BOAVENTURA: OS CONCEITOS QUE NOS FALTAM
Direitos
Humanos, Democracia, Paz e Progresso terão se transformado em biombos para ocultar
um mundo cada vez mais desigual, violento e alienado? Mas como superá-los?
Os seres
humanos, ao contrário dos pássaros, voam com raízes. Parte das raízes estão nos
conceitos que herdamos para analisar ou avaliar o mundo em que vivemos. Sem
eles, o mundo pareceria caótico, uma incógnita perigosa, uma ameaça
desconhecida, uma jornada insondável.
Os conceitos
nunca retratam exactamente as nossas vivências, até porque estas são muito mais
diversas e mutantes que as que servem de base aos conceitos dominantes. Estes
são, afinal, os conceitos que servem os interesses dos grupos social, política,
econômica e culturalmente dominantes, ainda que matizados pelas modificações
que lhes vão sendo introduzidas pelos grupos sociais que resistem à dominação.
Estes últimos nem sempre recorrem exclusivamente a esses conceitos. Muitas
vezes dispõem de outros que lhes são mais próximos e verdadeiros, mas
reservam-nos para consumo interno. No entanto, no mundo de hoje, sulcado por
tantos contactos, interações e conflitos, não podem deixar de tomar em conta os
conceitos dominantes, sob o risco de verem as suas lutas ainda mais
invisibilizadas ou mais cruelmente reprimidas. Por exemplo, os povos indígenas
e os camponeses não dispõem do conceito de meio ambiente, porque este reflete
uma cultura (e uma economia) que não é a deles. Só uma cultura que separa em
termos absolutos a sociedade da natureza, de modo a pôr esta à disposição
incondicional daquela, precisa de tal conceito para dar conta das consequências
potencialmente nefastas (para a sociedade) que de tal separação podem resultar.
Em suma, só uma cultura (e uma economia) que tende a destruir o meio ambiente
precisa do conceito de meio ambiente.
Em verdade,
ser dominado ou subalterno significa antes de tudo não poder definir a
realidade em termos próprios, com base em conceitos que reflitam os seus verdadeiros
interesses e aspirações. Os conceitos, tal como as regras do jogo, nunca são
neutros e existem para consolidar os sistemas de poder, sejam estes velhos ou
novos. Há, no entanto, períodos em que os conceitos dominantes parecem
particularmente insatisfatórios ou imprecisos. São-lhes atribuídos com igual
convicção ou razoabilidade significados tão opostos, que, de tão ricos de
conteúdo, mais parecem conceitos vazios. Este não seria um problema de maior se
as sociedades pudessem facilmente substituir esses conceitos por outros mais
esclarecedores ou condizentes com as novas realidades. A verdade é que os
conceitos dominantes têm prazos de validade insondáveis, quer porque os grupos
dominantes têm interesse em mantê-los para disfarçar ou legitimar melhor a sua
dominação, quer porque os grupos sociais dominados ou subalternos não podem
correr o risco de deitar fora o bebê com a água do banho. Sobretudo quando
estão a perder, o medo mais paralisante é perder tudo. Penso que vivemos um
período com estas características. Paira sobre ele uma contingência que não é
resultado de nenhum empate entre forças antagônicas, longe disso. Mais parece
uma pausa à beira do abismo e a olhar para trás.
Os grupos
dominantes nunca sentiram tanto poder nem nunca tiveram tão pouco medo dos
grupos dominados. A sua arrogância e ostentação não têm limites. No entanto,
têm um medo abissal do que ainda não controlam, uma apetência desmedida por
aquilo que ainda não possuem, um desejo incontido de prevenirem todos os riscos
e terem apólices contra todos eles. No fundo, suspeitam serem menos
definitivamente vencedores da história quanto pretendem, serem senhores de um
mundo que se pode virar contra eles a qualquer momento e de forma caótica. Esta
fragilidade perversa, que os corrói por dentro, fá-los temer pela sua segurança
como nunca, imaginam obsessivamente novos inimigos, e sentem terror ao pensar
que, depois de tanto inimigo vencido, são eles, afinal, o inimigo que falta
vencer.
Por sua vez,
os grupos dominados nunca se sentiram tão derrotados quanto hoje, as exclusões
abissais de que são vítimas parecem mais permanentes do que nunca, as suas
reivindicações e lutas mais moderadas e defensivas são silenciadas,
trivializadas pela política do espectáculo e pelo espectáculo da política,
quando não envolvem riscos potencialmente fatais. E, no entanto, não perdem o
sentido fundo da dignidade que lhes permite saber que estão a ser tratados
indignamente e imerecidamente. Que melhores dias terão de vir. Não se resignam,
porque desistir pode ser-lhes fatal. Apenas sentem que as armas de luta não
estão calibradas ou não são renovadas há muito; sentem-se isolados,
injustiçados, carentes de aliados competentes e de solidariedade eficaz. Lutam
com os conceitos e as armas que têm mas, no fundo, não confiam nem nuns nem
noutras. Suspeitam que enquanto não tiverem confiança para criar outros
conceitos e inventar outras lutas correrão sempre o risco de serem inimigos de
si mesmos.
Tal como
tudo o resto, os conceitos estão à beira do abismo e olham para trás. Menciono,
a título de exemplo, um deles: direitos humanos.
Nos últimos
cinquenta anos os direitos humanos transformaram-se na linguagem privilegiada
da luta por uma sociedade melhor, mais justa, menos desigual e excludente, mais
pacífica. Tratados e convenções internacionais existentes sobre os direitos
humanos foram sendo fortalecidos por novos compromissos no plano das relações
internacionais e do direito constitucional, ao mesmo tempo que o elenco dos
direitos se foi ampliando de modo a abranger injustiças ou discriminações
anteriormente menos visíveis (direitos dos povos indígenas e afro-descendentes,
mulheres, LGBTI; e direitos ambientais, culturais, etc.). Movimentos sociais e
organizações não-governamentais foram-se multiplicando ao ritmo das
mobilizações de base e dos incentivos de instituições multilaterais. Em pouco
tempo, a linguagem dos direitos humanos passou a ser a linguagem hegemônica da
dignidade, uma linguagem consensual, eventualmente criticável por não ser
suficientemente ampla, mas nunca impugnável por algum defeito de origem.
Claro que se
foi denunciando a distância entre as declarações e as práticas e a duplicidade
de critérios na identificação das violações e nas reações contra elas, mas nada
disso abalou a hegemonia da nova literacia da convivência humana. Cinquenta
anos depois, qual é o balanço desta vitória? Vivemos hoje numa sociedade mais
justa, mais pacífica? Longe disso, a polarização social entre ricos e pobres
nunca foi tão grande, guerras novas, novíssimas, regulares, irregulares, civis,
internacionais continuaram a ser travadas, com orçamentos militares imunes à
austeridade, e a novidade é que morrem nelas cada vez menos soldados e cada vez
mais populações civis inocentes: homens, mulheres e, sobretudo, crianças. Em
consequência delas, do neoliberalismo global e dos desastres ambientais, nunca
como hoje tanta gente foi forçada a deslocar-se das regiões ou dos países onde
nasceu, nunca como hoje foi tão grave a crise humanitária. Mais trágico ainda é
o facto de muitas das atrocidades cometidas e atentados contra o bem-estar das
comunidades e dos povos terem sido perpetrados em nome dos direitos humanos.
Claro que
houve conquistas em muitas lutas, e muitos ativistas de direitos humanos
pagaram com a vida o preço da sua entrega generosa. Acaso eu não me considerei
e considero um ativista de direitos humanos? Acaso não escrevi livros sobre as
concepções contra-hegemônicas e interculturais de direitos humanos? Apesar
disso, e perante uma realidade cruel que só não salta aos olhos dos hipócritas,
não será tempo de repensar tudo de novo? Afinal, a vitória dos direitos humanos
foi uma vitória de quê e de quem? Foi a derrota de quê e de quem? Terá sido
coincidência que a hegemonia dos direitos humanos se acentuou com a derrota
histórica do socialismo simbolizada na queda do Muro de Berlim? Se todos
concordam com a bondade dos direitos humanos, ganham igualmente com tal
consenso tanto os grupos dominantes como os grupos dominados? Não terão sido os
direitos humanos uma armadilha para centrar as lutas em temas setoriais,
deixando intacta (ou até agravando) a dominação capitalista, colonialista e
patriarcal? Não se terá intensificado a linha abissal que separa os humanos dos
sub-humanos, sejam eles negros, mulheres, indígenas, muçulmanos, refugiados,
imigrantes indocumentados? Se a causa da dignidade humana, nobre em si mesma,
foi armadilhada pelos direitos humanos, não será tempo de desarmar a armadilha
e olhar para o futuro para além da repetição do presente?
Estas são
perguntas fortes, perguntas que desestabilizam algumas das nossas crenças mais
enraizadas e das práticas que sinalizam o modo mais exigentemente ético de
sermos contemporâneos do nosso tempo. São perguntas fortes para as quais apenas
temos respostas fracas. E o mais trágico é que, com algumas diferenças, o que
acontece com os direitos humanos acontece com outros conceitos igualmente
consensuais. Por exemplo, democracia, paz, soberania, multilateralismo, primado
do direito, progresso. Todos estes conceitos sofrem o mesmo processo de erosão,
a mesma facilidade com que se deixam confundir com práticas que os contradizem,
a mesma fragilidade perante inimigos que os sequestram, cooptam e transformam
em instrumentos dóceis das formas mais arbitrárias e repugnantes de dominação
social. Tanta desumanidade e chauvinismo em nome da defesa dos direitos
humanos, tanto autoritarismo, desigualdade e discriminação transformados em
normal exercício da democracia, tanta violência e apologia bélica para garantir
a paz, tanta pilhagem colonialista dos recursos naturais, humanos e financeiros
dos países dependentes com o respeito protocolar da soberania, tanta imposição
unilateral e chantagem em nome do novo multilateralismo, tanta fraude e abuso
de poder sob a capa do respeito das instituições e do cumprimento da lei, tanta
destruição arbitrária da natureza e da convivência social como preço inevitável
do progresso!
Nada disto
tem de ser inevitavelmente assim e para sempre. A mãe de toda esta confusão,
induzida por quem beneficia dela, de toda esta contingência disfarçada de
fatalismo, de toda esta paragem vertiginosa à beira do abismo reside na erosão
bem urdida, nos últimos cinquenta anos, da distinção entre ser de esquerda e
ser de direita, uma erosão levada a cabo com a cumplicidade de quem mais seria
prejudicado por ela. Foi por via dessa erosão que desapareceram do nosso
vocabulário político as lutas anti-capitalistas, anti-colonialistas, anti-fascistas,
anti-imperialistas. Concebeu-se como passado superado o que afinal era o
presente mais do que nunca determinado a ser futuro. Nisto consistiu estar no
abismo a olhar para trás, confiante que o passado do futuro nada tem a ver com
o futuro do passado. Esta a maior monstruosidade do tempo presente.
Boaventura Souza Santos
Fonte: https://outraspalavras.net/destaques/boaventura-os-conceitos-que-nos-faltam/
- acessado em 11.09.2018
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