AS RAÍZES FILOSÓFICAS DA DESTRUIÇÃO DO MUNDO
As
corporações globais destroem o planeta. Mas apoiam-se numa ideia que nasce em
Platão, cresce em Santo Agostinho e reverbera em Descartes: a de que a Alma, ou
a Razão, devem vencer a Natureza e nossos sentidos.
Sabemos para onde
estamos indo. Faz muitos anos os cientistas avisam que estamos explodindo os
limites ecológicos da Terra. Sabemos bem que estamos no meio de uma
ruptura climática e um colapso ecológico. Apesar disso, parecemos fisicamente
incapazes de agir a partir desse conhecimento.
Os Estados
Unidos elegeram para presidi-los um homem que prometeu desencadear um
gigantesco ataque ecológico, e infelizmente cumpriu a promessa. O governo
do Reino Unido produziu 150 páginas de greenwash que chama
de Plano Ambiental de 25 anos: a mesma tagarelice que governos covardes vêm publicando
nos últimos 25 anos. Como sempre, foi descrito em determinados círculos
como “um bom começo”. Nenhuma política, em lugar nenhum, é proporcional à escola
do desafio que temos diante de nós.
O que nos
impede de responder à ameaça? Durante anos suspeitei que a causa fosse ainda
mais profunda que o poder das grandes corporações e a obsessão oficial pelo
crescimento econômico, apesar de serem forças tão poderosas. Agora, graças ao
livro mais profundo e de amplo alcance que jamais li, sinto que começo a
entender o que pode ser.
The Patterning Instintct (O Instinto de
Modelagem, em tradução livre), de Jeremy Lent, foi publicado há alguns meses,
mas demorei um tempo para processá-lo, já que quase cada página me fez repensar
o que considerava verdade. Unindo história cultural e neurociência, Lent
desenvolve uma nova disciplina que denomina história cognitiva.
Desde a infância,
nossas mentes são modeladas pela cultura em que crescemos – o que produz
trilhas que aprendemos a seguir, como se fossem caminhos através de um campo de
grama alta. Ajudam a construir esses padrões de significado poderosas metáforas
de raiz encravadas em nossa linguagem. Sem conhecimento consciente, elas guiam
as escolhas que fazemos.
Lent
argumenta que o caráter peculiar ao pensamento religioso e científico do
Ocidente, que dominou o resto do mundo, empurrou a civilização humana e todo o
mundo vivo para a beira do colapso. Mas mostra também como, compreendendo suas
metáforas e padrões, podemos sair de nosso caminho e desenvolver novas trilhas
através do campo de grama, o que nos afastaria da beira do precipício.
Há muitas
questões pelas quais poderíamos começar, mas talvez uma das mais cruciais seja
entender a influência do pensamento de Platão no início da teologia cristã. Ele
propôs um mundo ideal percebido pela alma, existente numa esfera apartada do
mundo material vivido pelo corpo. Para alcançar o conhecimento puro que existe
acima do mundo material, a alma precisa separar-se dos sentidos e dos desejos
do corpo. Platão ajudou a firmar uma profunda moldura no entendimento
ocidental, associando capacidade de pensamento abstrato com alma, alma com
verdade, verdade com imortalidade.
Alguns dos
primeiros pensadores cristãos, em particular Santo Agostinho, levaram mais
longe essas metáforas, até um ponto em que não apenas o corpo humano, mas todo
o mundo natural passou a ser visto como anátema, que distrai e corrompe a alma.
Deveríamos odiar nossa vida neste mundo para assegurar a vida no próximo.
O
cristianismo, por sua vez, exerceu influência poderosa sobre o conhecimento
científico moderno. Longe de romper com padrões de pensamento anteriores, a
famosa crença de René Descartes – de que este consistia em “uma substância
cuja essência ou natureza inteira é pensar e cujo ser não requer lugar e não
depende de coisas materiais” – foi uma extensão das cosmologias platônicas e
cristãs, com uma diferença crucial: substituiu a alma pela mente.
Se nossa
identidade está estabelecida somente na mente, então, como insistiam os
cristãos, nosso corpo e o resto da natureza, sendo incapazes de ter razão, não
têm valor intrínseco. Descartes foi explícito sobre isso: ele insistiu que não
há diferença “entre as máquinas feitas por artesãos e os vários corpos criados
pela própria natureza”. A mente ou alma era sagrada, enquanto o mundo natural
não possuía nem valor inerente nem significado. Existia para ser dissecado e
explorado sem remorso.
Essa visão
de mundo sustentou a revolução científica, que nos trouxe espantosas maravilhas
e benefícios que transformaram nossas vidas. Mas também incorporou em nossas
mentes metáforas de raiz catastróficas, que ajudam a explicar nossa atual
relação com o mundo vivo. Entre elas estão as noções do humano desconectado da
natureza, do nosso domínio sobre a natureza, da natureza como máquina e, mais
recentemente, da mente como software e o corpo como hardware.
Essas
metáforas de raiz continuam a informar o discurso público. O biólogo
britânico Richard Dawkins, por exemplo, argumentou que “um
morcego é uma máquina, cuja eletrônica interna está tão ligada que os músculos
de sua asa miram automaticamente os insetos”. Se uma máquina com a
complexidade, auto-organização e autoperpetuação de um morcego foi
desenvolvida, o professor Dawkins deveria nos dizer onde encontrá-la.
Num mundo
em que falta supostamente valor inerente, mas no qual muitos de nós perderam a
crença na alma imortal ou na santidade da razão pura, estamos diante de um
vazio de significado. Buscamos preenchê-lo com um consumismo desenfreado. Para
mudar nosso comportamento, afirma Lent, é preciso mudar nossas metáforas de raiz.
Isso não
significa que deveríamos abandonar a ciência: longe disso. O estudo de
sistemas complexos revela a natureza como uma série de sistemas
auto-organizados, auto-regenerativos, cujos componentes estão conectados uns
aos outros de maneiras até há pouco inimagináveis. Isso mostra que, como propôs
o grande conservacionista John Muir, “Quando tentamos selecionar uma coisa
por si só, descobrimos que está atrelada a tudo o mais no universo.” Longe de
estarmos afastados da natureza ou poder dominá-la, estamos incorporados nela,
intimamente conectados a processos que nunca podemos controlar completamente.
Potencialmente, isso nos possibilita ver o próprio universo como uma teia de
significados: uma poderosa nova metáfora de raiz que poderia, talvez, mudar a
maneira como vivemos.
Há muito
trabalho a fazer até traduzir esses insights em
políticas práticas. Mas me parece que Lent explicou por que, a despeito de
nosso conhecimento ou mesmo de nossas intenções, continuamos a seguir o caminho
do precipício. Para resolver um problema, precisamos primeiro entendê-lo: “um
bom começo” é assim. Não podemos mudar o destino até que mudemos o trajeto.
Por George
Monbiot | Tradução: Inês Castilho | Imagem: Sandro
Boticelli, Agostinho de Hippona
Fonte: https://outraspalavras.net/destaques/as-raizes-filosoficas-da-destruicao-do-mundo/
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