MORTE DA FILOSOFIA E RETORNO DO PENSAMENTO MÁGICO
Três estranhas irmãs de Macbeth (detalhe), 1875
Retirar a disciplina da grade escolar sugere vê-la
como inferior à Ciência. Tal discurso implica, paradoxalmente, reduzir
Ciência a magia e religião
Desde meados do ano passado, a questão sobre a
retirada da Filosofia como matéria obrigatória da grande curricular do Ensino
Médio foi ganhando maiores dimensões no debate público. Pode-se afirmar que um
dos pontos altos deste aumento de dimensão tenha sido as tentativas perpetradas,
em particular pela Folha de S.Paulo, de desmerecer a Filosofia como
saber.
Primeiro, a divulgação dos esdrúxulos resultados de
uma pesquisa que apontava as aulas de Filosofia na carga horária discente como
principal motivo da queda de desempenho em Matemática. Depois, uma entrevista,
indecisa entre o reconhecimento e a bajulação, na qual traçava um suposto
futuro inequívoco para a Filosofia: sua morte. Disse o pesquisador que o jornal
bandeirante entrevistou: “o que é objetivo da filosofia vai ser resolvido
pela ciência, e a filosofia vai passar a história”.
Neste caso, é preciso considerar alguns elementos
que fazem da entrevista em seu respectivo contexto uma audaciosa, porém,
enganosa peça de propaganda. Não obstante, o entrevistado seja apresentado como
um pesquisador internacionalmente reconhecido, ou seja, como alguém portador da
inovação, ele repete uma cantilena comum, que está na boca “de 9 entre 10
especialistas” das ditas ciências exatas, naturais ou duras (que podem ser
adjetivadas conforme o gosto do cliente) que ousam falar além do conhecimento
de suas especializações. De fato, o critério do entrevistado para definir a
morte da Filosofia é o progresso e a novidade, contudo ele nos fala
fundamentando-se em uma dupla repetição.
Além da cantilena de que a Ciência seja superior à
Filosofia, ele coloca seu saber no lugar em que ele mesmo diz não está, pois na
sua boca: a ciência regride ao estágio da magia e da religião.
Um paradoxo, já que, segundo ele, o índice de veracidade da ciência é o
progresso. Sua segunda repetição, por conseguinte, trata de fazer uso de
antigas estruturas de pensamento, ele faz com que a ciência repita as
estruturas de um pensamento mágico-mítico, ou seja, molde-se nas formas em que
se apresenta o pensamento religioso. Que progresso é esse, que traz em seu
enunciado velhas formas? Contradições de um saber vaidoso e que não reconhece
outras formas de conhecimento que não seja aquelas tuteladas dentro de seus
limites. Todavia, já não se trata de simples diletantismo pessoal.
De fato, ao enunciar o futuro de um saber, ele se
comporta como um agente de práticas divinatórias. Sua colocação é um tipo de
adivinhação, uma vez que se lança abertamente sobre o futuro. Que a ciência
tenha se tornado um tipo de oráculo sobre a posteridade não é algo inédito, tal
pode ser atestado até mesmo em seriados como black mirror. Ainda
que não estejamos no campo da ficção confessa, tudo ocorre como se estivéssemos
dentro de uma dessas séries. Desse modo, a Folha anuncia: “na
entrevista (…) ele [o pesquisador] fala sobre o método científico e como se
produz pesquisa de ponta – pesquisa que abre novos horizontes, traz
inovações e tecnologias que serão a base para a sociedade do
amanhã; pesquisa que permite à sociedade decidir de forma
autônoma seu futuro”.
“Novos horizontes”, “amanhã”, “decidir
(…) seu futuro”: poderiam ser enxertos de um horóscopo matinal. Ora, aqui é
como se o leitor estivesse sendo preparado para se encontrar com uma
cartomante: a leitura do futuro não nas linhas da mão, mas nas linhas do
jornal. Logo, a enunciação feita sobre a Filosofia é também um tipo de
sortilégio que se lança contra um inimigo. Não por outro motivo, antes de
lançar o sortilégio, o mago que se esconde por trás do cientista deve fazer uma
divisão clara, literalmente a típica divisão “nós” e “eles”: “eu tenho o
maior respeito pelos filósofos porque o objetivo da filosofia é o mesmo da
ciência: explicar o mundo e a nós próprios. Agora, nós temos um bom processo e
eles não têm, portanto estão fadados a desaparecer”.
O grau de certeza que o pesquisador expressa é
semelhante aquele que pode ser lido nos cartazes que se encontram aos montes em
postes e muros das metrópoles mais incrédulas: “Amarração para o amor: traz o
seu amor em três dias!”. Atente nosso leitor que este exemplo não é uma ironia,
embora alguém possa ter esboçado um sorriso. Como o feiticeiro urbano que
garante um fato novo em um futuro imediato, o pesquisador também garante algo
novo em um tempo próximo. Os fatos são diferentes, mas típicos de serem
moldados nas estruturas do pensamento mágico, pois acostumados às mitificações:
o amor e a morte.
Há uma diferença, contudo, entre os dois discursos.
O mago urbano quantifica o tempo de seu progresso: 3 dias; já o reconhecido
pesquisador não: seu sortilégio científico é generalista, ele não esboça nenhum
número, apenas enuncia e deixa que o tempo se encarregue de consumar um fato
que já está a ocorrer, posto que enunciado. Uma vez que o oráculo enuncia algo,
é como se isso passasse da possibilidade ao ato, ou seja, o enunciado é já fato
que vai se consumando, o tempo é apenas um mero fiador. Afinal, já estava
escrito…
Daí que o pesquisador nos coloca diante de um
quadro do destino: “estão fadados a desaparecer”. Era de se esperar que
o pesquisador quantificasse melhor seu prognóstico, nos desse melhores medidas
de suas expectativas temporais, nos desse então dados para que fizéssemos
aproximações: não é em função da previsibilidade detalhada e segura dos fatos
que se assenta a confiabilidade da ciência? O que seria da ciência
contemporânea sem quantificações: os números de suas pesquisas, dados, gráficos
e tabelas? Em geral, não são dignos de desconfiança os pesquisadores que ao
defenderem suas teses não nos apresentam dados, quantificações ou experimentos?
Ora, nada disso nos oferece o egrégio pesquisador entrevistado no jornal
paulistano: não há um dado objetivo, uma tabela que mostre uma mísera razão de
causa e efeito, um gráfico que nos mostre proporcionalidade entre avanço da
ciência e desaparecimento da Filosofia. Há apenas um enunciado resultante de um
raciocínio rápido que não é explicado, e tampouco é auto evidente.
Estamos então diante de um argumento pouco
confiável, posto que afirmado sem contraditório ou liame de verificação. Desse
modo, a confiabilidade que devemos dar ao mago urbano que promete amor em 3
dias não é menor que àquela que devemos dar ao sortilégio fúnebre do
pesquisador. Os dois se alicerçam na confiança devotada a duas técnicas de
gestão da imprevisibilidade do futuro. Por que então daríamos mais crédito a um
do que ao outro? Ademais, do mago citadino se espera apenas o resultado, do
outro esperamos números, dados que fundamentem seus prognósticos, embate de
argumentos, mas isto ele não nos oferece. Daí que o sortilégio da amarração
para o amor seja mais digno de confiança do que o mortuário prognóstico do
pesquisador. Se o amor não aparecer em 3 dias, se pode ao menos reclamar com
quem nos enganou; quanto ao pesquisador, ele já não estará mais entre nós para
prestar contas de seu vaticínio.
O cientista, neste caso, o pesquisador e a
entrevista jogam o tempo todo com uma ideia tipicamente religiosa: a ideia
de promessa. Os cientistas tornam-se então um tipo de casta sacerdotal,
pois estariam de posse de um primado. Sentencia o entrevistado: “os
cientistas são os únicos que resolvem problemas (…)”. Assim como no
pensamento religioso, o mundo é dividido entre puros e impuros,
entre o sacerdotee o fiel, o cientista é, portanto,
aquele que pode executar algo que somete ele pode fazer (“os cientistas são
os únicos …”), tal como só o padre pode oficiar a missa e o pastor o culto.
Se avançou o passo que separava o prognóstico da pregação, que delimitava as
formas do conhecimento e da crença. Neste ponto da entrevista, após o
vaticínio, já está lançado todo o encantamento, e a magia está no ar. Tanto que
do meio para o fim, o pesquisador não falará sobre o destino da ciência e da
filosofia, pois ele é agora o bom gestor: o mago das finanças. Nada atípico
para o jornal de uma cidade que mitificou um mau político para chamá-lo de bom
gestor. Ou seja, ocorre mais uma das mitificações contemporâneas que confunde
pesquisar e empreender. É justamente desta confusão que se tira a pretensa
nulidade das ciências humanas: elas não empreendem, dirão eles.
O manejo de uma especialidade singular confere ao
pesquisador um poder único, que sendo só seu, semelhante ao poder especial de
um super-herói, o projetaria como única voz confiável no campo do saber. Como
na fé, o índice de veracidade é dado pela autoridade que profere o discurso. O
leitor que pensa emprestar ouvidos a um discurso de ciência é tratado como um
fiel: deve aceitar resignado a promessa que lhe é dirigida. É preciso então
apressar a morte dos velhos hábitos para que a conversão ocorra e o sortilégio
se cumpra.
Entra então o contexto em que a disfarçada
propagada da Folha se realiza: para que manter na grade
curricular um saber que está em vias de desaparecer? O mito de que a Filosofia
não deve ser ensinada porque não serve para nada, não possui utilidade
imediata, é trocado por algo mais radical: sua morte.
Como já não é mais tão fácil condenar e matar
filósofos, assim como ocorreu a Sócrates e Giordano Bruno, tenta-se matar o
exercício do pensamento por meio de um sufocamento. A tentativa de escrever um
obituário precoce para a Filosofia revela sempre mais os incômodos que ela pode
causar. Se de fato, a Filosofia tornou-se um saber irrelevante e está fadada ao
óbito, qual o motivo de anunciar uma obviedade? Ora, não se trata mesmo de uma
morte, mas de uma tentativa de homicídio. Este tipo de crime não suja as mãos
de sangue, porém deixa grandes vestígios, rastros fáceis de serem seguidos e
efeitos que nunca cessam. O pensamento mágico está sempre em busca de novos bodes
expiatórios e agora parece ter encontrado mais uma vítima de seus sacrifícios:
deixaremos que matem o pensamento e que nos sufoquem?
Fonte: Por Fran Alavina
https://outraspalavras.net/brasil/a-morte-da-filosofia-e-o-retorno-do-pensamento-magico/
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