terça-feira, 11 de dezembro de 2018


BAUMAN, Zygmunt. A Arte da Vida. Trad. Carlos Alberto Medeiros. RJ: Zahar, 2009.

Imagem relacionada


Ficha de Leitura
Subsídio para estudo
 Prof. Sandro Luiz Bazzanella







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INTRODUÇÃO

O que há de errado com a felicidade

(…)? Em nossa busca pela felicidade – (…), temos em mente na maior parte do tempo, preenche a maior parte de nossas vidas, não pode nem vai abrandar a marcha, muito menos parar... pelo menos não por mais que um instante (fugaz, sempre fugaz).

(…). De fato, como poderia haver algo de errado com a felicidade7. "Felicidade" não seria sinônimo de ausência de erro? Da própria impossibilidade de sua presença? Da impossibilidade de todo e qualquer erro?!

(…). Parece que a busca dos seres humanos pela felicidade pode muito bem se mostrar responsável pelo seu próprio fracasso.

A íntima correlação entre crescimento econômico e maior felicidade é amplamente considerada uma das verdades menos questionáveis, talvez até a mais auto-evidente.

Segundo praticamente todos os relatórios de pesquisa exa­minados e resumidos por Rustin, "as melhoras nos padrões de vida em nações como Estados Unidos e Grã-Bretanha não estão associadas a um aumento - e sim a um ligeiro declínio - do bem-estar subjetivo".

A estratégia de tornar as pessoas mais felizes aumentando suas rendas aparentemente não funciona. (…), um indicador social que até agora parece estar crescendo de modo espetacular paralelamente ao nível de riqueza – (…) subjetivo - é a taxa de criminalidade: roubos a residências e de automóveis, tráfico de drogas, suborno e corrup­ção no mundo dos negócios. E cresce também uma incômoda e desconfortável sensação de incerteza difícil de suportar, e com a qual é ainda mais difícil conviver permanentemente.

(…). Poderíamos até dizer que nossa era moderna começou verdadeiramente com a proclamação do direito humano universal à busca da felicidade, e da pro­messa de demonstrar sua superioridade em relação às formas de vida que ela substituiu tornando essa busca menos árdua e penosa, e ao mesmo tempo mais eficaz.

(…). Presume-se que o aumento do dispêndio de dinheiro deva coincidir com um mo­vimento ascendente similar da felicidade daqueles que o gastam, mas isso não é imediatamente óbvio.

(…). Em resumo, o PNB mede tudo, menos o que faz a vida valer a pena.

Observadores indicam que cerca de metade dos bens cru­ciais para a felicidade humana não tem preço de mercado nem pode ser adquirida em lojas. Qualquer que seja a sua condição em matéria de dinheiro e crédito, você não vai encontrar num shopping o amor e a amizade, os prazeres da vida doméstica, a satisfação que vem de cuidar dos entes queridos ou de ajudar um vizinho em dificuldade, a auto-estima proveniente do tra­balho bem-feito, a satisfação do "instinto de artífice" comum a todos nós, o reconhecimento, a simpatia e o respeito dos colegas de trabalho e outras pessoas a quem nos associamos; você não encontrará lá proteção contra as ameaças de desrespeito, despre­zo, afronta e humilhação.

O consumo toma tempo (ir às compras também), e os ven­dedores de bens de consumo são naturalmente interessados em reduzir ao mínimo o tempo dedicado à agradável arte de con­sumir.

Simultaneamente, eles se interessam em cortar o máxi­mo possível, ou eliminar de uma vez, as atividades que ocupam muito tempo mas geram poucos lucros de mercado.

(…) os potenciais compradores dese­jam resultados rápidos e um engajamento apenas momentâneo de suas faculdades físicas e mentais - provavelmente a fim de liberar seu tempo para opções mais atraentes.

Com nosso "culto à satisfação instantâ­nea", ponderava ela, muitos de nós "teríamos perdido a capaci­dade de esperar": (…)

Os prazeres do relaxamento não são os únicos sacrificados no altar da vida apressada em nome da economia de tempo para buscar outras coisas.

A longo prazo, as habilidades um dia adquiridas, e a própria capacidade de aprender e dominar novas habilidades, são esquecidas e perdidas, e com elas se vai a alegria de satisfazer o instinto de artífice, essa condição vital para a auto-estima, tão difícil de ser substituída, juntamente com a felicidade oferecida pelo respeito por si mesmo.

Toda e qualquer oferta exige certo sacrifício da parte do doador, e é precisamente a consciência do auto-sacrifício que aumenta seu sentimento de felicidade. Presentes que não reque­rem esforço nem sacrifício, e portanto não exigem a renúncia de outros valores cobiçados, são inúteis nesse quesito.

Os mercados identifi­caram perfeitamente a oportunidade de lucrar com o impulso do auto-sacrifício, fiel companheiro do amor e da amizade.

(…): alegar que o volume e a profundidade da felicidade humana podem ser cuidados e adequadamente servidos fixando-se as atenções num único índice - o PNB - é deveras enganoso. Quando transformada em princípio da governança, tal alegação pode tam­bém se tornar perigosa, provocando conseqüências opostas àquelas pretendidas e supostamente perseguidas.

Desse modo, parece que o aumento do "produto nacional" é uma medida bastante pobre do aumento da felicidade. Ele pode ser visto, em vez disso, como um indicador sensível das estra­tégias, caprichosas e ilusórias como possam ser, que, em nossa busca da felicidade, somos forçados, persuadidos ou induzidos a adotar - ou manipulados para tal.

(…). Podemos de­duzir das estatísticas como é forte e generalizada a crença de que há um vínculo íntimo entre a felicidade e o volume e qualidade do consumo: um pressuposto subjacente a todas as estratégias mediadas pelas lojas.

Um dos efeitos mais seminais de se igualar a felicidade à com­pra de mercadorias que se espera que gerem felicidade é afastar a probabilidade de a busca da felicidade algum dia chegar ao fim. Essa busca nunca vai terminar - seu fim eqüivaleria ao fim da fe­licidade como tal.

Na pis­ta que leva à felicidade, não existe linha de chegada. Os pretensos meios se transformam em fins: o único consolo disponível em re­lação ao caráter esquivo do sonhado e ambicionado "estado de fe­licidade" é permanecer no curso; enquanto se está na corrida, sem cair exausto nem receber um cartão vermelho, a esperança de uma vitória futura se mantém viva.

Imperceptivelmente, a visão da fe­licidade muda da antecipação da alegria pós-aquisição para o ato de compra que a precede - um ato transbordante de expectativa jubilosa; jubilosa de uma esperança ainda imaculada e intacta.

(…) buscar a felicidade numa sociedade de mercado de con­sumo caracterizada por marcas, logos e lojas exige que ele seja hipotecado.

Marcas, logos e grifes são os termos da linguagem do reco­nhecimento.

A operação acima descrita está por trás da preocupação com a "identidade" a que foi concedida tal centralidade em nossa sociedade de consumi­dores. Mostrar "caráter" e ter uma "identidade" reconhecida, assim como descobrir e obter os meios de assegurar a realização desses propósitos inter-relacionados, tornam-se preocupações centrais na busca de uma vida feliz.

(…), a "identidade" agora compartilha o destino de outros equipamentos da vida: espera-se e prefere-se que ela, na falta de uma direção determinada definitiva, e não mais destinada a deixar atrás de si traços sólidos e indestrutí­veis, seja fácil de ser fundida e passível de ser remodelada em di­ferentes formatos. Antes um "projeto para toda a vida", a iden­tidade agora se transformou num atributo momentâneo. Uma vez planejada, não é mais "construída para durar eternamente": precisa ser continuamente montada e desmontada.

As habilidades exigidas para enfrentar o desafio da manipu­lação líquido-moderna do reprocessamento e reciclagem da iden­tidade são semelhantes às de um malabarista, ou, mais exatamen­te, à engenhosidade e destreza de um prestidigitador.

(…) Georg Simmel, um dos fundadores da ciência social, assinalou (…), os valores são mensurados pelos outros va­lores que devem ser sacrificados para obtê-los, e a demora na sa­tisfação é reconhecidamente o mais penoso dos sacrifícios para quem se encontra nos ambientes em rápido movimento e em rápida mudança característicos de nossa sociedade líquido-moderna de consumidores.

(…). O que de fato é novo é o sonho gêmeo de fugir do próprio eu e adquirir um outro feito sob encomenda - e a convicção de que transformar esse sonho em realidade é algo que está a nosso alcance. Não apenas uma opção possível, mas a mais fácil, a que tem probabilidade de funcionar em caso de encrenca; (…).

Numa sociedade de compradores e numa vida de compras, estamos felizes enquanto não perdemos a esperança de sermos fe­lizes. Estamos seguros em relação à infelicidade enquanto uma parte dessa esperança ainda palpita. E portanto a chave para a felicidade e o antídoto da miséria é manter viva a esperança de ficar feliz. Mas ela só pode permanecer viva sob a condição de uma rápida sucessão de "novas oportunidades" e "novos iní­cios", e da perspectiva de uma cadeia infinitamente longa de no­vos inícios à frente.

Numa sociedade de consumidores, todos os laços e vínculos devem se­guir o padrão da relação entre o comprador e as mercadorias que ele adquire: das mercadorias não se espera que abusem da hospitalidade, e elas devem deixar o palco da vida no momento em que comecem a perturbá-lo em vez de adorná-lo; dos com­pradores não se espera - nem estão eles dispostos a isso - que ju­rem fidelidade eterna às aquisições que trazem para casa ou que lhes concedam direito de residência permanente.

Os relaciona­mentos "novos e aperfeiçoados", "de comprometimento light", reduzem seu tempo de duração para que ele seja o mesmo da satisfação que produzem: o compromisso é válido até que a sa­tisfação desapareça ou caia abaixo de um padrão aceitável - e nem um instante mais.

Há pelo menos duas maneiras diferentes de avaliar o im­pacto da "compromissofobia" sobre o estado e as perspectivas da felicidade de nossos contemporâneos. Uma delas é dar boas-vindas e aplaudir a redução dos custos de um período prazero­so.

A receita ideal de Friedrich Nietzsche para uma vida feliz, plenamente humana - um ideal que ganha popularidade em nossos tempos pós-modernos ou "líquido-modernos" -, é a imagem do Super-Homem, o grande mestre da arte da auto-afirmação, capaz de se evadir ou escapar de todos os grilhões que restringem a maioria dos mortais comuns.

("Os 'bem-nascidos'", insistia Nietzsche, "simplesmente se sentiam os 'felizes'; não pre­cisavam fabricar artificialmente a sua felicidade ... [nem] se per­suadirem ou mentirem para si mesmos de que eram felizes ... Homens completos como eram, de força exuberante, e portanto necessariamente enérgicos, eram sábios demais para dissociarem a felicidade da ação - a atividade vem a ser, em suas mentes, ne­cessariamente considerada como felicidade.")

(…) impulso do potencial Super-Homem para completar o autocontrole; as conseqüências dos feitos que ele mesmo empre­endeu e realizou em seu interesse. O momento presente (e cada passo no caminho para completar o autocontrole é um ou outro "momento presente") não pode ser sistematicamente separado de tudo que já aconteceu. Um "novo início" é uma fantasia que não pode de fato ser realizada, já que o ator chega ao momento atual portando marcas indeléveis de todos os momentos ante­riores; e, sendo um Super-Homem, as marcas dos momentos passados só podem ser as de seus próprios feitos pregressos. Um episódio" plenamente independente e auto-suficiente é um mito. Os atos têm conseqüências que lhes sobrevivem. "A von­tade que planeja o futuro é privada pelo passado de sua liberda­de , comenta Buczy.ska-Garewicz.

(…)." A "capacidade de resistência do momento" é, podemos dizer, o dobre de finados das tentativas de um "novo início".

Nietzsche deseja que o Homem Superior trate o passado (incluindo seus próprios feitos e compromissos anteriores) com desprezo e se sinta livre em relação a ele. Mas permitam-me re­petir: o passado que atrasa ou detém o vôo da imaginação e ata as mãos dos planejadores do futuro nada mais é que um sedi­mento de momentos passados; as fraquezas atuais são efeitos diretos ou indiretos de suas antigas demonstrações de força.

O Homem Superior de Nietzsche parecia destinado a termi­nar como a maioria de nós, simples mortais.

(…), fosse essa ou não a intenção de Nietzsahe, pode­mos interpretar sua mensagem (…) como um aviso: embora a auto-afirmação seja o destino humano, e embora para implementar esse desti­no fosse necessário um poder genuinamente sobre-humano de autocontrole, e embora fosse preciso buscar, reunir e empregar uma força verdadeiramente sobre-humana para realizar esse destino e assim fazer justiça a seu próprio potencial humano, o "projeto Super-Homem" carrega desde o início as sementes de sua derrota. ]

Nossas vidas, quer o saibamos ou não e quer o saudemos ou lamentemos, são obras de arte. Para viver como exige a arte da vida, devemos, tal como qualquer outro tipo de artista, esta­belecer desafios que são (pelo menos no momento em que esta­belecidos) difíceis de confrontar diretamente; devemos escolher alvos que estão (ao menos no momento da escolha) muito além de nosso alcance, e padrões de excelência que, de modo pertur­bador, parecem permanecer teimosamente muito acima de nos­sa capacidade (pelo menos a já atingida) de harmonizar com o que quer que estejamos ou possamos estar fazendo. Precisamos tentar o impossível.

A incerteza é o hábitat natural da vida humana - ainda que a esperança de escapar da incerteza seja o motor das atividades humanas. Escapar da incerteza é um ingrediente fundamental, mesmo que apenas tacitamente presumido, de todas e quaisquer imagens compósitas da felicidade.


1. AS MISÉRIAS DA FELICIDADE

O "o" a ser gasto é a esperada recompensa por dias repletos de escolhas perigosas e enervantes e por mui­tas noites insones assombradas pelo horror de passos em falso e apostas erradas. É a alegria que faz as dores valerem a pena. Em suma, "o" significa felicidade. Ou melhor, a esperança de felicidade que é felicidade.

Será que o progresso rumo à felicidade pode ser medido pela rarefação do grupo de companheiros de viagem? (…) essa crença, (…), é que guia a busca da felicidade

O "mundo da fantasia" criado pelos editores de "Como Gastá-lo", insiste ela, é marcado pela "fragilidade e a impermanência. A luta por legitimidade mediante a magnificência e o excesso implica instabilidade e vulnerabilidade."

O consumo não leva à certeza e à saciedade. O bastante nunca bastará." Como um dos colaboradores de "Como Gastá-lo" adverte seus leitores, num mundo em que "todos" podem ter um carro de luxo, os que realmente miram alto "não têm opção senão comprar um melhor".

A felicidade exige que se pareça estar à frente dos competidores...

O que as butiques fizeram pelos poucos escolhidos certamente emprestará autoridade e credibi­lidade às promessas das cópias massificadas vendidas nas lojas. E as promessas, em ambos os casos, são marcantemente pareci­das: torná-lo "melhor que.." – (…).

A auto-estima, o reforço do ego derivado da demonstração de suas supremas habilidades, foi ob­tida à custa da humilhação do protagonista.

A in­disposição é contagiosa e poucos habitantes da sociedade líquido-moderna de consumidores, se é que algum, podem se gabar de serem totalmente imunes à ameaça de contaminação. Nossa vulnerabilidade, diz Scheler, é inevitável (e provavelmente in­curável) num tipo de sociedade em que a relativa igualdade de direitos políticos e outros e a igualdade social formalmente re­conhecida caminham de par com uma enorme diferenciação em termos genuínos de poder, posses e educação; uma sociedade em que todos "têm o direito" de se considerarem iguais a todos os outros, embora sendo, de fato, incapazes de se igualar a eles.

(…) uma sociedade que es­tabelece para todos os membros um padrão de felicidade que a maioria desses "todos" é incapaz ou impedida de alcançar.

(…) Immanuel Kant (…). "O conceito de felicidade", declarou ele, "é de tal modo indeterminado que, embora todos desejem atingi-la, não podem, contudo, afirmar de modo definitivo e consistente o que é que realmente desejam e pretendem." Podemos acrescentar: quando se trata da felicidade, não se pode ser ao mesmo tempo definitivo e consistente. Quanto mais se é definitivo, menor a chance de permanecer consistente.

Espera-se que a realização venha num pacote que negocie com a tentação da inconsistência: de recuar ou mover-se para os lados...

O desejo de felicidade, que, a crermos em Platão, Sócrates já proclamava ser um fato bruto da vida, parece ser um eterno companheiro da existência humana. Mas igualmente eterna pa­rece ser a aparente impossibilidade de sua realização e satisfação totais, inquestionáveis, je ne regrette rien.

E igualmente eterna, (…), é a impossi­bilidade de os seres humanos algum dia deixarem de desejar a felicidade - e, com efeito, fazer o possível para procurá-la, con­segui-la e mantê-la.

(…) o que deve confundir mais as pessoas que buscam a felicidade no ambiente contemporâneo é o pressuposto tácito de que a fe­licidade é (poderia ser, deveria ser) um estado, talvez até um es­tado estável e permanente, imutável quando alcançado.

Como o Fausto de Christopher Marlowe penosamente aprendeu, desejar que um momento de alegria permaneça "o mesmo" indefinidamente é uma forma segura de obter um compromisso por prazo indeter­minado com o inferno em vez da felicidade...

Para grande parte de nossos contemporâneos, é na verdade a condição de "estar no seu caminho" (…) que, apesar de ser um teste enervante para a paciência, é saudada como um valor - e, com certeza, um valor muito precioso.

Se a felicidade pode ser um "estado", só pode ser um estado de excitação estimulado pela incompletude...

No limiar da era moderna, "o estado de felicidade" foi substi­tuído na prática e nos sonhos dos que o procuravam pela busca da felicidade. A partir desse limiar, a maior felicidade foi e con­tinua sendo associada à satisfação de desafiar códigos e superar obstáculos, e não às recompensas a serem encontradas no ponto extremo do desafio contínuo e do esforço prolongado.

O advento da busca da felicidade como principal motor do pensamento e ação humanos prenuncia para alguns, embora também ameace para outros, uma verdadeira revolução cultu­ral, mas também social e econômica. Culturalmente, (…), sinaliza ou acompanha a passagem da rotina perpétua à inovação constante, da reprodução e retenção daquilo "que sempre foi" ou "que sempre se teve" para a criação e/ou apro­priação daquilo "que nunca foi" ou "nunca se teve"; de "empur­rar" para "puxar", da necessidade para o desejo, da causa para o propósito.

Socialmente, coincide com a passagem da regra da tradição para a "fusão dos sólidos e a profanação do sagrado".

Economicamente, desencadeia a mudança da satisfação de ne­cessidades para a produção dos desejos.

Sobre o impacto psicológico da "busca da felicidade" pro­movida simultaneamente ao status de direito, dever e propósito maior da vida, (…).

(…) as boas coisas são imortais, deveria ter dito que as coisas imortais -precisamente por serem imortais e resistentes ao impacto corro­sivo do tempo - é que deveriam ser vistas como o bem supremo.

A inexistência, a degradante e humilhante insignificância da presença corporal do indivíduo no mundo, em comparação com a eternidade imperturbável desse mesmo mundo, tem assombrado os filósofos (e não-filósofos, durante seus curtos acessos de queda e permanência num estado de âni­mo filosófico) por mais de dois milênios. Na Idade Média, foi elevada à categoria de principal objetivo e preocupação suprema dos mortais, e empregada para promover os valores espirituais acima dos prazeres da carne - assim como para explicar (…) a dor e a miséria da breve existência terrena como o prelúdio necessário e, portanto, bem-vindo do interminável êxtase do pós-vida. Com o advento da era moderna, retornou com nova roupagem: a da futilidade dos interesses e preocupações individuais, que se provou serem de duração abominavelmente curta, além de efêmeros e inconstan­tes quando justapostos aos interesses do "todo social" - a nação, o Estado, a causa...

(…) Émile Durkheim, (…) se esforçou para inserir e es­tabelecer a "sociedade" no lugar antes ocupado por Deus e pela Natureza, vista como Sua criação ou personificação - e assim reivindicar para o nascente Estado-nação o direito de articular, pronunciar e aplicar os mandamentos morais e exigir de seus súditos a lealdade suprema; o direito antes reservado ao Se­nhor do Universo e Seus consagrados lugares-tenentes terrenos.

A cura de Sêneca, por outro lado, dizia respeito principal­mente à auto-suficiência e ao autocontrole. Era também profun­da e decididamente individualista. Não se baseava na onisciência divina nem na suprema razão e onipotência da sociedade. Dirigia-se, em vez disso, às "mentes nobres", ao bom senso, à boa vontade e à determinação dos seres humanos como indivíduos, assim como aos poderes e recursos que eles controlavam individualmente.

Em sua curta jornada sobre a terra, o homem, diz Sê­neca, é igual a Deus em sua eternidade. Em um de seus aspectos, o homem chega a ser superior a Deus: Ele tem a Natureza para defendê-Lo do medo - mas qualquer que seja a defesa do medo que o homem possa conseguir, ele precisa, deve, obtê-la por sua própria sabedoria.

Todas as coisas do corpo escorrem como um rio, todas as coisas da mente são sonhos e ilusões... O que então pode nos acompanhar em nosso caminho? Uma coisa, só uma coisa: a filosofia.

A mente livre de paixões é uma fortaleza: não há lugar mais forte para as pessoas se recolherem."

A recei­ta da felicidade oferecida por Marco Aurélio é auto-suficiente, auto-referencial e acima de tudo autolimitadora.

(…). O segredo de uma vida feliz é manter as paixões estritamente atadas, dando rédeas livres a sua mente.

(…), Blaise Pascal (…).

Não é no espaço que devo procurar minha dignidade humana, mas na organização do meu pensamento. Não me fará bem possuir terras. Pelo espaço o Universo me agarra e me engole como uma partícula; pelo pensamento sou eu que o agarro.

"A causa única da infelicidade do homem", concluiu Pascal em uma de suas fra­ses mais memoráveis, "é que ele não sabe como ficar quieto em seu quarto." Correr de um lugar para outro é só uma forma de desligarem suas mentes de si mesmos". Como há pouca chan­ce para o pensamento quando você está correndo, continue cor­rendo - e a tarefa intensamente árdua de olhar a si mesmo mais de perto pode ser mantida à distância: (…).

Pascal (…)as pessoas evitam olhar para dentro e se mantêm correndo na vã esperança de fugir de um encontro face a face com seu destino, o que significa enfrentar com determi­nação sua absoluta insignificância sempre que relembram a infi-nitude do universo.

(…) Pascal, (…), não nos apresenta a escolha entre uma vida feliz ou infeliz, mas entre dois tipos de infelicidade: quer optemos por correr ou ficar parados, estamos destinados a ser infelizes.

(…) Ordo Amoris, Max Scheler (…).

O homem, diz Scheler (…) ser um ens cogitans ou um ens volens (um ser que sabe ou que deseja), é um ens amans (um ser que ama).

O coração, diz Scheler com uma sauda­ção a Pascal, "tem suas próprias razões", das quais, contudo, a compreensão da Razão "nada sabe e jamais poderá saber"25 - já que as razões do coração não são as "determinações objetivas" e necessidades genuínas" proclamadas pela Razão como seu terreno familiar, e também seu domínio exclusivo e estritamente vigiado, mas "pretensas" razões, ou seja, motivos e vontades.

Conscientemente ou não, você, eu e todos nós moldamos nos­sos destinos sozinhos, em grupo ou todos juntos, e só quando ficamos sem os recursos e/ou a determinação para prosseguir na tarefa de modelagem e remodelagem é que ele se transforma em "sorte".

(…) Erich Fromm, "amor é basicamente dar, não receber".

(…) "amar" significa estar pronto a abandonar a preocu­pação consigo mesmo em favor de seu objeto, transformar sua própria felicidade num reflexo, um efeito colateral da felicidade desse objeto - na mesma linha (…), oferecer "reféns à sorte".

É por isso que hoje o amor tende a ser simultaneamente desejado e temido. Também é por isso que a idéia de compro­misso (com outra pessoa, um grupo de pessoas, uma causa), e particularmente compromisso incondicional e indeterminado, perdeu espaço no gosto popular.

"No mundo pós-romântico", como assinalam Ehrenreich e English, (…).

O mercado, que há muito tempo se expandiu para incluir as relações de produção, agora se expandiu para abarcar todos os relacionamentos.

"A cultura do sacrifício está morta", declarou bruscamente Gilles Lipovetsky no posfácio de 1993 a seu estudo pioneiro, de dez anos antes, sobre o individualismo contemporâneo. "Deixa­mos de nos reconhecer na obrigação de viver em nome de qual­quer coisa que não nós mesmos."

Quando se trata de agir "em nome de outra coisa que não de si mesmos", as paixões, o bem-estar e a saúde física do Ego tendem a ser tanto as conside­rações preliminares quanto as derradeiras. Também tendem a estabelecer os limites do caminho que estamos preparados para percorrer em nossa disposição de ajudar.

(…), longe de estarmos prontos a renunciar a um es­tilo de vida caracterizado pela tolerância consumista, freqüen­temente relutaremos em aceitar o menor inconveniente pessoal. A força-motriz de nossa indignação tende a ser o desejo de um consumo superior, mais protegido e mais seguro.

Parece que não sentimos mais que temos uma tarefa ou missão a desempenhar no planeta, e apa­rentemente não há nenhum legado que nos sintamos obrigados a preservar, por termos sido nomeados seus guardiães.

A preocupação com a forma como o mundo é administrado deu lugar à preocupação com a auro-administração. Não é a si­tuação do mundo, juntamente com seus habitantes, que tende a nos incomodar e a nos deixar preocupados, mas sim aquilo que é de fato um produto final da reciclagem de seus ultrajes, futi-lidades e injustiças em desconfortos espirituais e inconstâncias emocionais que prejudicam o equilíbrio psicológico e a paz de espírito do indivíduo interessado.

A vida pessoal tornou-se parecida com a guerra e tão cheia de estresse quanto o próprio mercado. O coquetel "reduz a sociabilidade ao combate social".

Notoriamente, o futuro foge à descrição e desafia a previ­são. Mas o passado também não fornece o tipo de orientação que com muita freqüência - erroneamente, ilusoriamente - se acredita que ofereça. O "legado" do passado é apenas matéria-Pnma destinada às unidades de reciclagem do futuro.

(…) Orwell, "quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente controla o passado", continua atual e ex­tremamente plausível muito tempo depois de sua inspiração original - as ambições e práticas do "Ministério da Verdade" totalitário - ter afundado no passado (…).

Com a atual limitação de ambos os lados - do passado, a que agora se nega a autoridade de um guia credenciado, e de um futuro que já ignora as ordens e imolações do presente e os ameaça com uma negligência parecida com aquela com que o presente trata seu passado, o mundo parece permanecer perpetuamente in statu nascendi - em "estado de devir".

Poderíamos dizer, com Heidegger, que a mãe do conheci­mento e ao mesmo tempo o estímulo da ação é o desapontamento.

(…), a familiaridade do ambiente não tornava as pessoas necessariamente felizes, mas estabelecia o padrão do que era normal ou "natural", e portanto "inquestionável" e "inevi­tável".

Permanência e uniformi­dade eram os princípios orientadores desse mundo. Qualquer mudança era suficientemente gradual e lenta para ser imper­ceptível: colocadas entre coisas permanentes, as pessoas tinham tempo abundante para "ajustar-se", "acomodar-se" e - lenta­mente, e por isso de modo imperceptível - adotar novos hábitos, rotinas e expectativas.

No interior de sociedades rijamente estratificadas e marca­das por uma polarização aguda no acesso a valores materiais e simbólicos (prestígio, respeito, garantia contra a humilhação), são as pessoas situadas "no meio", no espaço que se estende en­tre o topo e a base, que tendem a ser mais sensíveis às ameaças de infelicidade.

Ao esboçarem os contornos de uma sociedade que desconhecia a infelicidade, os projetos utópicos que pro­liferaram na aurora da idade moderna refletiam, reciclavam e registravam sonhos e anseios predominantemente de classe mé­dia. A sociedade que retratavam era, como regra, purificada das incertezas - e acima de tudo das ambigüidades e inseguranças da posição social, dos direitos que ela garantia e dos deveres que exigia. Não importa o quanto esses projetos pudessem diferir, eram unânimes em escolher a permanência, a solidez e a ausên­cia de mudança como premissas essenciais da felicidade huma­na.

Mais que qualquer outra coisa, os projetos utópicos visua­lizavam o fim da incerteza e da insegurança: a saber, um am­biente social totalmente previsível, livre de surpresas e que não exigia novas reformas e remodelagens.

(…) a tensão perpétua entre dois valores, segurança e liberdade, igual­mente cobiçados e indispensáveis a uma vida feliz - mas, que pena, assustadoramente difíceis de conciliar e usufruir conjun­tamente.

Essa circunstância pode explicar em parte por que a for­ma como os desafios e preocupações originalmente específicos das classes médias se espalharam para a maioria da sociedade tem sido registrada, corretamente, embora não necessariamente pelas razões corretas, como "aburguesamento".

(…), Jean-Claude Michéa relaciona as origens do "projeto moderno" ao "medo da morte violenta, de vizinhos suspeitos, do fanatismo ideoló­gico" e ao desejo de "uma vida finalmente tranqüila e pacífica”.

O horror de guerras incessantes que colocavam irmão contra irmão e vizinho contra vizinho e os privava de qualquer vestígio de lealdade, piedade e compaixão mútuas inspirou Blaise Pascal a chamar a guerra de "maior dos males" e Hobbes a escolher a "guerra de todos contra todos" como a característica mais proeminente do estado natural da humanidade.

(…) Immanuel Kant resumiria a questão em sua fórmula do "imperativo ca­tegórico": a razão lhes dirá que para servir a seus interesses de forma adequada devem fazer aos outros o que desejam que os outros lhes façam, e evitar fazer o que detestariam que lhes fizessem.

Para o dilema complexo, cheio de contradições, conhecido pelo nome de condição humana, não parece haver soluções simples, diretas, monotemáticas.

(…) o mundo gerado pelo "projeto mo­derno" se comporta, na prática se não na teoria, como se os ho­mens tivessem de ser coagidos a buscar a felicidade (pelo menos a felicidade vislumbrada por seus consultores autonomeados e conselheiros contratados, assim como pelos redatores de publi­cidade)...

Nossas vidas foram dispostas como uma série inconclusa de experi­mentos dos quais se espera que comprovem ou desautorizem definitivamente a validade da proposição.
                                              
2. NÓS, OS ARTISTAS DA VIDA

P.72           A vida não pode deixar de ser uma obra de arte se é uma vida humana - a vida de um ser dotado de vontade e liberdade de escolha. Vontade e escolha deixam suas marcas na forma da vida, a despeito de toda e qualquer tentativa de negar sua presença e/ou ocultar seu poder atribuindo o papel causai à pressão esmagadora de forças externas que impõem um "eu devo" onde deveria estar "eu quero", e assim reduzem a es­cala das escolhas plausíveis.

P.72           A vida humana consiste num confronto perpétuo entre as "condições externas" (percebidas como "realidade", por definição um assunto sem­pre resistente, e muitas vezes desafiador, à vontade do agente) e designa seus autores/atores: seu propósito de superar a resis­tência, o desafio e/ou inércia, ativos ou passivos, da matéria e reconstruir a realidade de acordo com a visão da "boa vida" que escolheram.

P.73           (…), a vida se passa na companhia da incerteza. Cada decisão tende a permane­cer arbitrária; ninguém estará livre de riscos e seguro contra o fracasso e desapontamentos posteriores.

P.74           (…) nossa escolha da estrela-guia foi, no final das contas, nossa escolha, cheia de riscos como todas as escolhas foram e tendem a ser - e nossa escolha, feita por responsabilidade nossa, ela continuará sendo até o fim...

P.74           (…), Foucault indaga: se uma lâmpada ou uma casa pode ser uma obra de arte, por que não uma vida hu­mana?

P.76           (…) "querem que cada momento seja prazeroso". De fato: cada momento. Um momento desprazeroso é um momento perdido. Já que é impossível calcular que tipo de lucros futuros um sacrifício no presente pode acarretar, se é que acarretará algum lucro no futuro, por que se deveria re­nunciar aos prazeres instantâneos que se pode extrair do "aqui e agora"?

P.76           Hoje se presume que o curso da vida e o significado de cada um de seus sucessivos episódios, assim como seu "propósito geral" ou "destino último", sejam empregos do tipo faça-você-mesmo, ainda que isso consista ape­nas em selecionar e reunir o tipo certo de jogo de mobília para montar ao estilo Ikea.

P.76           (…): nos dias de hoje, cada homem e cada mulher é um artista nem tanto por escolha quanto, por assim dizer, por um decreto do destino universal.

P.77           Tal como os que não vêem ra­zão para postergar a satisfação e decidem "viver o momento", as pessoas preocupadas com o futuro e que estão em guarda contra as possibilidades negativas que ainda têm pela frente estão con­vencidas da volatilidade das promessas da vida. Todos eles pare­cem apaziguados com a impossibilidade de decisões infalíveis, de prever exatamente qual dos inumeráveis passos sucessivos se revelará (retrospectivamente!) como uma das escolhas corretas, ou qual das sementes aleatoriamente espalhadas vai trazer fru­tos saborosos e abundantes,

P.78           (…) insistência dos filósofos na necessidade de conquistar a natu­reza e submetê-la à administração humana: substituir a aleatoriedade cega da natureza por uma ordem guiada pela razão, meticulosamente planejada e monitorada, à prova de acidentes e acima de tudo administrável, e assim forçá-la, sob uma nova (humana) administração, a servir adequadamente aos interes­ses humanos.

P.78/79      A catástrofe da "Grande Guerra" solapou a confiança in­vestida por quase dois séculos na sabedoria e eficácia de uma ordem construída por seres humanos, baseada na ciência e na tecnologia, também colocando em dúvida a convicção de que essa ordem deveria chegar mais alto em termos do bem e da justiça que promovia do que a natureza jamais seria capaz de fazer.

P.79           O que a "Grande Guerra" havia mostrado (…) é que os resultados da administração humana são exatamente tão caprichosos, imprevisíveis, cegos, impensados e indiferentes às virtudes e vícios humanos quanto a natureza fora acusada de ser dois séculos antes. E ainda mais atrozes e devastadores.

P.79           O reino da Razão, o governo indiviso da lei e da ordem - tudo isso estava à espera na próxima esquina.

P.80           (…) o futuro da civilização estava garantido. Sob a administração humana, o mundo estava seguro e tendia a ficar ainda mais seguro.

P.82           A própria idéia de que, com conhecimento e tecnologia suficientes, é possível calcular o futuro e garantir as metas aperfeiçoando-se os meios, essa idéia é que foi enviada para o túmulo nos campos de matança do Somme, de Verdun e da Prússia Oriental - morta e enterrada em valas comuns juntamente com milhões de soldados, com a autoconfiança da Europa e a crença dos povos civilizados na vi­tória final da razão sobre as paixões, sua confiança na sabedoria e benevolência da história e sua convicção reconfortante e oti­mista de um presente seguro e de um futuro garantido.

P.84/85      (…), atualmente o ritmo da mudança é (pelo menos em nossa área cultural) desconcertante. As mudanças são contínuas e ubíquas, e condensações delas suficientemente densas para justificar que se trace uma nova fronteira geracional parecem eventos quase cotidianos, rotineiros, ou, pelo contrário, menos numerosos e mais espaçados entre si do que nunca (se preferirmos comparar seu impacto com o do choque da Primei­ra Guerra Mundial). Mudanças visíveis são numerosas e com­pactas, cada vez mais percebidas e sentidas como traços perma­nentes da condição humana, como eventos comuns e não extra­ordinários, norma e não anormalidade, regra em vez de exceção - enquanto a descontinuidade da experiência é quase universal e afeta igualmente todas as faixas etárias.

P.85           O ritmo da mudança talvez tenda a ser acelerado demais, e a velocidade com que novos fenômenos emergem na consciên­cia pública e desaparecem das vistas é demasiadamente grande. Isso impede que a experiência se cristalize, estabelecendo-se e solidificando-se em atitudes e padrões comportamentais, síndromes de valores e visões de mundo, próprios para serem regis­trados como traços permanentes do "espírito da época" e reclassificados como características singulares e duradouras de uma geração.

P.85           Numa multiplicidade de descontinuidades dispersas e aparentemente desconexas, são poucas e espaçadas as mudanças capazes de adquirir a visibilidade e o poder formativo de uma "sublevação". Poucas se sustentam o bastante para sugerir uma rup­tura geracional e fornecer matéria-prima para a autoconstituição geracional e a auto-afirmação efetiva.

P.87           A idéia de "sublevação" se tornou trivializada hoje em dia. Em cada exemplar de uma revista sofisticada, há algo não sobre uma coisa, mas sobre um punhado delas que on­tem eram desconhecidas mas que estão fadadas a ser "revolucio­nárias" - a "mudar a vida" de alguns indivíduos sob as luzes da ribalta e, por extensão, a vida de todos que os contemplam.

P.87           (…), o mundo líquido-moderno está num estado de revolução permanente, um estado que não admite as revoluções de uma só vez, os "eventos singulares" que constituem lembranças dos tempos da modernidade "sólida”.

P.87           Privada de seus imaculados referentes, a idéia de "revolução" foi banalizada: os redatores de comerciais usam e abusam dela, apresentando qualquer produto "novo e aperfeiçoado" como "revolucionário"...

P.88           As experiências es­senciais para um grupo têm poucos ou nenhum referente nas experiências de outro, enquanto temas de importância-chave para um deles simplesmente "não se aplicam" ao outro.

P.88           (…) valer em nossa era moderna, (…) se assumiu que o mundo (…) podia ser diferente do que era e que estava ao alcance dos seres humanos torná-lo diferente, e desde que o mundo começou a mudar com rapidez o suficiente para que o "não é como cos­tumava ser" fosse observado no curso de uma única vida - e conseqüentemente para que se visualizasse uma lacuna entre "o que é" e "o que deveria ser", e para que conceitos como "os bons tempos" em oposição a "um futuro melhor" fossem cunhados e se estabelecessem tanto nas meditações filosóficas quanto nas percepções populares da vida.

P.89           (…) Jean-Paul Sartre (…) escolha do projet de la vie. A escolha do projeto de vida signi­ficava a "escolha das escolhas", a meta-escolha que determinaria de uma vez por todas, do princípio ao fim, todas as outras (su­bordinadas, derivadas, contingentes).

P.91           (…) a habilidade que realmente precisamos adquirir é, primeiro e acima de tudo, a flexibilidade (…) - a capacidade de esquecer e descartar prontamente antigos ativos transformados em passivos, assim como a capacidade de mudar cursos e trilhas imediatamente e sem remorso; e que aquilo que precisamos lembrar eternamente é a necessidade de evitar um juramento de lealdade por toda a vida a o que ou a quem quer que seja.

P.91           Parece que hoje, embora ainda se possa sonhar em descre­ver antecipadamente um cenário para toda a vida, e mesmo tra­balhar arduamente para transformar esse sonho em realidade, apegar-se a qualquer cenário, mesmo ao do seu próprio sonho, é assunto arriscado e pode mostrar-se suicida.

P.93           (…) os gregos "não conseguiam conciliar a idéia de criação sob os auspícios da inspiração divina com a recompensa monetária pelo trabalho criado".' Na Antigüidade, "ser artista" se associava a renúncia e pobreza, a "estar morto para o mundo", e não a alguma espécie de sucesso mundano, muito menos pecuniário).

P.94           Com a multiplicação do número de "novos-ricos", as his­tórias inspiradas pelo "encontro com o Destino" também se democratizaram. Elas agora animam as expectativas de vida de todos e quaisquer artistas da vida, praticantes mundanos da mundana arte da vida mundana; e isso significa todos nós, ou quase todos. Afinal de contas, hoje se decretou que todos nós temos uma chance de "encontrar o Destino", de ter um golpe ou rodada de sorte que nos levará ao sucesso e a uma vida de felici­dade.

P.95           As histórias dos mestres das belas-artes (…) têm a vantagem de cair num terreno bem preparado pela secu­lar tradição de contar histórias. Elas se ajustam particularmente bem ao espírito de nossa era líquido-moderna porque, diferen­temente das histórias do início da era moderna (…), elas mantêm silêncio sobre os temas desconfortáveis, espinhosos e mesmo angustiantes da paciência, do trabalho duro e do auto-sacrifício antes considerados necessários para o sucesso na vida. (…); num mundo líquido-moderno, afinal de contas, nenhuma atividade válida mantém a validade por muito tempo.

P.95/96      Uma das muitas virtudes da internet (…) é que ela põe fim à desconfortável necessidade de tomar partido nas antigas disputas, agora ofensivas e fora de moda, entre trabalho e lazer, esforço e descanso, ação intencional e inatividade, ou mesmo aplicação e indolência.

P.97           Não há muito sentido na arte da vida a menos que exista a esperança, ainda que incerta, de que os objets d'art que ela produz serão admirados - nas ruas e praças públicas ou na intimidade do boudoir ou sala de computador de alguém...

P.97/98      Não muito tempo atrás, e certamente no período áureo da vanguarda, as artes lutaram para provar seu direito de sobreviver tentando documentar sua utilidade para o mundo e seus habitan­tes. Precisavam deixar atrás de si marcas sólidas e permanentes de suas realizações, provas consistentes dos valiosos serviços que prestam - marcas tangíveis e possivelmente indeléveis, provas indestrutíveis, com a promessa de durarem para sempre; agora, porém, não apenas vão muito bem sem marcas sólidas de sua presença, mas, com muita freqüência, parecem preocupadas em não ultrapassar o prazo de permanência e assim evitar todas as marcas que sejam profundas demais para uma obliteração pronta e rápida. As artes de hoje parecem especializadas princi­palmente na montagem rápida e no desmantelamento imediato de suas criações.

P.98           (…), Rauschenberg, pela qual se esperava que os colecionadores pagassem, eram as marcas do apagamento. Rauschenberg promoveu a destruição à categoria de criação artística. Foi o ato de aniquilar as marcas deixadas no mundo, e não de imprimi-las, que seu gesto pretendeu representar como o valoroso serviço que as artes oferecem a seus contemporâne­os.

P.98           Isso também acontece naquele outro nível - o das artes da vida - em que as ferramentas existenciais de que se precisa com mais urgência são experimentadas e os desafios mais graves da condição existencial humana são localizados, confrontados e administrados.

P.99           Praticar a arte da vida, fazer de sua existência uma "obra de arte", significa, em nosso mundo líquido-moderno, viver num estado de transformação permanente, auto-redefinir-se perpetuamente tornando-se (ou pelo menos tentando se tornar) uma pessoa dife­rente daquela que se tem sido até então. "Tornar-se outra pessoa" significa, contudo, deixar de ser quem se foi até agora, romper e remover a forma que se tinha, tal como uma cobra se livra de sua pele ou uma ostra de sua concha; rejeitar, uma a uma, as personas usadas - que o fluxo constante de "novas e melhores" opor­tunidades disponíveis revela serem gastas, demasiado estreitas ou apenas não tão satisfatórias quanto foram no passado.

P.100         Ocupados com a "autodefinição" e a "auto-afirmação", nós praticamos a destruição criativa. Diariamente.

P.101         O projet de la vie da Sartre era o equivalente secular do caminho da salvação, da vida como uma peregrinação à encru­zilhada entre a graça e a maldição eternas - exceto que, em sua versão secular, a graça, a redenção e a salvação não tinham uti­lidade para uma vida no além-túmulo; (…). Mas as duas versões, o equivalente secular e seu original religioso, apresen­tavam a vida como a peregrinação para um destino designado definitivamente - e ambas presumiam que, uma vez escolhido o destino, seria possível obter e absorver instruções exatas sobre como atingi-lo.

P.102         Num mundo como o nosso - em que qualquer alvo consi­derado digno de ser perseguido aparece diante das vistas apenas por um breve instante, muitas vezes em lugares que até então não eram vistos como promissores ou dignos de visitar, ou (pior ainda) em lugares em que caminhos percorridos com sucesso no passado, e assim considerados suficientemente testados, po­dem agora conduzir a um desvio -, num mundo assim, planejar fugas de longo prazo tende a ser um negócio arriscado.

P.102/103 Um mundo repleto de armadilhas e em­boscadas favorece e recompensa os atalhos, projetos que podem ser concluídos em curto prazo, alvos que podem ser alcançados imediatamente. Também encoraja uma atitude do tipo "desfru­te agora e pague depois", enquanto desestimula as reflexões e preocupações tipo "qual o custo disso tudo?".

P.103         Em nossa sociedade de consumidores, o impulso de replicar o estilo de vida atualmente recomendado pelas últimas ofertas do mercado e louvado por seus porta-vozes, pagos ou volun­tários - e também, por conseqüência, a compulsão de revisar perpetuamente a identidade e a persona pública -, deixou de ser associado à coerção (uma coerção externa, e por isso particular­mente ofensiva e irritante). Tende a ser percebido, ao contrário, como manifestações da liberdade pessoal (…).

P.104         Os sinais da estrada que marcam as trajetórias de vida apare­cem e desaparecem quase sem aviso. Os mapas do território que deverá ser atravessado em algum ponto do futuro devem ser atu­alizados quase que diariamente - e o são, embora irregularmente e sem alarde.

P.105         (…), a não-participação no estilo de vida dominante na sociedade líquido-moderna de consumido­res tenda a ser explicada ou por um ressentimento, ideologi­camente inspirado, em relação à liberdade, ou pela inépcia em usar seus dons e suas bênçãos.

P.105         A volatilidade, vulnerabilidade e fragilidade de toda e qual­quer identidade coloca sobre os ombros daquele que busca uma identidade o dever de desincumbir-se diariamente das tarefas da identificação. O

P.105         Se "ser livre" significa ser capaz de agir de acordo com os próprios desejos e perseguir os objetivos que se escolheu, a versão líquido-moderna, consumista, da arte da vida pode pro­meter liberdade para todos, mas a distribui de modo esparso e seletivo.

P.106         Sócrates evitou confessar as razões pelas quais se tornou o que era. Como diz Nehamas, ele era "teimosamente calado sobre si mesmo".

P.107         O significado de viver sua vida "de manei­ra socrática" era a autodefinição, a auto-afirmação e a presteza em aceitar que a vida não pode ser senão uma obra de arte por cujos méritos e deficiências o ator/autor (misturados numa mes­ma pessoa; o projetista e simultaneamente executor do projeto) tem plena e total responsabilidade.

P.107         "Imitar Sócrates" significava, em outras palavras, recusar firmemente a imitação - a imitação da pessoa "Sócrates" ou de qualquer outra pessoa, ainda que valorosa.

P.107         Tal como pintores ou escultores, nós - praticantes, por ação ou omissão, da arte da vida - não nos decidiremos por qualquer criação artística (qualquer modelo de vida). Tendemos todos, ou pelo menos a maioria, a buscar algo especial - singular e soberbo, na verdade, um "absoluto": um "último" modelo, um modelo melhor que todos, um modelo perfeito, tão bom que não pode ser aperfeiçoado, já que nada "melhor" pode existir ou ser imaginado.

P.108         O valor e atração do Ab­soluto sonhado por aqueles que buscam uma identidade está, quer eles saibam ou não, no trabalho de autocriação.

P.109         (…), são precisa­mente os "absolutos individuais" (individualmente escolhidos e elevados à categoria de valor supremo sob a responsabilidade individual de quem fez a escolha) que nos permitem, como in­sinua Todorov, separar uma vida adorável, alegre, que tem e dá sentido de uma vida que consiste numa coleção de bugigangas baratas e diversões passageiras.

P.109         Como Max Frisch, o grande romancista e não menos filóso­fo da vida, observou em seu diário, a arte de "ser você mesmo", reconhecidamente a mais exigente de todas, consiste em rejeitar e repelir resolutamente definições e "identidades" impostas ou insinuadas por outros; em resistir à corrente, fugindo das garras imobilizantes do impessoal das Man de Heidegger, nascido da multidão e poderoso em função dela, ou do Von de Sartre.

P.110         (…) os dilemas que tendem a lançar cada um dos praticantes indivi­duais da arte da vida num estado de incerteza profunda e incu­rável e de hesitação perpétua.

P.110         O produto da arte da vida é, supostamente, a "identidade" do artista.

P.110         Como insinua Claude Dubar, "a identidade nada mais é que o resultado - simultaneamente estável e provisório, individual e coletivo, subjetivo e objetivo, biográfico e estruturado - de diver­sos processos de socialização que ao mesmo tempo constróem os indivíduos e definem as instituições".

P.112         A autocriação é um imperativo, e de fato uma realização inevitável, mas a idéia de auto-afirmação parece mais uma sim­ples fábula da imaginação (e é amplamente condenada como um caso de autismo ou auto-ilusão).

P.112/113 Mas a afirmação capaz de realizar o trabalho de autocriação só pode ser oferecida por uma autoridade: uma comunidade em que é importante ser admitido porque ela tem o poder de recusar candidatos... Até os itinerários mais originais não podem ser mais do que listas de sucessivos portos de escala.

P.113         "A pertença", como insinua Jean-Claude Kaufmann, é hoje "usa­da basicamente como recurso do ego". Ele adverte sobre pen­sar em "coletividades de pertença" como se fossem necessaria­mente "comunidades integradoras". É melhor concebê-las como acompanhamentos necessários ao processo de individualização; como uma série de estações, podemos dizer, ou pousadas ao longo da estrada, marcando a trajetória do ego em processo de autoformação e auto-reforma.

P.113         (…) uma "comu­nidade integradora" é essencialmente uma força conservadora (que atua para conservar, estabilizar, impor rotinas e preservar). Está à vontade num ambiente administrado, supervisionado e policiado de forma rigorosa - dificilmente no mundo líquido-moderno, com seu culto à velocidade e à aceleração, à novidade e à mudança apenas (ou principalmente) pelo prazer de mudar.

P.113/114 O que hoje se toma equivocadamente como sendo uma versão atualizada do big brother de Orwell ou do panóptico de Jeremy Bentham é, na verdade, o contrário exato dos supostos originais: um dispositivo empregado a serviço de excluir e "manter a distância", não de "integrar", "conter" e "controlar". Ele mo­nitora o movimento dos estranhos para evitar que se tornem ou pretendam ser pessoas de dentro - de modo a que estas possam sentir-se confortáveis lá dentro, o que significa poder seguir as normas internas com menos vigilância e sem aplicação de força.

P.115         Em sua versão contemporânea líquido-moderna, a "pertença" a uma entidade pode ser associada e compartilhada com a pertença a outras entidades em quase qualquer tipo de combinação, sem necessariamente resultar em condenação e provocar medidas re­pressivas de nenhuma delas.

P.115         Dificilmente al­gum tipo de "pertença" dos dias de hoje envolve "o eu total", já que cada pessoa a cada momento de sua vida está envolta, por as­sim dizer, em "múltiplas pertenças". Ser apenas parcialmente leal, ou, digamos, leal la carte", não é mais visto necessariamente como equivalente à deslealdade, muito menos à traição.

P.115         Nas escalas emergentes da su­perioridade cultural e do prestígio social, os "híbridos" (quer sejam "genuínos" ou autoproclamados) tendem a ocupar as po­sições mais elevadas, e a manifestação do "hibridismo" se torna uma ferramenta de mobilidade social ascendente amplamente aprovada.

P.116         Para a arte da vida, esse novo ambiente revela paisagens sem precedentes. A liberdade de autocriação jamais alcançou uma amplitude tão surpreendente, ao mesmo tempo excitante e as­sustadora. Nunca antes a necessidade de pontos de orientação e guias prestativos foi tão intensa ou dolorosamente sentida. Mas nunca antes houve tanta falta de pontos de orientação fidedig­nos e de guias confiáveis (…).

P.116         (…) há uma perturbadora carência de pontos de orientação firmes e fidedignos, assim como de guias confiáveis. Essa carência coincide (…) com uma proliferação inédita de sugestões tentadoras e ofertas de orientação atraentes, com uma onda sempre crescente de manuais e hordas cada vez mais amplas de consultores - tor­nando, contudo, ainda mais confusa a tarefa de atravessar a mata densa de proposições equivocadas ou simplesmente falsas para encontrar uma orientação capaz de realizar sua promessa...

P.117         Uma realidade social não pode ser reduzida a um agregado de indivíduos em busca de objetivos privados e guiados por desejos e normas igualmente privados. As repetidas declarações públicas do presidente fran­cês sugerem, ao contrário, exatamente essa redução.

P.117         Não parece que as previsões de "fim da ideologia", numero­sas e amplamente aceitas até cerca de vinte anos atrás, tenham se concretizado ou estejam perto disso. O que estamos testemu­nhando é, em vez disso, o curioso desvio que ocorre atualmente com a idéia de "ideologia". Em desafio a uma longa tradição, a ideologia hoje defendida a partir de cima para uso popular é a crença de que pensar sobre uma "totalidade" e compor visões de uma "boa sociedade" são perda de tempo, já que irrelevantes para a felicidade individual e uma vida exitosa.

P.117/118 Ela é, em vez disso, uma ideologia da privatização. O apelo a "trabalhar mais e ganhar mais", dirigido a indivíduos e adequado unicamente ao uso individual, está repelindo e substituindo os apelos do passado a "pensar a sociedade" e "cuidar da sociedade" (de uma comunidade, nação, igreja, cau­sa).

P.118         Essa é também uma ideologia feita sob medida para a nova sociedade de consumidores. Representa o mundo como um depó­sito de potenciais objetos de consumo, a vida individual como uma eterna busca por barganhas, seu propósito como a satisfação máxima do consumidor e o sucesso na vida como um acréscimo ao valor de mercado do próprio indivíduo.

P.119         A exclusão faz parte da natureza das coisas, um aspecto inseparável de nosso estar-no-mundo, uma "lei da natureza", por assim dizer - e portanto não faz sentido rebelar-se contra ela.

P.119/120 Uma vez classificados como indivíduos, somos encorajados a buscar ativamente o "reconhecimento social" pelo que havia sido pré-interpretado como nossas escolhas individuais: ou seja, pelas formas de vida que nós, os indivíduos, estamos praticando (seja por ação ou omissão).

P.120         A alternativa ao reconhecimento social é a negação da dig­nidade: a humilhação. Na recente definição de Dennis Smith, "o ato é humilhante se ignora ou contradiz vigorosamente a afir­mação de determinados indivíduos ... a respeito de quem são e onde e como se encaixam"; em outras palavras, nega-se aos indivíduos, explícita ou implicitamente, o reconhecimento que esperavam pela pessoa que são e/ou o tipo de vida que levam;

P.120         A negação do reconhecimento, a recusa do respeito e a ameaça de exclusão têm substituído a ex­ploração e a discriminação como as fórmulas mais comumente usadas para explicar e justificar os rancores que indivíduos po­dem sentir em relação à sociedade, ou a partes ou aspectos da sociedade aos quais eles estejam diretamente expostos (pessoal­mente ou pela mídia) e que vivenciem em primeira mão.

P.120/121 (…) na individualizada sociedade de consumidores as definições e explicações mais co­muns e "mais reveladoras" da dor e indignação resultantes se afastaram atualmente, ou estão se afastando, das características relacionadas ao grupo ou categoria para caminhar na direção de referentes pessoais.

P.120         (…), o sofrimento individual tende a ser cada vez mais percebido como resultado de uma ofensa pessoal e de um ataque à dignidade e à auto-estima pessoais, exigindo uma resposta ou vingança pessoais.

                                                        3. A ESCOLHA

P.124         Os filósofos da ética fizeram o possível para estabelecer uma ponte entre as duas margens do rio da vida: o auto-interesse e a preocupação com outros.

P.127         Em face das decisões humanas entre o bem e o mal, descobriu-se que a sabedoria sociológica nada tem a dizer...

P.127/128 Uma vez na vida, os sociólogos - autoproclamados mestres de métodos de pesquisa à prova de erros, ou quase - são obri­gados a se curvar diante da opinião de um mestre da perspicá­cia, visão e empatia amplamente aclamado. Obrigados mesmo, (…) já que, quando se trata de sujeitos morais e julgamento ético, inventários de fatores determinantes e estatísticas de sua distribuição se mostram de pouca utilidade.

P.131         Francis Fukuyama (…) sugeriu recentemente que os sonhos totalitários inspirados pelo Iluminismo, e que persistem desde então, de produzir "no­vos seres humanos" feitos sob medida para explorar o poten­cial genuíno da espécie (…) não eram mal concebidos nem irreais; esses sonhos, insiste Fukuyama, fracassaram sim­plesmente porque foram sonhados antes da época, sob condi­ções ainda não adequadas para sua concretização.

P.131         O que não está em dúvida, porém, é a conexão entre os novos feitos da tecnociência e o advento de uma era de novos medos e novas distopias. Os medos e as distopias certamente alcançaram o nível das novas perspectivas tor­nadas viáveis pela nova tecnociência.

P.131/132 Tanto as utopias quanto as distopias são especializadas em vis­lumbrar o destino predeterminado dos desenvolvimentos cor­rentes: as utopias apresentam a terra no fim da estrada como um local de harmonia e ordem, um destino a ser ansiosamente aguardado e, se possível, aproximado, enquanto as distopias retratam a terra como, na melhor das hipóteses, uma prisão ao ar livre, algo a ser temido, mantido à maior distância possível e, idealmente, transformado em algo eternamente fora dos li­mites.

P.132         Independentemente da extensão do inventário cientificamente composto dos determinantes e da profusão de ferramentas técnicas disponíveis para manejá-los, os seres humanos permanecem teimosamente viciados em esco­lhas que destroem as normas e rotinas existentes, e portanto são notórias pelo hábito de desafiar previsões, pela aleatoriedade e irregularidade de sua conduta, pela inconstância, extravagância e frivolidade, e simplesmente por aquilo que qualquer gerente digno de seu salário descreveria, ultrajado, como o pecado da inconfiabilidade.

P.136         En­tre a aceitação resignada e a decisão corajosa de desafiar a força das circunstâncias coloca-se o caráter. É o caráter do ator que submete as escolhas triunfalmente aprovadas no teste da proba­bilidade a outro teste, muito mais exigente, o da aceitabilidade.

P.136/137 Na visão de Knud Logstrup, (…), a esperança da moral (…) é revestida de uma espontaneidade pré-reflexiva. "A misericórdia é espontânea porque a menor interrupção, a menor diluição dela para servir a algo mais a destrói inteiramente, de fato a transforma no oposto do que ela é, a crueldade."

P.137         Toda amoralidade, na visão de Levinas, começou com a per­gunta de Caim "Serei eu o zelador de meu irmão?", (…).

P.137         Os dois filósofos parecem aceitar que a necessidade de mo­ral, ou simplesmente o fato de ela ser recomendável, não pode nem precisa ser discursivamente estabelecida, muito menos provada. E que, além disso, a própria expressão "necessidade de moral" deveria ser rejeitada como um paradoxo - já que tudo que responde a uma "necessidade" é algo diferente da moral.

P.137         (…) um ato é moral na medida em que seja uma manifestação de humanidade impensada, natural, espontânea e principalmente irrefletida.

P.138         Uma ação moral não "serve" a "propósito" algum e certamente não é guiada pela expectativa de lucro, conforto, notoriedade, reforço do ego, aplauso público ou qualquer outro tipo de autopromoção.

P.138         Nas ações morais, qualquer "motivo inconfesso é descar­tado", insiste Logstrup. A expressão espontânea da vida é ra­dical graças precisamente à "ausência de motivos inconfessos" - incluindo, talvez acima de tudo, a ausência de motivos como ganho ou anulamento de punição. Essa é uma razão crucial pela qual a demanda ética, aquela pressão "objetiva" a ser moral que emana do próprio fato de estar vivo e compartilhar o planeta com outros seres vivos, é e deve permanecer silenciosa.

P.138         Conformidade não é moralidade, mesmo que em resposta a uma ordem de fazer determinado bem. Não existe um "deve" na moral - nada de ordens nem coerção; as ações morais são intrinsecamente esco­lhas livres, expressões da liberdade de ação do eu (seres humanos não-livres - se essa contradição em termos fosse plausível - não seriam "seres morais").

P.139         A demanda ética é silenciosa, não explica que forma a preo­cupação com os outros deveria assumir. Mas seu poder consiste precisamente em seu caráter reticente e silencioso, graças ao qual ela não chega a ponto de dar ordens, ameaçar com sanções e reduzir

P.139         Não somos compelidos a assumir uma postura ética por um poder superior. Em última instância, cabe a nós, e somente a nós, submeter-nos ao desafio da Face do Outro e resolver como dar conteúdo ao choque de nossa responsabilidade em relação a um Outro.

P.139         O "ser" da ética consiste unicamente em "perturbar a complacência do ser".

P.140         Sem se preparar para a possibilidade de escolhas erradas, não é provável que se persevere na busca pela escolha certa. Longe de ser uma grande ameaça à moral (…), a incerteza é o ambiente familiar da pessoa moral e o único solo em que a moralidade pode brotar e florescer.

P.140         Os conceitos de responsabilidade e escolha responsável, que antes habitavam o campo semântico do dever ético de preocu­par-se com as necessidades do Outro, agora se mudaram ou fo­ram transferidos para o reino da auto-realização e do cálculo dos riscos pessoais; foram colocados a serviço de preocupações centrípetas, auto-referenciais.

P.141         O resultado não é muito diferente dos efeitos "adiaforizantes" do estratagema praticado pela burocracia na fase "sólida" da era moderna. O estratagema consistia na substituição da "responsabilidade por" (…) pela "responsabilidade perante" (uma pessoa superior, uma autorida­de, uma "causa nobre" e seus porta-vozes originadores da ação).

P.141         A vítima colateral do salto para a versão consumista de liber­dade prevalecente na fase "líquida" da modernidade é o Outro como objeto maior da responsabilidade ética e da preocupação moral.

P.141         (…) armadilha: entre o impul­so de cuidar dos outros e o desejo de ser cuidado por outros ron­da o perigo assustador da dependência, de perder a capacidade de escolher (…).

P.142         As possibilidades de povoar o mundo com pessoas mais de­dicadas e/ou induzi-las a se dedicarem mais não figuram nas paisagens pintadas na utopia consumista. As utopias privatiza­das dos caubóis e cowgirls da era consumista ostentam em vez disso um "espaço livre" (para mim, é claro) amplamente expan­dido; um espaço vasto, mas também "cercado", vedado a visi­tantes indesejados e sem convite.

P.142         O espaço de que os consumidores líquido-modernos necessitam e pelo qual foram aconselhados, estimulados e encorajados a lutar só pode ser obtido e desfrutado expulsando-se ou rebaixando-se outros seres humanos, mas particularmente aqueles que se preocupam e/ou podem precisar de cuidados.

P.143         As pressões atuais não vão no sentido do auto-enclausuramento e do afastamento do mundo. Pelo contrário, a libertação do indivíduo em relação à estreita rede de lealdades e obriga­ções herdadas ou artificialmente compostas, embora sólidas, fez os indivíduos libertados se abrirem para o mundo lá fora como nunca havia ocorrido na história humana.

P.143         (…), o mundo é simultaneamente um local de aventura excitante e uma vastidão repleta de perigos sombrios e apavorantes (o perigo do fracasso, com a vergonha e humilhação que ele traz, ocupando plausivelmente um lugar de honra entre eles) - objeto ao mesmo tempo de curiosidade e desejo intensos, e fonte de terror e do impul­so de fugir.

P.145         (…) uma vida condenada a infindáveis escolhas, forçando o artista da vida a navegar entre valores incompatíveis e impulsos con­traditórios.

P.145         (…) no momento em que há um equilíbrio entre adiance e abiance (impulsão e repul­são, atração e aversão, a atração crescendo com a fome, a aversão aumentando com a proximidade do fio elétrico exposto), o de­sequilíbrio mental e a irracionalidade de comportamento são as reações mais prováveis.

P.146         Embora a ambivalência seja a com­panheira constante da condição existencial humana, as reações humanas provavelmente não assumiriam a forma de desordens relacionadas à alimentação não fosse pela atual preponderância do impulso "centrípeto" e a resultante tendência a identificar o souci de soi (cuidado de si) e 1'amour propre (auto-estima) com, básica e exclusivamente, o cuidado do corpo: mais precisamente, com o cuidado da boa forma corporal, ou seja, a capacidade do corpo de produzir e absorver os prazeres que podem ser ofereci­dos pelo mundo e pelos outros seres humanos que o povoam, e com a aparência do corpo, destinada a atrair potenciais doado­res de sensações prazerosas.

P.148         Tendo expandido as oportunidades e expectativas individuais de prazer, a nova abertura até agora não conseguiu prestar o mesmo serviço às responsabilidades dos indivíduos pelas possi­bilidades e perspectivas do mundo.

P.149         Todas as variedades de força centrífuga repercutem, em última instância, no "centro", seja por ação ou omissão. Cada varieda­de é desencadeada pelo desejo de felicidade e serve, por ação ou omissão, à felicidade daqueles por quem é empregada ou a quem orienta.

P.150         Em Ecce Homo, livro que se aproxima mais que todos os seus ou­tros escritos do modelo de uma "autobiografia argumentada" -uma confissão pública do significado e importância pretendidos do trabalho do autor (…).

P.150         O que Nietzsche sugeriu em 1888 - "Só o dia depois de amanhã me pertence. Algumas pesso­as nascem postumamente" - mostrou-se destinado a se tornar verdade.

P.151         Qual foi então a "maior verdade" que Nietzsche insistia ter descoberto? E por que ele previa que essa descoberta iria lançar a humanidade numa crise nunca antes enfrentada, muito me­nos ultrapassada? A descoberta de Nietzsche, em sua opinião, foi que a moral é uma farsa, um sinal de decadência, produto de uma conspiração dos fracos e indolentes, de forma covarde e inepta, contra tudo que é grande e nobre e sublime e poderoso e inspirado e digno de orgulho (…).

P.151         Ele virou de cabeça para baixo os axiomas em que se baseava a idéia de moralidade, de oposição entre o bem e o mal.

P.152         (…) no veredicto de Nietzsche de que a ética legada pelo cristianismo a seus contemporâneos (por cujo "mau hálito" ele se sentia "asfixiado") era "a revolta de todas as coisas que rastejam sobre seus ventres contra tudo que é gran­dioso". Essa ética cristã era a relíquia venenosa da revolta das "furtivas lagartas daninhas", um "bando de covardes, efeminados e aduladores"...

P.153         Foi contra essa verdade fundamental que a ética inventada pelo judaísmo, assumida e ampliada pelo cristianismo, constituiu uma rebelião - uma rebelião, podemos entender, daqueles "la­crados em palavras" e excluídos do universo da excelência. Nos estandartes da revolta estava bordado o reverso da verdade: (…).

P.154         (…) a sabedoria da ordem aristocrática está, na visão de Nietzsche, em dar a todos o que razoavelmente pode ser deles: a felicidade da exuberância para os fortes, a tranqüi­lidade da modéstia e a aceitação plácida do destino para os fra­cos. A piedade e a compaixão pelos fracos e infelizes são, nessa visão, tão cruéis quanto ineficazes: não tornarão o fraco mais forte, apenas infelizmente; as esperanças imprudentemente acordadas só acrescentarão o insulto da derrota à insjúria da inferioridade.

P.155         O egoísmo dos grandes e poderosos é "saudável e sagrado", já que sua própria grandeza e poder são um presente (…) para toda a humanidade. Infelizmente, diria Zaratus­tra, há também um outro egoísmo, o daqueles que só têm sua fraqueza e degradação para oferecer.

P.155         A mensagem de Zaratustra, porta-voz de Nietzsche, pode ser tudo, menos obscura ou ambígua. Há felicidade para todos, mas não a mesma felicidade para cada um. O "saudável e sagra­do" egoísmo dos grandes e poderosos, nobres e determinados, é a felicidade - enquanto a única "felicidade" (mais corretamente, o evitamento da infelicidade) a ser atingida pelo resto é assimi­lar essa formidável verdade e agir em consonância com o que ela lhes diz.

P.155/156 Para evitar a ruína, os ho­mens devem ser libertados: os grandes e poderosos da piedade, da compaixão, das consciências (injustamente) culpadas e dos (inoportunos) escrúpulos, e os humildes e vulgares da esperança.

P.157/158 Foi a chegada do Super-Homem que tornou Deus redun­dante. Com a tolerância, a resignação e a piedade fora do cami­nho, no mundo tal como visto (vislumbrado, previsto, augura -do, desejado e anunciado) pelo Homem Superior, não há espaço para Deus - esse Deus da igualdade e patrono da preservação do homem... Nesse mundo vindouro do Homem Superior, o desa­fio não é mais como preservar o homem, mas "Como o homem deve ser superado?".

P.158         A exigência mais enfatizada por Nietzsche é a de uma "rea­valiação de todos os valores". Entre os valores cuja reavaliação é mais urgente se destacam a compaixão e a piedade pelo mais fraco.

P.158         A franqueza de Nietzsche ao expor o credo dos praticantes da variedade centrípeta de busca da felicidade tal como praticada pe­los "caubóis" e "cowgirls pós-modernos" era intragável para seus contemporâneos;

P.158         Nossa época é a época da ressurreição de Nietzsche. Não mais visto como um ico­noclasta e/ou uma curiosidade, ele é valorizado por muitos in­térpretes atuais como um grande, talvez o maior, porta-voz das emoções que colocam em movimento e orientam a filosofia de vida de um número crescente de nossos contemporâneos.

P.158         (…), é a categoria da respon­sabilidade que fornece o foco da obra de Emmanuel Levinas.

P.159         Segundo Emmanuel Levinas, a responsabilidade pelo Outro é que é a "estrutura essencial, primária e fundamental" de minha subjetividade.

P.159         Na verdade, "o próprio nó do subjetivo é atado na ética entendida como res­ponsabilidade". Sou porque sou para os outros. Para todos os fins e propósitos práticos, "ser" e "ser para os outros" são sinônimos.

P.159         É das responsabilidades que carrego que é tecido o meu "eu": responsabilidades "pelo que não foi feito por mim, ou pelo que nem me interessa". "A partir do momento em que o Outro me olha, sou responsável por ele, sem ter assumido responsabilidades quanto a isso."

P.160         (…), Levi­nas repetidamente admite e adverte que "uma exigência ética não é uma necessidade ontológica".

P.161         A responsabilidade não tem capacidade de determinar minhas ações.

P.161         Enfrentar a responsabilidade ética, aceitar essa responsabilidade, assumir a responsabilidade por essa responsabilidade, é questão de escolha - tendo poucos ou nenhum ponto a seu favor, exceto a voz da consciência. As­sumir a responsabilidade não é absolutamente algo garantido;

P.161         A ética não é mais forte nem "mais real" que a existência - é apenas melhor. Assumir responsabilidade por minha res­ponsabilidade é resultado de buscar aquele "melhor" - de uma busca que pode ou não ser realizada...

                                                                 POSFÁCIO

                                               SOBRE ORGANIZAR E SER ORGANIZADO

P.163         Ser artistas significa dar forma e condição àquilo que de outro modo seria sem forma ou aparência. Manipular probabilidades. Impor uma "ordem" no que, de outro jeito, seria o "caos": "organizar" uma co­leção de coisas e eventos que, não fosse isso, seria caótica - alea­tória, fortuita e imprevisível -, tornando a ocorrência de alguns desses eventos mais provável que a de todos os outros.

P.165         (…)..." No caminho do gerencialismo para a "economia da experiência", nasceram, porém, novos tipos de organizações, "empresariais, descarada­mente ecléticas, não-lineares e por vezes gritantemente ilógicas. São constituídas via proximidade, subjetividade, jovialidade e performatividade." E assim, ao que parece, chegou o momento de dar adeus à constância, à consistência e à coerência.

P.166         (…) econo­mia "gerencial" para a economia da "experiência" (…) progressivo obscurecimento, abrandamento ou eliminação das fronteiras que um dia separaram nitidamente as esferas da vida e as áreas de valor auto-sustentadas e autônomas: o local de trabalho e o lar, o tempo de trabalho e o tempo livre, o trabalho e o lazer e, de fato, os negócios e a família (separar-se dela foi memoravelmente proclamado por Max Weber como o ato fun­dador da modernidade e sua declaração de guerra a tudo que fosse irrelevante para os objetivos da organização e incapaz de ser subordinado à sua lógica impessoal).

P.166         Na era dos celulares, laptops e palmtops, não há desculpa para se estar temporariamente fora de alcance, seja do local de trabalho ou da família - dos deveres do trabalho ou das obri­gações familiares. Estar constantemente à disposição de sócios e chefes, assim como de amigos e membros da família, tor­na-se não apenas uma possibilidade, mas um dever e também um impulso interior.

P.167         O emblema da dominação genuína é hoje em dia a facilidade com que o de­sempenho de tarefas gerenciais ortodoxas é evitado, tendo sido transferido lateralmente ou para baixo na hierarquia.

P.167         (…) empregados "empoderados" se tornam auto-administrados. Confia-se que empregados auto-administrados utilizem partes de si mesmos que estavam fora do alcance dos chefes nos contratos de trabalho tradicio­nais - agregando recursos que seus gerentes não podiam agregar. Também se espera dos novos empregados "empoderados" (chamados ou não de "subempreiteiros") que não contem as horas gastas a serviço da companhia empregadora e que controlem e neutralizem as partes de si mesmos que sejam potencialmente contraproducentes ou problemáticas,

P.168         Em vez de colher safras desenvolvidas independentemente e tornadas "prontas para a colheita" nos locais tradicionais, as organizações agora precisam assumir as tarefas de plantio e cul­tivo laborioso das qualidades que pretendem mobilizar a fim de aumentar a "performatividade" de seus membros.

P.169         (…) [A] questão de ser ou não parte de alguma coisa orienta o comportamento do em­pregado como indivíduo."4 "O código do amor", acredita Âkers-trom, orienta a estratégia do "novo tipo" de organização. E assim não há um contrato de trabalho por escrito (tal como não há um acordo verbal de coabitação entre os amantes) que seja estabele­cido para sempre, "para o bem ou para o mal" e "até que a morte nos separe". Os parceiros são mantidos perpetuamente in statu nascendi, incertos quanto ao futuro, precisando constantemen­te provar de modo cada vez mais convincente que "ganharam" e "merecem" a simpatia e lealdade do chefe ou parceiro.

P.169         O trabalho nunca acaba, tal como as estipulações de amor e reconhecimento nunca são totais e incondicionais. Não há tempo para deitar sobre os lou­ros: estes, como se sabe, murcham e definham com o tempo, os êxitos tendem a ser esquecidos um instante depois de terem sido obtidos, a vida numa empresa é uma infinita sucessão de emergências...

P.169         (…), a lógica da versão individualista da "habilitação" promovida pela "economia da experiência" torna a cooperação, o comprometimento mútuo e a solidariedade entre colegas de trabalho não apenas redun­dantes, mas simplesmente contraproducentes.

P.170         (…) a individualização dos salários, a dispersão das reivindicações comuns, o abandono dos acordos coletivos e o enfraquecimento das "solidariedades específicas") parecem militar contra a solidariedade comunal. Agora é cada um por si, com os gerentes recolhendo os ganhos de "produtivi­dade" derivados daquilo que eqüivale a meter o "t" de solitário no lugar do "d" de solidário...

P.170         É precisamente porque estamos dispostos "a constituir ami­zades e companheirismos profundos", e ansiámos por isso de modo mais vigoroso e intenso do que nunca, que nossos rela­cionamentos são cheios de som e fúria, repletos de ansiedade e estados de alerta perpétuo.

P.171         Em nosso ambiente líquido-mo­derno, a lealdade por toda a vida é uma bênção misturada com muitas maldições.

P.172         O amor, devemos concluir, se abstém de prometer um ca­minho fácil para a felicidade e o sentido.

P.172/173 (…) crescente fragilidade dos vínculos humanos, a impopularidade dos compromissos de longo pra­zo, a tendência a se despojar os "deveres" dos "direitos" e evitar quaisquer obrigações a não ser as "obrigações a si mesmo" (…), o amor tende a ser visto ou como perfeito desde o início ou como fracassado - a ser aban­donado e substituído por um espécime "novo e aperfeiçoado", ao que se espera genuinamente perfeito.

P.173         A felicidade, para relembrar o diagnóstico de Kant, é um ideal não da razão, mas da imaginação.


FIM

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