motores da vida política, os interesses particulares,
a ganância, a corrupção; enquanto não se instaurar uma austeridade
absolutamente necessária para evitar que realizações inúteis e mirabolantes,
mas que oferecem oportunidades políticas e de enriquecimento ilícito, se
sobreponham a projetos destinados a melhorar as condições de vida no país, como
são os ligados a educação e saúde, enquanto, enfim, confundam-se meios e fins,
e as ações de cada poder sejam guiadas exclusivamente pelos interesses de seus
integrantes e não pelo interesse público, não há como mostrar-se otimista
quanto a nosso futuro institucional.
Stefan
Zweig é muito conhecido no Brasil pela autoria de um livro, ao que tudo indica
subsidiado pela administração Vargas, denominado Brasil, País do Futuro.
A julgar pelo andar da carruagem, sempre será.
Afonso Benites
Brasília 4 jan 2018
Fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/01/03/politica/1515010782_803043.html?rel=mas
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