RAMONET:
“INEVITÁVEL MUNDO NOVO?

Cinquenta anos após morte de Aldous Huxley, sua obra alerta: avanço
científico pode ser, em sociedades desiguais e mercantilizadas, caminho para
barbárie.
Seria
pertinente reler, hoje, Admirável Mundo Novo? Seria pertinente retomar
um livro escrito há aproximadamente 70 anos, numa época tão distante que nem
sequer a televisão havia sido inventada? Seria essa obra algo além de uma
curiosidade sociológica, um best seller comum e efêmero que,
no ano de sua publicação, 1932, vendeu mais de um milhão de exemplares?
Essas questões
parecem ainda mais pertinentes porque o gênero da obra — a fábula premonitória,
a utopia tecno-científica, a ficção científica social — possui um alto grau de
obsolescência. Nada envelhece tão rápido quanto o futuro. Ainda mais na
literatura.
E,
entretanto, quem superar essas reticências e novamente mergulhar nas páginas
do Admirável Mundo Novo certamente ficará chocado com sua
atualidade surpreendente. E irá constatar que o presente alcançou o passado,
pelo menos por uma vez.
O romance,
que se tornou um grande clássico do século 20, narra uma história que se passa
num futuro distante, por volta de 2500, ou mais precisamente, “por volta do ano
600 da era fordista”. Satírica homenagem a Henry Ford (1863-1947), pioneiro
norte-americano da indústria automobilística (e ainda hoje uma das famosas
marcas do ramo), inventor de um método de organização do trabalho para a
produção em série e da padronização das peças.
Essa
técnica, pensada por Ford na década de 20, transformou, por assim dizer, os
trabalhadores em autômatos, em robôs repetindo o mesmo gesto o dia inteiro.
Apesar de seu caráter desumano, foi uma verdadeira revolução no universo
industrial e rapidamente adotada, da Alemanha à União Soviética, por todas as grandes
indústrias mecânicas do mundo. No mundo sindical e operário, e também entre os
intelectuais, o fordismo suscitou críticas violentas, que artistas e criadores
da época muitas vezes abordaram com indiscutível talento cáustico. Pensemos,
por exemplo, em Metropolis, de Fritz Lang (1926), ou Tempos
modernos (1935), de Charles Chaplin.
O autor
de Admirável Mundo Novo, Aldous Leonard Huxley (1894-1963), era um
homem afeiçoado à cultura, particularmente à cultura científica. O tipo do
intelectual onisciente, sedutor e com opinião sobre quase tudo.
Nascido
numa família inglesa à qual pertenceram numerosas personalidades célebres,
Aldous Huxley era parente, por parte de mãe, do escritor Matthew Arnold
(1822-1888), autor dramático, crítico, humanista, viajante e professor de
poesia na Universidade de Oxford. Seu avô, Thomas Henry Huxley (1825-1895), era
um conhecido naturalista, defensor das teorias evolucionistas de Darwin e autor
de uma obra famosa sobre a origem da espécie humana (O lugar do homem na
natureza, 1863). Finalmente, seu irmão Julian Huxley (1887-1975) era
biólogo e filósofo, e também partidário das teorias da evolução. Especialista
em genética, criticava, com muita pertinência, as teorias fantasistas do
geneticista soviético Lyssenko. No período de 1946 a 1948, foi o primeiro
diretor geral da Unesco.
Como não
poderia deixar de ser, Aldous Huxley estudou em Eton e Oxford, os grandes
“centros de condicionamento” das elites britânicas. Também ele havia pensado em
estudar ciência, mas foi impedido devido a uma grave doença na visão. Aos vinte
anos, quase cego, só conseguia ler com o auxílio de uma grossa lupa e aprendeu
braille, como todos os cegos. Apesar da dolorosa deficiência que o acompanhou
por toda a vida, Huxley começou a publicar seus primeiros livros de poemas aos
vinte e cinco anos e, depois dos horrores da primeira guerra mundial
(1914-1918), passou a manifestar uma visão do mundo irônica e desencantada.
Ao
retornar de uma viagem à India, travou grande amizade com o escritor D.H.
Lawrence (autor do conhecido romance O Amante de Lady Chatterley,
1928), que, já tuberculoso e às vésperas de sua morte — em 1930, em Veneza —
iria exercer sobre si uma importante e duradoura influência.
Em seus
primeiros romances (Crome Yellow, 1921; Antic Hay, 1923;Those
Barrens Leaves, 1925; Point Counter Point, 1928), Aldous Huxley
apresenta um universo no qual a cultura e o humanismo são ameaçados por aqueles
que mais os deveriam proteger. Escritos com uma sinceridade cruel, esses livros
são sátiras de uma inteligência aguçada e exprimem as fraquezas e desilusões da
“geração perdida”. Ele mostra um humor frio, cortante, paradoxal, à moda de
Jonathan Swift, ao evocar, com ceticismo, a sociedade da década de 20.
Nesse
sentido, Admirável Mundo Novo, que é o livro mais representativo
desse período, seria mais um conto filosófico à maneira de Voltaire, no qual o
talento do escritor, ainda sendo grande, é ultrapassado pelo temperamento do
moralista.
Essa visão
pessimista do futuro e crítica feroz do culto positivista da ciência foi
escrita no momento em que as conseqüências sociais da grande crise de 1929
castigavam as sociedades ocidentais e quando a credibilidade dos regimes
democráticos capitalistas parecia vacilar. Antes da subida ao poder de Adolf
Hitler, em 1933, o Admirável Mundo Novo denuncia a perspectiva
aterrorizante de uma sociedade totalitária fascinada pelo progresso científico
e convencida de poder oferecer uma felicidade obrigatória a seus cidadãos.
Apresenta uma visão alucinante de uma humanidade desumanizada pelo
acondicionamento à Pavlov [1] e pelo prazer ao alcance da
pílula (o “soma”). Num mundo horrivelmente perfeito, a sociedade dissocia a sexualidade
da procriação — por motivos eugênicos e produtivistas.
Em Admirável
Mundo Novo, a americanização do planeta está completa: tudo padronizado e
fordizado, tanto a produção de seres humanos, resultantes de manipulações
genético-químicas, quanto a identidade das pessoas, produzida por hipnose
auditiva, durante o sono — a hipnopedia, qualificada por um
personagem do livro como a “maior força socializadora e moralizadora de todos
os tempos”.
Os seres
humanos são, portanto, “produzidos”, no sentido industrial do termo, em
indústrias especializadas — os “centros de incubação e acondicionamento” —
segundo modelos variados, de acordo com tarefas bem especializadas atribuídas a
cada indivíduo e indispensáveis numa sociedade obcecada pela estabilidade.
No momento
de sua fabricação num frasco de vidro, graças ao “método Bokanovsky” (que
permite produzir até noventa e seis seres humanos quando, no passado, só era
possível obter um único), cada óvulo — e depois cada embrião — recebe doses
mais ou menos importantes de estímulos físicos e ingredientes químicos. Essas
doses irão condicionar, de forma definitiva, a capacidade intelectual, e
determinarão a que categoria e casta pertencerão, em ordem decrescente, esses
seres humanos: Alfa, Beta, Delta, Gama, Ipsilon… segundo o grau de complexidade
da atividade profissional a que estarão destinados.
Além do
mais, cada ser humano é educado, desde nascença, nesses “Centros de
acondicionamento do Estado” em função de valores específicos do seu grupo,
recorrendo-se sistematicamente à hipnopedia para manipular seu espírito, para
criar nele “reflexos condicionados definitivos” e fazer com que aceite seu
destino. “Cem repetições três noites por semana, durante quatro anos, declara
um especialista em hipnopedia. Sessenta e duas mil repetições criam a verdade.”
Dessa
forma Aldous Huxley ilustrava, no livro, os riscos contidos em teses formuladas
desde 1924 por John Watson, o pai do “behaviorismo”, “ciência da observação e
controle do comportamento” Watson afirmava, friamente, que poderia pegar na
rua, ao acaso, uma criança saudável, e fazer dela, conforme sua escolha, um
médico, um advogado, um artista, um mendigo ou um ladrão, não importando para
isso seu talento, suas preferências, suas tendências, suas capacidades, seus
gostos ou a origem de seus antepassados.
Em Admirável
Mundo Novo, que é fundamentalmente um manifesto humanista, é possível
perceber, e com razão, uma crítica corrosiva à sociedade stalinista, da utopia
soviética construída com mão de aço. Mas há também uma sátira clara à nova
sociedade mecanizada, padronizada, automatizada que se instalava nos Estados
Unidos em nome da modernidade tecnicista.
Huxley,
excessivamente inteligente e admirador da ciência, exprime, nesse romance, no
entanto, um profundo ceticismo em relação à idéia do progresso, uma
desconfiança em relação à razão. Diante da invasão do materialismo, deixa uma
das mais profundas peças de acusação às ameaças do cientificismo, da
mecanização e do desprezo pela dignidade individual. No fundo, avalia com um desespero
lúcido, a técnica que assegurará aos seres humanos um conforto exterior total,
um aperfeiçoamento notável. Qualquer desejo, na medida em que puder ser
manifestado e sentido, será satisfeito. Porém os homens terão perdido sua razão
de ser. Irão tornar-se, eles mesmos, máquinas. Não será mais possível falar em
condição humana, no sentido próprio.
O título
original — Brave New World — é tomado emprestado de uma das últimas peças de
William Shakespeare, The Tempest (1611). Miranda vê os príncipes de Nápoles
desembarcarem de um navio naufragado e exclama: “Esplêndida humanidade,
maravilhoso mundo novo, quem pode nutrir seres tão perfeitos!”
No
espírito de Huxley, esse título é uma antífrase, pois o mundo que descreve nada
tem de maravilhoso. É uma sociedade de castas, imutável, perene, onde tudo é
programado e não há mais lugar para o acaso. Faz-se tábula rasa do passado,
como recomenda A Internacional, o que, de fato, a cultura de massa
realiza. Os monumentos clássicos de todas as civilizações foram derrubados, a
literatura foi queimada, os museus destruídos, a história apagada.
Excesso de
pessimismo ou simples lucidez? Sabemos que Huxley demonstrou, nesse livro, um
senso excepcional de antecipação. A história recente demonstrou que suas
profecias mais sombrias estavam em vias de se realizar, assim como, em matéria
de manipulação, ele soube prever o surgimento de novas ameaças.
Pessimista
e sombrio, o futuro visto por Aldous Huxley nos serve de advertência e nos
incentiva, numa época de manipulações genéticas, de clonagem e da revolução do
ser vivo, a acompanhar de perto os atuais progressos científicos e seus
potenciais efeitos destrutivos.Admirável Mundo Novo ajuda a
compreender o alcance dos riscos e os perigos com os quais nos deparamos,
quando, por todos os lados, novamente, os “avanços científicos e técnicos” nos
confrontam com desafios que põem em perigo o futuro de nosso planeta. E o
futuro da espécie humana.
Por Ignacio
Ramonet | Tradução: Teresa Van Acker
(Publicado
originalmente no “Le Monde Diplomatique Brasil”, edição internet, setembro
de 2000)
Fonte:
https://outraspalavras.net/posts/ramonet-inevitavel-mundo-novo/
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