NÃO QUEREMOS NEM PODEMOS COMER MAIS VENENO!
PL
6.299/2002, em tramitação na Câmara dos Deputados, representa grandes
retrocessos. A proposta reduz poderes do Ibama e da Anvisa e concede ao
Ministério da Agricultura a competência para a liberação dos agrotóxicos,
propõe a flexibilização do controle do Estado, retira a competência de estados
e municípios para elaborar leis mais específicas e restritivas e libera
qualquer agrotóxico aprovado em pelo menos três países da OCDE, além de propor
a mudança na denominação dessas substâncias, que passariam a ser chamados
“produtos fitossanitários” ou “produtos de controle ambiental”
A lógica industrial de produção da comida, que deveria
alimentar nosso corpo e garantir nossa saúde, levou o Brasil a merecer o
“título” nada honroso de “campeão” mundial em uso de agrotóxicos. Esses
produtos – na verdade, venenos – são usados para eliminar espécies não
consideradas desejáveis pelo grande produtor e, assim, aumentar a produtividade
das lavouras. Eles já possuem isenções fiscais e outras concessões feitas pelo
Estado. Agora, estão prestes a colher benefícios ainda mais generosos, caso
seja aprovado o Projeto de Lei (PL) n.6.299/2002, em tramitação na Câmara dos
Deputados, que “afrouxa” a atual legislação.
Trata-se de um pacote de medidas que representará grandes
retrocessos. A proposta retira poderes do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente
e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e da Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa) e concede ao Ministério da Agricultura a competência para a
liberação dos agrotóxicos. O PL n.6.299/2002 também propõe a flexibilização do
controle do Estado em relação ao uso de agrotóxicos, infringindo acordos
internacionais dos quais o Brasil é signatário.
Além disso, o texto retira a competência de estados e
municípios para elaborar leis mais específicas e restritivas, ferindo o pacto
federativo nacional, e cria o Registro Especial Temporário (RET) e a
Autorização Temporária (AT) para qualquer agrotóxico que tenha sido aprovado em
pelo menos três países-membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OCDE), contrariando o princípio da precaução – imprescindível para
produtos e processos que acarretem risco potencial às pessoas e ao meio
ambiente.
O PL propõe ainda a mudança na denominação dessas
substâncias, que deixariam de ser chamadas de agrotóxicos, palavra que seria
depreciativa, e passariam a ser chamadas por uma expressão eufemística –
“produtos fitossanitários” ou “produtos de controle ambiental” –, uma óbvia
tentativa de dissimular os riscos, cada vez mais evidentes, que eles
representam à segurança alimentar e nutricional, à saúde da população e ao meio
ambiente.
A luta pela comida de verdade, não industrializada, sem
veneno, é uma das bandeiras do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional (Consea). Defendemos a proibição de todos os agrotóxicos banidos em
outros países e que ainda são usados no Brasil. O glifosato, por exemplo, já
proibido em diversos países, circula livremente e é intensivamente utilizado no
território nacional.
Defendemos, ainda, a aprovação do Projeto de Lei
6670/2016, apresentado na Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos
Deputados, que cria a Política Nacional de Redução do Uso de Agrotóxicos
(PNaRA). Apresentado na comissão pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva
(Abrasco), o texto foi construído por entidades da sociedade civil e estabelece
medidas de controle no uso desses produtos no país. Esse projeto é exatamente
um contraponto ao que está em votação agora e prevê a transição progressiva do
atual modelo de produção para sistemas baseados na agroecologia.
Atento às investidas de setores produtivos que privilegiam
o lucro acima e apesar de tudo, sem preocupação com a saúde e o meio ambiente,
o Consea tem feito recomendações a representantes dos poderes constituídos,
chamando a atenção para os impactos provocados por esses compostos químicos que
adoecem todo o sistema alimentar, desde o camponês até o consumidor final nas
grandes cidades.
Nesse sentido, o Consea, um conselho formado em dois
terços por representantes da sociedade civil, apoia a mobilização que vem sendo
feita por centenas de organizações sociais, que assinaram um manifesto púbico
contra a aprovação do chamado “PL do Veneno”. Senhores e senhoras deputados e
deputadas, senadores e senadoras, nós não queremos comer mais veneno, queremos
alimentação adequada e saudável, livre de agrotóxicos e transgênicos.
Estima-se que hoje cada brasileiro consome uma média de
sete litros de agrotóxicos por ano, dado que tem relação direta com as 70 mil
intoxicações agudas e crônicas no nosso país, segundo dados de um dossiê
elaborado pela Abrasco. O Ministério da Saúde alerta que, para cada evento de
intoxicação por agrotóxico notificado, há outros cinquenta não comunicados.
Existem inúmeras evidências do impacto dos agrotóxicos tanto na saúde pública
como no meio ambiente. O Instituto Nacional do Câncer (Inca) indicou a relação
direta entre o uso de agrotóxicos e diferentes tipos de câncer.
A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) divulgou nota na qual se
posiciona contra a aprovação do PL 6299. Para a Fiocruz, “a regulação de
agrotóxicos não pode ser tratada de forma simplista, com a proposição de
mudanças voltadas para atender aos interesses do mercado”.
Na verdade, o modelo adotado pela agricultura industrial
brasileira é baseado no uso intensivo de recursos naturais, sementes
transgênicas e agrotóxicos. Os grandes produtores são completamente dependentes
desse modelo, mas a população brasileira não o precisa ser.
Existem, sim, alternativas de produção de alimentos
adequados e saudáveis para toda a população. O que precisamos é ampliar o apoio
a formas sustentáveis de agricultura que respeitam a biodiversidade, fortalecer
os programas de assistência técnica que dão suporte à transição agroecológica e
garantir o acesso à terra e ao território para produção de alimentos.
O setor ruralista alega que estas ações impactam no custo
dos alimentos. Aqui fica a pergunta: quem de fato paga esta conta? A saúde
pública, as gerações atuais e futuras, o meio ambiente? A agricultura familiar,
as camponesas e os camponeses brasileiros produzem não apenas os alimentos que
chegam nos nossos pratos, mas são também responsáveis por uma economia local
sustentável. Não faltam evidências científicas, apelos de instituições
competentes e organizações científicas e da sociedade civil contra esse PL. Sua
aprovação é uma violação clara aos direitos à saúde e à alimentação adequada e
saudável. Basta de veneno, queremos comer comida de verdade!
*Elisabetta Recine é
presidenta do Consea, professora da Universidade de Brasília (UnB) e
pesquisadora.
Fonte: https://diplomatique.org.br/nao-queremos-nem-podemos-comer-mais-veneno/
- Acessado em 10.09.2018
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