PARA OPERAR NO VAZIO, A MÁQUINA
JURÍDICA NECESSITA DE CADA VEZ MAIS RECURSOS.
O
jurista e filósofo italiano Giorgio Agamben (1942...) diagnosticou que a
máquina jurídica é ilegítima nas democracias ocidentais contemporâneas. Essa
ilegitimidade decorre, dentre outras coisas, da impossibilidade de
participarmos da tomada de decisões, que incidem na esfera pública a partir da
ação comum como forma de contribuir na decisão dos rumos da polis. Nesses
modelos democráticos, espetacularizados e biopolíticos, somos reduzidos a
corpos biológicos controláveis por meio de técnicas do poder, inseridos em
sociedades espetacularizadas submersas em informações aligeiradas e fake news[1].
Diante
da ausência de legitimidade, a intensidade em que opera a máquina precisa ser
elevada e mais recursos se fazem necessários. Essas duas necessidades se
complementam a ponto de, possivelmente, se tornarem exigências ilimitadas. Para
continuar operando, sem considerar as promessas da modernidade, a máquina
demanda a produção de leis novas. A produção legislativa é elevada com a
pretensão de compensar a ilegitimidade da máquina, bem como alimentar a crença
de quanto mais legislação maior a segurança a disposição dos indivíduos
ensimesmados em sua cotidianidade de produtores e consumidores.
O
imoral aumento da remuneração dos ministros do Supremo Tribunal Federal, de
16,38%[2], a qual estão vinculadas todas as
remunerações de todos os juízes e promotores do Brasil, é somente um dos
desdobramentos desse fenômeno, uma das exigências da máquina jurídica para
continuar operando no vazio sem que seja paralisada.
Nos
ateremos um pouco mais detidamente a essa variável. Recentemente criticamos os
gastos do judiciário com café, com o descaso para com os vínculos empregatícios
de milhões de brasileiros e muitas outras críticas à máquina jurídica. Mas o
fato é que nem mesmo Giorgio Agamben aposta num retorno ao passado como saída.
Ainda que não nos aponte um caminho, somente diga que o caminho é a política
que vem, realizada pela comunidade que vem, essas afirmações nos servem de
norte, não de caminho. O caminho faremos caminhando.
O
que estamos propondo aqui é direito e o dever em relação ao debate em torno dos
negócios da polis que
pertence a todos os brasileiros. Ou seja, é a proposta de retomada da
esfera pública para debates que ultrapassem as meras discussões sobre futebol,
roupas, penteados etc., mas que digam respeito aos rumos ou descaminhos
civilizatórios em que nos encontramos inseridos. Essas discussões sobre
preferências pessoais eram travadas, na antiguidade, no âmbito familiar, na oikos. Talvez não
precisemos exclui-las do espaço público, mas essa pauta é secundária, não
primária. O fato é que, atualmente, invertemos as esferas. Discutimos política
entre familiares e amigos, e preferências pessoais na esfera pública.
Explicado
isso, ou pelo menos situado no contexto em que nos encontramos inseridos
retomemos o argumento do aumento salarial dos juízes. Atualmente o judiciário
acumula cada vez mais processos. Isso não é só culpa deles, mas de todos os
indivíduos que renunciam à potência de discutir e de fazer acordos
utilizando-se de seu bom senso, ou de seu senso de justiça. Diante da
incapacidade de agir de forma autônoma e por decorrência necessária
responsável, os indivíduos em sua condição de heteronomia recorrem ao grande
pai Judiciário para que lhe diga o que devem fazer. Pequenas brigas entre
vizinhos certamente não são fenômenos contemporâneos, mas é contemporânea a
terceirização da resolução dessas brigas.
Ao
que tudo indica, perdemos a capacidade de diálogo, nossa potência de comunicar
e negociar a vida comum no espaço público. Em função disso, chamamos outras
pessoas, alheias aos conflitos, para que digam quem “tem direito” a algo. É por
isso que Giorgio Agamben diagnosticou que a finalidade da norma é o julgamento[3].
Entretanto,
se a culpa do acúmulo de processos não é só dos juízes, isso não altera o fato
de ser uma corporação improdutiva que recebe altos salários, pensões generosas
e não resolve os problemas da sociedade. E nem poderiam resolver, pois são
problemas sociais, não problemas judiciais. Qualquer pessoa que já tenha
processado ou sido processado bem sabe que as conclusões, frequentemente, são
lotéricas, reforçando a insegurança jurídica existente antes do processo. Em
outros termos, um processo não é uma solução, mas outro problema.
Mais
do que isso, as sentenças são redigidas com mais frequência por terceiros
(estagiários e assessores) do que pelos juízes, o que os reduz à condição de
gestores de gabinetes com atribuições de revisar textos, orientar os trabalhos,
presidir audiências e delegar as funções.
Mesmo
assim, enquanto a população empobrece, os conflitos sociais se aprofundam,
muitos dos quais estão vinculados às insuficiências econômicas, as instituições
derretem, o Leviatã brasileiro eleva os salários dos agentes públicos para, uma
vez mais, tentar compensar a própria ilegitimidade com produção legislativa.
O
judiciário não resolve problemas sociais, provavelmente nem pode resolvê-los,
mas consome o sangue e o suor dos milhões de brasileiros espoliados para
alimentá-lo. Obviamente não incluímos aqui os rentistas que pagam impostos
reduzidos e nem os empresários que retiram os lucros das empresas com isenção
de imposto de renda, bem como repassam toda a carga tributária aos consumidores
e depois mentem descaradamente em público acerca de uma carga tributária
elevadíssima que pagam. Quem paga esses tributos são os pobres e a classe média
empregada ou funcionária pública.
Uma
vez mais Agamben em suas análises e interpretações das contradições
político-jurídicas ocidentais sugere que neste contexto todos os governos do
mundo são ilegítimos[4]. Esta condição de ilegitimidade se
intensifica no caso do aumento imoral dos salários do poder judiciário. Milhões
de brasileiros sobrevivem com seus baixos salários, outros tantos na
informalidade e, um contingente significativo está desempregado. Falta de
medicamentos e leitos em hospitais públicos. Prédios escolares mais parecem
depósitos de gente, faltam salas de aula, material escolar. Professores de
todos os níveis mal pagos, sobrecarregados e, coagidos em sua liberdade de
cátedra. A lista das mazelas do “brasil” dos brasileiros se estende ad infinitum. Porém,
o “Brasil” das corporações, neste caso do judiciário, se locupleta com os
recursos públicos que faltam aos brasileiros. Tudo indica que é a
maldição da Casa Grande e da senzala que nos persegue e impede que construamos
um país que acolha a criatividade, a diversidade e a vida de milhões de miseráveis
que pagam com suor e sangue os acordos e a voracidade das corporações que
conduzem os destinos deste gigante inerte e indolente.
Notas e Referências
[1] Argumentos que perpassam todo o projeto Homo Sacer,
composto por nove livros: I. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua, 1995;
II, 1. Estado de exceção, 2003; II, 2. Stasis. La guerra civile come paradigma
politico, 2015; II, 3. O sacramento da linguagem. Arqueologia do juramento,
2008; II, 4. O reino e a glória. Por uma genealogia teológica da economia e do
governo, 2009; II, 5. Opus Dei. Arqueologia do ofício, 2012; III. O que resta
de Auschwitz. O arquivo e o testemunho, 1998, IV, 1. Altíssima pobreza. Regras
monásticas e formas de vida, 2011 e IV, 2. O uso dos corpos, 2014.. Alguns
desses argumentos foram sintetizados pelo autor em entrevista concedida em
2014. In: BURNAZOS,
Stratis. Agamben: A
democracia é um conceito ambíguo. Entrevista especial com Giorgio Agamben.
Trad. Selvino José Assmann. Blog da Boitempo, São Paulo, 04 jul. 2014.
Disponível em: <https://blogdaboitempo.com.br/2014/07/04/agamben-a-democracia-e-um-conceito-ambiguo/>.
Acesso em: 21 nov. 2018.
[2] Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2018-11/senado-aprova-reajuste-para-o-judiciario>.
[3] “Como os juristas sabem muito bem, acontece que o
direito não tende, em última análise, ao estabelecimento da justiça. Nem sequer
ao da verdade. Busca unicamente o julgamento. Isso fica provado para além de
toda dúvida pela força
da coisa julgada, que diz respeito também a uma sentença injusta. A
produção da res judicata –
com a qual a sentença substitui o verdadeiro e o justo, vale como verdadeira a
despeito da sua falsidade e injustiça – é o fim último do direito. Nessa
criatura híbrida, a respeito da qual não é possível dizer se é fato ou norma, o
direito encontra paz; além disso ele não consegue ir.” In: AGAMBEN,
Giorgio. O que resta de Auschwitz:
o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). Trad. Selvino José Assmann. São
Paulo: Boitempo, 2008, p. 28.
[4] “Argumentos centrais do projeto Homo Sacer, também
sintetizados em entrevista com o filósofo, sobretudo na questão a seguir:
Isso significa que a crise da
dívida, das finanças públicas, monetária, da União Europeia… é interminável?
A crise
atual tornou-se um instrumento de dominação. Ela serve para legitimar decisões políticas
e econômicas que de fato desapropriam cidadãos e os desproveem de qualquer
possibilidade de decisão. Na Itália isso é muito claro. Aqui um governo foi
formado em nome da crise e Berlusconi voltou ao poder apesar de basicamente
contrariar a vontade do eleitorado. Esse governo é tão ilegítimo quanto a dita
constituição europeia. Os cidadãos da Europa devem ter claro que esta crise
interminável – assim como um estado de emergência – é incompatível com a
democracia.” In: SCHÜMER, Dirk.
A crise infindável como instrumento de poder: uma conversa com Giorgio Agamben.
Trad. Artur Renzo. Blog
da Boitempo, São Paulo, 04 jun. 2013. Disponível em: <https://blogdaboitempo.com.br/2013/07/17/a-crise-infindavel-como-instrumento-de-poder-uma-conversa-com-giorgio-agamben/>.
Acesso em: 21 nov. 2018.
AUTORES:
Luiz Eduardo Cani é
Professor (UnC), pesquisador (FURB e UnC), advogado e consultor jurídico
(Urbaneski & Cani Advocacia e Consultoria Jurídica). Graduado em Direito
(FURB), especialista em Direito Penal e Criminologia (ICPC) e mestrando em
Desenvolvimento Regional (UnC). Bolsista do Programa de Bolsas Universitárias
do Estado de Santa Catarina - UNIEDU.
Sandro Luiz Bazzanella
Graduado
em Filosofia; Mestre em Educação; Doutor em Ciências Humanas. Professor do
Mestrado em Desenvolvimento Regional da Universidade do Contestado.
Link:
http://emporiododireito.com.br/leitura/para-operar-no-vazio-a-maquina-juridica-necessita-de-cada-vez-mais-recursos
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