BAUMAN,
Zygmunt. A Arte da Vida. Trad.
Carlos Alberto Medeiros. RJ: Zahar, 2009.
Ficha de Leitura
Subsídio para estudo
2. NÓS, OS ARTISTAS
DA VIDA
P.72 A
vida não pode deixar de ser uma obra de arte se é uma vida humana - a vida de
um ser dotado de vontade e liberdade de escolha. Vontade e escolha deixam suas
marcas na forma da vida, a despeito de toda e qualquer tentativa de negar sua
presença e/ou ocultar seu poder atribuindo o papel causai à pressão esmagadora
de forças externas que impõem um "eu devo" onde deveria estar
"eu quero", e assim reduzem a escala das escolhas plausíveis.
P.72 A
vida humana consiste num confronto perpétuo entre as "condições
externas" (percebidas como "realidade", por definição um assunto
sempre resistente, e muitas vezes desafiador, à vontade do agente) e designa
seus autores/atores: seu propósito de superar a resistência, o desafio e/ou
inércia, ativos ou passivos, da matéria e reconstruir a realidade de acordo com
a visão da "boa vida" que escolheram.
P.73 (…),
a vida se passa na companhia da incerteza. Cada decisão tende a permanecer
arbitrária; ninguém estará livre de riscos e seguro contra o fracasso e
desapontamentos posteriores.
P.74 (…) nossa
escolha da estrela-guia foi, no final das contas, nossa escolha, cheia de riscos como todas as
escolhas foram e tendem a ser - e nossa
escolha, feita por
responsabilidade nossa, ela continuará sendo até o fim...
P.74 (…),
Foucault indaga: se uma lâmpada ou uma casa pode ser uma obra de arte, por que
não uma vida humana?
P.76 (…) "querem
que cada momento seja prazeroso". De fato: cada momento. Um momento desprazeroso é um
momento perdido. Já que é impossível calcular que tipo de lucros futuros um
sacrifício no presente pode acarretar, se é que acarretará algum lucro no
futuro, por que se deveria renunciar aos prazeres instantâneos que se pode
extrair do "aqui e agora"?
P.76 Hoje
se presume que o curso da vida e o significado de cada um de seus sucessivos
episódios, assim como seu "propósito geral" ou "destino
último", sejam empregos do tipo faça-você-mesmo, ainda que isso consista
apenas em selecionar e reunir o tipo certo de jogo de mobília para montar ao
estilo Ikea.
P.76 (…):
nos dias de hoje, cada homem e cada mulher é um artista nem tanto por escolha quanto, por assim dizer, por um decreto do destino universal.
P.77 Tal
como os que não vêem razão para postergar a satisfação e decidem "viver o
momento", as pessoas preocupadas com o futuro e que estão em guarda contra
as possibilidades negativas que ainda têm pela frente estão convencidas da
volatilidade das promessas da vida. Todos eles parecem apaziguados com a
impossibilidade de decisões infalíveis, de prever exatamente qual dos
inumeráveis passos sucessivos se revelará (retrospectivamente!) como uma das
escolhas corretas, ou qual das sementes aleatoriamente espalhadas vai trazer
frutos saborosos e abundantes,
P.78 (…) insistência
dos filósofos na necessidade de conquistar a natureza e submetê-la à administração
humana: substituir a aleatoriedade cega da natureza por uma ordem guiada pela
razão, meticulosamente planejada e monitorada, à prova de acidentes e acima de
tudo administrável, e assim forçá-la, sob uma nova (humana) administração, a
servir adequadamente aos interesses humanos.
P.78/79 A
catástrofe da "Grande Guerra" solapou a confiança investida por
quase dois séculos na sabedoria e eficácia de uma ordem construída por seres
humanos, baseada na ciência e na tecnologia, também colocando em dúvida a
convicção de que essa ordem deveria chegar mais alto em termos do bem e da
justiça que promovia do que a natureza jamais seria capaz de fazer.
P.79 O
que a "Grande Guerra" havia mostrado (…) é que os resultados da
administração humana são exatamente tão caprichosos, imprevisíveis, cegos,
impensados e indiferentes às virtudes e vícios humanos quanto a natureza fora
acusada de ser dois séculos antes. E ainda mais atrozes e devastadores.
P.79 O
reino da Razão, o governo indiviso da lei e da ordem - tudo isso estava à
espera na próxima esquina.
P.80 (…) o futuro da civilização estava
garantido. Sob a administração humana, o mundo estava seguro e tendia a ficar
ainda mais seguro.
P.82 A
própria idéia de que, com conhecimento e tecnologia suficientes, é possível
calcular o futuro e garantir as metas aperfeiçoando-se os meios, essa idéia é
que foi enviada para o túmulo nos campos de matança do Somme, de Verdun e da
Prússia Oriental - morta e enterrada em valas comuns juntamente com milhões de
soldados, com a autoconfiança da Europa e a crença dos povos civilizados na vitória
final da razão sobre as paixões, sua confiança na sabedoria e benevolência da
história e sua convicção reconfortante e otimista de um presente seguro e de
um futuro garantido.
P.84/85 (…),
atualmente o ritmo da mudança é (pelo menos em nossa área cultural) desconcertante.
As mudanças são contínuas e ubíquas, e condensações delas suficientemente
densas para justificar que se trace uma nova fronteira geracional parecem
eventos quase cotidianos, rotineiros, ou, pelo contrário, menos numerosos e
mais espaçados entre si do que nunca (se preferirmos comparar seu impacto com o
do choque da Primeira Guerra Mundial). Mudanças visíveis são numerosas e compactas, cada vez
mais percebidas e sentidas como traços permanentes da condição humana, como
eventos comuns e não extraordinários, norma e não anormalidade, regra em vez
de exceção - enquanto a descontinuidade
da experiência é quase
universal e afeta igualmente todas as faixas etárias.
P.85 O
ritmo da mudança talvez tenda a ser acelerado demais, e a velocidade com que
novos fenômenos emergem na consciência pública e desaparecem das vistas é
demasiadamente grande. Isso impede que a experiência se cristalize,
estabelecendo-se e solidificando-se em atitudes e padrões comportamentais, síndromes
de valores e visões de mundo, próprios para serem registrados como traços
permanentes do "espírito da época" e reclassificados como
características singulares e duradouras de uma geração.
P.85 Numa
multiplicidade de descontinuidades dispersas e aparentemente desconexas, são
poucas e espaçadas as mudanças capazes de adquirir a visibilidade e o poder
formativo de uma "sublevação". Poucas se sustentam o bastante para
sugerir uma ruptura geracional
e fornecer
matéria-prima para a autoconstituição geracional e a auto-afirmação efetiva.
P.87 A
idéia de "sublevação" se tornou trivializada hoje
P.87 (…),
o mundo líquido-moderno está num estado de revolução permanente, um estado que não admite as revoluções
de uma só vez, os "eventos singulares" que constituem lembranças dos
tempos da modernidade "sólida”.
P.87 Privada
de seus imaculados referentes, a idéia de "revolução" foi banalizada:
os redatores de comerciais usam e abusam dela, apresentando qualquer produto
"novo e aperfeiçoado" como "revolucionário"...
P.88 As
experiências essenciais para um grupo têm poucos ou nenhum referente nas
experiências de outro, enquanto temas de importância-chave para um deles simplesmente
"não se aplicam" ao outro.
P.88 (…) valer
em nossa era moderna, (…) se assumiu que o mundo (…) podia ser diferente do que
era e que estava ao alcance dos seres humanos torná-lo diferente, e desde que o
mundo começou a mudar com rapidez o suficiente para que o "não é como costumava
ser" fosse observado no curso de uma única vida - e conseqüentemente para
que se visualizasse uma lacuna entre "o que é" e "o que deveria
ser", e para que conceitos como "os bons tempos" em oposição a
"um futuro melhor" fossem cunhados e se estabelecessem tanto nas
meditações filosóficas quanto nas percepções populares da vida.
P.89 (…) Jean-Paul
Sartre (…) escolha do projet de la vie. A escolha do projeto de vida significava
a "escolha das escolhas", a meta-escolha que determinaria de uma vez
por todas, do princípio ao fim, todas as outras (subordinadas, derivadas,
contingentes).
P.91 (…) a
habilidade que realmente precisamos adquirir é, primeiro e acima de tudo, a flexibilidade (…) - a capacidade de esquecer e descartar
prontamente antigos ativos transformados em passivos, assim como a capacidade
de mudar cursos e trilhas imediatamente e sem remorso; e que aquilo que
precisamos lembrar eternamente é a necessidade de evitar um juramento de
lealdade por toda a vida a o que ou a quem quer que seja.
P.91 Parece
que hoje, embora ainda se possa sonhar em descrever antecipadamente um cenário
para toda a vida, e mesmo trabalhar arduamente para transformar esse sonho em
realidade, apegar-se a qualquer cenário, mesmo ao do seu próprio sonho, é
assunto arriscado e pode mostrar-se suicida.
P.93 (…)
os gregos "não conseguiam conciliar a idéia de criação sob os auspícios da
inspiração divina com a recompensa monetária pelo trabalho criado".' Na
Antigüidade, "ser artista" se associava a renúncia e pobreza, a
"estar morto para o mundo", e não a alguma espécie de sucesso
mundano, muito menos pecuniário).
P.94 Com
a multiplicação do número de "novos-ricos", as histórias inspiradas
pelo "encontro com o Destino" também se democratizaram. Elas agora
animam as expectativas de vida de todos e quaisquer artistas da vida, praticantes mundanos da mundana arte
da vida mundana; e isso significa todos nós, ou quase todos. Afinal de contas,
hoje se decretou que todos nós temos uma chance de "encontrar o
Destino", de ter um golpe ou rodada de sorte que nos levará ao sucesso e a
uma vida de felicidade.
P.95 As
histórias dos mestres das belas-artes (…) têm a vantagem de cair num terreno
bem preparado pela secular tradição de contar histórias. Elas se ajustam
particularmente bem ao espírito de nossa era líquido-moderna porque, diferentemente das histórias
do início da era
moderna (…), elas
mantêm silêncio sobre os temas desconfortáveis, espinhosos e mesmo angustiantes
da paciência, do trabalho duro e do auto-sacrifício antes considerados
necessários para o sucesso na vida. (…); num mundo líquido-moderno, afinal de
contas, nenhuma atividade válida mantém a validade por muito tempo.
P.95/96 Uma
das muitas virtudes da internet (…) é
que ela põe fim à desconfortável necessidade de tomar partido nas antigas
disputas, agora ofensivas e fora de moda, entre trabalho e lazer, esforço e descanso,
ação intencional e inatividade, ou mesmo aplicação e indolência.
P.97 Não
há muito sentido na arte da vida a menos que exista a esperança, ainda que
incerta, de que os objets d'art que ela produz serão admirados - nas
ruas e praças públicas ou na intimidade do boudoir ou sala de computador de alguém...
P.97/98 Não
muito tempo atrás, e certamente no período áureo da vanguarda, as artes lutaram
para provar seu direito de sobreviver tentando documentar sua utilidade para o
mundo e seus habitantes. Precisavam deixar atrás de si marcas sólidas e
permanentes de suas realizações, provas consistentes dos valiosos serviços que
prestam - marcas tangíveis e possivelmente indeléveis, provas indestrutíveis,
com a promessa de durarem para sempre; agora, porém, não apenas vão muito bem
sem marcas sólidas de sua presença,
mas, com muita freqüência, parecem preocupadas em não ultrapassar o prazo de
permanência e assim evitar todas as marcas que sejam profundas demais para uma
obliteração pronta e rápida. As artes de hoje parecem especializadas principalmente
na montagem rápida e no desmantelamento imediato de suas criações.
P.98 (…),
Rauschenberg, pela qual se esperava que os colecionadores pagassem, eram as
marcas do apagamento. Rauschenberg promoveu a destruição à categoria de criação artística. Foi o ato de aniquilar as marcas deixadas no mundo, e não de imprimi-las, que seu gesto pretendeu representar
como o valoroso serviço que as artes oferecem a seus contemporâneos.
P.98 Isso
também acontece naquele outro nível - o das artes da vida - em que as
ferramentas existenciais de que se precisa com mais urgência são experimentadas
e os desafios mais graves da condição existencial humana são localizados,
confrontados e administrados.
P.99 Praticar
a arte da vida, fazer de sua existência uma "obra de arte",
significa, em nosso mundo líquido-moderno, viver num estado de transformação
permanente, auto-redefinir-se perpetuamente tornando-se (ou pelo menos tentando
se tornar) uma pessoa diferente
daquela que se tem
sido até então. "Tornar-se outra pessoa" significa, contudo, deixar de ser quem se foi até agora, romper e
remover a forma que se tinha, tal como uma cobra se livra de sua pele ou uma ostra
de sua concha; rejeitar, uma a uma, as personas usadas - que o fluxo constante
de "novas e melhores" oportunidades disponíveis revela serem gastas,
demasiado estreitas ou apenas não tão satisfatórias quanto foram no passado.
P.100 Ocupados
com a "autodefinição" e a "auto-afirmação", nós praticamos
a destruição
criativa. Diariamente.
P.101 O
projet
de la vie da Sartre era o equivalente secular do
caminho da salvação, da vida como uma peregrinação à encruzilhada entre a
graça e a maldição eternas - exceto que, em sua versão secular, a graça, a
redenção e a salvação não tinham utilidade para uma vida no além-túmulo; (…).
Mas as duas versões, o equivalente secular e seu original religioso, apresentavam
a vida como a peregrinação para um destino designado definitivamente - e ambas presumiam que, uma vez
escolhido o destino, seria possível obter e absorver instruções exatas sobre
como atingi-lo.
P.102 Num
mundo como o nosso - em que qualquer alvo considerado digno de ser perseguido
aparece diante das vistas apenas por um breve instante, muitas vezes em lugares
que até então não eram vistos como promissores ou dignos de visitar, ou (pior ainda)
em lugares em que caminhos percorridos com sucesso no passado, e assim
considerados suficientemente testados, podem agora conduzir a um desvio -, num
mundo assim, planejar fugas de longo prazo tende a ser um negócio arriscado.
P.102/103 Um mundo repleto
de armadilhas e emboscadas favorece e recompensa os atalhos, projetos que
podem ser concluídos em curto prazo, alvos que podem ser alcançados
imediatamente. Também encoraja uma atitude do tipo "desfrute agora e
pague depois", enquanto desestimula as reflexões e preocupações tipo
"qual o custo disso tudo?".
P.103 Em
nossa sociedade de consumidores, o impulso de replicar o estilo de vida
atualmente recomendado pelas últimas ofertas do mercado e louvado por seus
porta-vozes, pagos ou voluntários - e também, por conseqüência, a compulsão de
revisar perpetuamente a identidade e a persona pública -, deixou de ser
associado à coerção (uma coerção externa, e por isso particularmente ofensiva e
irritante). Tende a ser percebido, ao contrário, como manifestações da liberdade pessoal (…).
P.104 Os
sinais da estrada que marcam as trajetórias de vida aparecem e desaparecem
quase sem aviso. Os mapas do território que deverá ser atravessado em algum
ponto do futuro devem ser atualizados quase que diariamente - e o são, embora
irregularmente e sem alarde.
P.105 (…),
a não-participação no estilo de vida dominante na sociedade líquido-moderna de
consumidores tenda a ser explicada ou por um ressentimento, ideologicamente
inspirado, em relação à liberdade, ou pela inépcia em usar seus dons e suas
bênçãos.
P.105 A
volatilidade, vulnerabilidade e fragilidade de toda e qualquer identidade
coloca sobre os ombros daquele que busca uma identidade o dever de
desincumbir-se diariamente das tarefas da identificação. O
P.105 Se
"ser livre" significa ser capaz de agir de acordo com os próprios
desejos e perseguir os objetivos que se escolheu, a versão líquido-moderna,
consumista, da arte da vida pode prometer
liberdade para
todos, mas a distribui de modo esparso e seletivo.
P.106 Sócrates
evitou confessar as razões pelas quais se tornou o que era. Como diz Nehamas,
ele era "teimosamente calado sobre si mesmo".
P.107 O
significado de viver sua vida "de maneira socrática" era a autodefinição, a auto-afirmação e a presteza
em aceitar que a vida não pode ser senão uma obra de arte por cujos méritos e
deficiências o ator/autor (misturados numa mesma pessoa; o projetista e
simultaneamente executor do projeto) tem plena e total responsabilidade.
P.107 "Imitar
Sócrates" significava, em outras palavras, recusar firmemente a imitação - a imitação da
pessoa "Sócrates" ou de qualquer outra pessoa, ainda que valorosa.
P.107 Tal
como pintores ou escultores, nós - praticantes, por ação ou omissão, da arte da
vida - não nos decidiremos por qualquer criação artística (qualquer modelo de
vida). Tendemos todos, ou pelo menos a maioria, a buscar algo especial -
singular e soberbo, na verdade, um "absoluto": um "último"
modelo, um modelo melhor que todos, um modelo perfeito, tão bom que não pode ser aperfeiçoado,
já que nada "melhor" pode existir ou ser imaginado.
P.108 O
valor e atração do Absoluto sonhado por aqueles que buscam uma identidade
está, quer eles saibam ou não, no trabalho de autocriação.
P.109 (…),
são precisamente os "absolutos individuais" (individualmente escolhidos e elevados à categoria de
valor supremo sob a responsabilidade individual
de quem fez a
escolha) que nos permitem, como insinua Todorov, separar uma vida adorável, alegre,
que tem e dá sentido de uma vida que consiste numa coleção de bugigangas
baratas e diversões passageiras.
P.109 Como
Max Frisch, o grande romancista e não menos filósofo da vida, observou em seu
diário, a arte de "ser você mesmo", reconhecidamente a mais exigente
de todas, consiste em rejeitar e repelir resolutamente definições e
"identidades" impostas ou insinuadas por outros; em resistir à
corrente, fugindo das garras imobilizantes do impessoal das Man de Heidegger, nascido da multidão e
poderoso em função dela, ou do Von
de Sartre.
P.110 (…) os
dilemas que tendem a lançar cada um dos praticantes individuais da arte da
vida num estado de incerteza profunda e incurável e de hesitação perpétua.
P.110 O
produto da arte da vida é, supostamente, a "identidade" do artista.
P.110 Como
insinua Claude Dubar, "a identidade nada mais é que o resultado - simultaneamente
estável e provisório, individual e coletivo, subjetivo e objetivo, biográfico e
estruturado - de diversos processos de socialização que ao mesmo tempo constróem
os indivíduos e definem as instituições".
P.112 A
autocriação é um imperativo, e de fato uma
realização inevitável, mas a idéia de auto-afirmação
parece mais uma simples
fábula da imaginação (e é amplamente condenada como um caso de autismo ou auto-ilusão).
P.112/113 Mas a
afirmação capaz de realizar o trabalho de autocriação só pode ser oferecida por
uma autoridade: uma comunidade em que é importante ser admitido porque ela tem o poder de recusar
candidatos... Até os itinerários
mais originais não podem ser mais do que listas de sucessivos portos de escala.
P.113 "A
pertença", como insinua Jean-Claude Kaufmann, é hoje "usada
basicamente como recurso do ego". Ele adverte sobre pensar em
"coletividades de pertença" como se fossem necessariamente
"comunidades integradoras". É melhor concebê-las como acompanhamentos
necessários ao processo de individualização; como uma série de estações,
podemos dizer, ou pousadas ao longo da estrada, marcando a trajetória do ego em
processo de autoformação e auto-reforma.
P.113 (…)
uma "comunidade integradora" é essencialmente uma força conservadora
(que atua para conservar, estabilizar, impor rotinas e preservar). Está à
vontade num ambiente administrado, supervisionado e policiado de forma rigorosa
- dificilmente no mundo líquido-moderno, com seu culto à velocidade e à
aceleração, à novidade e à mudança apenas (ou principalmente) pelo prazer de
mudar.
P.113/114 O que hoje
se toma equivocadamente como sendo uma versão atualizada do big brother de
Orwell ou do panóptico de Jeremy Bentham é, na verdade, o contrário exato dos
supostos originais: um dispositivo empregado a serviço de excluir e "manter a distância", não de
"integrar", "conter" e "controlar". Ele monitora
o movimento dos estranhos para evitar que se tornem ou pretendam
ser pessoas de dentro - de modo a que estas possam sentir-se confortáveis lá
dentro, o que significa poder seguir as normas internas com menos vigilância e
sem aplicação de força.
P.115 Em
sua versão contemporânea líquido-moderna, a "pertença" a uma entidade
pode ser associada e compartilhada com a pertença a outras entidades em quase
qualquer tipo de combinação, sem necessariamente resultar em condenação e
provocar medidas repressivas de nenhuma delas.
P.115 Dificilmente
algum tipo de "pertença" dos dias de hoje envolve "o eu
total", já que cada pessoa a cada momento de sua vida está envolta, por assim
dizer, em "múltiplas pertenças". Ser apenas parcialmente leal, ou,
digamos, leal "à la
carte", não é mais visto
necessariamente como equivalente à deslealdade, muito menos à traição.
P.115 Nas
escalas emergentes da superioridade cultural e do prestígio social, os
"híbridos" (quer sejam "genuínos" ou autoproclamados)
tendem a ocupar as posições mais elevadas, e a manifestação do
"hibridismo" se torna uma ferramenta de mobilidade social ascendente
amplamente aprovada.
P.116 Para
a arte da vida, esse novo ambiente revela paisagens sem precedentes. A
liberdade de autocriação jamais alcançou uma amplitude tão surpreendente, ao
mesmo tempo excitante e assustadora. Nunca antes a necessidade de pontos de
orientação e guias prestativos foi tão intensa ou dolorosamente sentida. Mas
nunca antes houve tanta falta de pontos de orientação fidedignos e de guias
confiáveis (…).
P.116 (…) há
uma perturbadora carência de pontos de orientação firmes e fidedignos, assim como de guias confiáveis. Essa carência coincide (…) com uma
proliferação inédita de sugestões tentadoras e ofertas de orientação atraentes,
com uma onda sempre crescente de manuais e hordas cada vez mais amplas de
consultores - tornando, contudo, ainda mais confusa a tarefa de atravessar a
mata densa de proposições equivocadas ou simplesmente falsas para encontrar uma
orientação capaz de realizar sua promessa...
P.117 Uma
realidade social não pode ser reduzida a um agregado de
indivíduos em busca de objetivos privados e
guiados por desejos e normas igualmente privados. As repetidas declarações
públicas do presidente francês sugerem, ao contrário, exatamente essa redução.
P.117 Não
parece que as previsões de "fim da ideologia", numerosas e
amplamente aceitas até cerca de vinte anos atrás, tenham se concretizado ou
estejam perto disso. O
que estamos testemunhando
é, em vez disso, o curioso desvio que ocorre atualmente com a idéia de
"ideologia". Em desafio a uma longa tradição, a ideologia hoje
defendida a partir de cima para uso popular é a crença de que pensar sobre uma
"totalidade" e compor visões de uma "boa sociedade" são perda
de tempo, já que irrelevantes para a felicidade individual e uma vida exitosa.
P.117/118 Ela é, em
vez disso, uma ideologia da
privatização. O apelo a
"trabalhar mais e ganhar mais", dirigido a indivíduos e adequado
unicamente ao uso individual, está repelindo
e substituindo os apelos do passado a "pensar a sociedade" e
"cuidar da sociedade" (de uma comunidade, nação, igreja, causa).
P.118 Essa
é também uma ideologia feita sob medida para a nova sociedade de consumidores. Representa o mundo como um depósito
de potenciais objetos de consumo, a vida individual como uma eterna busca por
barganhas, seu propósito como a satisfação máxima do consumidor e o sucesso na
vida como um acréscimo ao valor de mercado do próprio indivíduo.
P.119 A
exclusão faz parte da natureza das coisas, um aspecto inseparável de nosso
estar-no-mundo, uma "lei da natureza", por assim dizer - e portanto
não faz sentido rebelar-se contra ela.
P.119/120 Uma vez
classificados como indivíduos, somos encorajados a buscar ativamente o "reconhecimento
social" pelo que havia sido pré-interpretado como nossas escolhas
individuais: ou seja, pelas
formas de vida que nós, os indivíduos, estamos praticando (seja por ação ou
omissão).
P.120 A
alternativa ao reconhecimento social é a negação da dignidade: a humilhação.
Na recente definição de Dennis Smith, "o ato é humilhante se ignora ou
contradiz vigorosamente a afirmação de determinados indivíduos ... a respeito
de quem são e onde e como se encaixam"; em outras palavras, nega-se aos
indivíduos, explícita ou implicitamente, o reconhecimento que esperavam pela
pessoa que são e/ou o tipo de vida que levam;
P.120 A
negação do reconhecimento, a recusa do respeito e a ameaça de exclusão têm
substituído a exploração e a discriminação como as fórmulas mais comumente
usadas para explicar e justificar os rancores que indivíduos podem sentir em
relação à sociedade, ou a partes ou aspectos da sociedade aos quais eles
estejam diretamente expostos (pessoalmente ou pela mídia) e que vivenciem em
primeira mão.
P.120/121 (…)
na individualizada sociedade de consumidores as definições e explicações mais
comuns e "mais reveladoras" da dor e indignação resultantes se
afastaram atualmente, ou estão se afastando, das características relacionadas
ao grupo ou categoria para caminhar na direção de referentes pessoais.
P.120 (…),
o sofrimento individual
tende a ser cada vez mais percebido como resultado de uma ofensa pessoal e de
um ataque à dignidade e à auto-estima pessoais, exigindo uma
resposta ou vingança pessoais.
P.124 Os filósofos da ética fizeram o
possível para estabelecer uma ponte entre as duas margens do rio da vida: o auto-interesse e a preocupação com outros.
P.127 Em
face das decisões humanas entre o bem e o mal, descobriu-se que a sabedoria
sociológica nada tem a dizer...
P.127/128 Uma vez na
vida, os sociólogos - autoproclamados mestres de métodos de pesquisa à prova de
erros, ou quase - são obrigados a se curvar diante da opinião de um mestre da
perspicácia, visão e empatia amplamente aclamado. Obrigados mesmo, (…)
já que, quando se trata de sujeitos morais e julgamento ético, inventários de
fatores determinantes e estatísticas de sua distribuição se mostram de pouca
utilidade.
P.131 Francis
Fukuyama (…) sugeriu recentemente que os sonhos totalitários inspirados pelo
Iluminismo, e que persistem desde então, de produzir "novos seres
humanos" feitos sob medida para explorar o potencial genuíno da espécie (…)
não eram mal concebidos nem irreais; esses sonhos, insiste Fukuyama,
fracassaram simplesmente porque foram sonhados antes da época, sob condições
ainda não adequadas para sua concretização.
P.131 O
que não está em dúvida, porém, é a conexão entre os novos feitos da tecnociência
e o advento de uma era de novos medos e novas distopias. Os medos e as distopias
certamente alcançaram o nível das novas perspectivas tornadas viáveis pela
nova tecnociência.
P.131/132 Tanto as
utopias quanto as distopias são especializadas em vislumbrar o destino predeterminado
dos desenvolvimentos correntes: as utopias apresentam a terra no fim da estrada
como um local de harmonia e ordem, um destino a ser ansiosamente aguardado e,
se possível, aproximado, enquanto as distopias retratam a terra como, na melhor
das hipóteses, uma prisão ao ar livre, algo a ser temido, mantido à maior
distância possível e,
idealmente, transformado em algo eternamente fora dos limites.
P.132 Independentemente
da extensão do inventário cientificamente composto dos determinantes e da
profusão de ferramentas técnicas disponíveis para manejá-los, os seres humanos
permanecem teimosamente viciados em escolhas que destroem as normas e rotinas
existentes, e portanto são notórias pelo hábito de desafiar previsões, pela
aleatoriedade e irregularidade de sua conduta, pela inconstância, extravagância
e frivolidade, e simplesmente por aquilo que qualquer gerente digno de seu
salário descreveria, ultrajado, como o pecado da inconfiabilidade.
P.136 Entre
a aceitação resignada e a decisão corajosa de desafiar a força das
circunstâncias coloca-se o caráter. É o caráter do ator que submete as escolhas
triunfalmente aprovadas no teste da probabilidade
a outro teste,
muito mais exigente, o da aceitabilidade.
P.136/137 Na visão de
Knud Logstrup, (…), a esperança da moral (…) é revestida de uma espontaneidade pré-reflexiva. "A misericórdia é espontânea porque a
menor interrupção, a menor diluição dela para servir a algo mais a destrói
inteiramente, de fato a transforma no oposto do que ela é, a crueldade."
P.137 Toda
amoralidade, na visão de Levinas, começou com a pergunta de Caim "Serei
eu o zelador de meu irmão?", (…).
P.137 Os
dois filósofos parecem aceitar que a necessidade de moral, ou simplesmente o fato de
ela ser recomendável, não pode nem precisa ser
discursivamente estabelecida, muito menos provada. E que, além disso, a própria
expressão "necessidade de moral" deveria ser rejeitada como um
paradoxo - já que tudo que responde a uma "necessidade" é algo diferente
da moral.
P.137 (…)
um ato é moral na medida em que seja uma manifestação de humanidade impensada,
natural, espontânea e principalmente irrefletida.
P.138 Uma
ação moral não "serve" a "propósito" algum e certamente não
é guiada pela expectativa de lucro, conforto, notoriedade, reforço do ego,
aplauso público ou qualquer outro tipo de autopromoção.
P.138 Nas
ações morais, qualquer "motivo inconfesso é descartado", insiste
Logstrup. A expressão espontânea da vida é radical graças precisamente à "ausência
de motivos inconfessos" - incluindo, talvez acima de tudo, a ausência de
motivos como ganho ou anulamento de punição. Essa é uma razão crucial pela qual
a demanda ética, aquela pressão "objetiva" a ser moral que emana do
próprio fato de estar vivo e compartilhar o planeta com outros seres vivos, é e
deve permanecer silenciosa.
P.138 Conformidade
não é moralidade, mesmo que em resposta a
uma ordem de fazer determinado bem. Não existe um "deve" na moral -
nada de ordens nem coerção; as ações morais são intrinsecamente escolhas livres, expressões da liberdade de ação do eu
(seres humanos não-livres - se essa contradição em termos fosse plausível - não
seriam "seres morais").
P.139 A
demanda ética é silenciosa, não explica que forma a preocupação com os outros
deveria assumir. Mas seu poder consiste precisamente em seu caráter reticente e
silencioso, graças ao qual ela não chega a ponto de dar ordens, ameaçar com
sanções e reduzir
P.139 Não
somos compelidos a assumir uma postura ética por um poder superior. Em última
instância, cabe a nós, e somente a nós, submeter-nos ao desafio da Face do
Outro e resolver como dar conteúdo ao choque de nossa responsabilidade em
relação a um Outro.
P.139 O
"ser" da ética consiste unicamente em "perturbar a complacência
do ser".
P.140 Sem
se preparar para a possibilidade de escolhas erradas, não é provável que se
persevere na busca pela escolha certa. Longe de ser uma grande ameaça à moral (…),
a
incerteza é o ambiente familiar da pessoa moral e o único solo em que a
moralidade pode brotar e florescer.
P.140 Os
conceitos de responsabilidade e escolha responsável, que antes habitavam o
campo semântico do dever ético de preocupar-se com as necessidades do Outro,
agora se mudaram ou foram transferidos para o reino da auto-realização e do
cálculo dos riscos pessoais; foram colocados a serviço de preocupações
centrípetas, auto-referenciais.
P.141 O
resultado não é muito diferente dos efeitos "adiaforizantes" do
estratagema praticado pela burocracia na fase "sólida" da era
moderna. O estratagema consistia na substituição da "responsabilidade por" (…) pela "responsabilidade perante" (uma pessoa superior, uma autoridade,
uma "causa nobre" e seus porta-vozes originadores da ação).
P.141 A
vítima colateral do salto para a versão consumista de liberdade prevalecente
na fase "líquida" da modernidade é o Outro como objeto maior da
responsabilidade ética e da preocupação moral.
P.141 (…) armadilha:
entre o impulso de cuidar dos outros e o desejo de ser cuidado por outros ronda
o perigo assustador da dependência, de perder a capacidade de escolher (…).
P.142 As
possibilidades de povoar o mundo com pessoas mais dedicadas e/ou induzi-las a
se dedicarem mais não figuram nas paisagens pintadas na utopia consumista. As
utopias privatizadas dos caubóis e cowgirls
da era consumista
ostentam em vez disso um "espaço livre" (para mim, é claro) amplamente expandido; um
espaço vasto, mas também "cercado", vedado a visitantes indesejados
e sem convite.
P.142 O
espaço de que os consumidores líquido-modernos necessitam e pelo qual foram
aconselhados, estimulados e encorajados a lutar só pode ser obtido e desfrutado
expulsando-se ou rebaixando-se outros seres humanos, mas particularmente aqueles
que se preocupam e/ou podem precisar de cuidados.
P.143 As
pressões atuais não vão no sentido do auto-enclausuramento e do afastamento do
mundo. Pelo contrário, a libertação do indivíduo em relação à estreita rede de
lealdades e obrigações herdadas ou artificialmente compostas, embora sólidas,
fez os indivíduos libertados se abrirem
para o mundo lá
fora como nunca havia ocorrido na história humana.
P.143 (…),
o mundo é simultaneamente um local de aventura excitante e uma vastidão repleta
de perigos sombrios e apavorantes (o perigo do fracasso, com a vergonha e
humilhação que ele traz, ocupando plausivelmente um lugar de honra entre eles)
- objeto ao mesmo tempo de curiosidade e desejo intensos, e fonte de terror e
do impulso de fugir.
P.145 (…) uma
vida condenada a infindáveis escolhas, forçando o artista da vida a navegar
entre valores incompatíveis e impulsos contraditórios.
P.145 (…)
no momento em que há um equilíbrio entre adiance
e abiance (impulsão e repulsão, atração e
aversão, a atração crescendo com a fome, a aversão aumentando com a proximidade
do fio elétrico exposto), o desequilíbrio mental e a irracionalidade de
comportamento são as reações mais prováveis.
P.146 Embora
a ambivalência seja a companheira constante da condição existencial humana, as
reações humanas provavelmente não assumiriam a forma de desordens relacionadas
à alimentação não fosse pela atual preponderância do impulso "centrípeto"
e a resultante tendência a identificar o souci de soi (cuidado de si) e 1'amour
propre (auto-estima) com, básica e
exclusivamente, o cuidado do corpo:
mais precisamente,
com o cuidado da boa forma corporal, ou seja, a capacidade do
corpo de produzir e absorver os prazeres que podem ser oferecidos pelo mundo e
pelos outros seres humanos que o povoam, e com a aparência do corpo, destinada a atrair
potenciais doadores de sensações prazerosas.
P.148 Tendo
expandido as oportunidades e expectativas individuais de prazer, a nova
abertura até agora não conseguiu prestar o mesmo serviço às responsabilidades
dos indivíduos pelas possibilidades e perspectivas do mundo.
P.149 Todas
as variedades de força centrífuga repercutem, em última instância, no
"centro", seja por ação ou omissão. Cada variedade é desencadeada
pelo desejo de felicidade e serve, por ação ou omissão, à felicidade daqueles
por quem é empregada ou a quem orienta.
P.150
P.150 O
que Nietzsche sugeriu em 1888 - "Só o dia depois de amanhã me pertence.
Algumas pessoas nascem postumamente" - mostrou-se destinado a se tornar
verdade.
P.151 Qual
foi então a "maior verdade" que Nietzsche insistia ter descoberto? E
por que ele previa que essa descoberta iria lançar a humanidade numa crise
nunca antes enfrentada, muito menos ultrapassada? A descoberta de Nietzsche,
em sua opinião, foi que a moral é uma farsa, um sinal de decadência, produto de
uma conspiração dos fracos e indolentes, de forma covarde e inepta, contra tudo
que é grande e nobre e sublime e poderoso e inspirado e digno de orgulho (…).
P.151 Ele
virou de cabeça para baixo os axiomas em que se baseava a idéia de moralidade,
de oposição entre o bem e o mal.
P.152 (…)
no veredicto de Nietzsche de que a ética legada pelo cristianismo a seus
contemporâneos (por cujo "mau hálito" ele se sentia
"asfixiado") era "a revolta de todas as coisas que rastejam
sobre seus ventres contra tudo que é grandioso". Essa ética cristã era a
relíquia venenosa da revolta das "furtivas lagartas daninhas", um
"bando de covardes, efeminados e aduladores"...
P.153 Foi
contra essa verdade fundamental que a ética inventada pelo judaísmo, assumida e
ampliada pelo cristianismo, constituiu uma rebelião - uma rebelião, podemos
entender, daqueles "lacrados em palavras" e excluídos do universo da
excelência. Nos estandartes da revolta estava bordado o reverso da verdade:
(…).
P.154 (…) a
sabedoria da ordem aristocrática está, na visão de Nietzsche, em dar a todos o
que razoavelmente pode ser deles: a felicidade da exuberância para os fortes, a
tranqüilidade da modéstia e a aceitação plácida do destino para os fracos. A
piedade e a compaixão pelos fracos e infelizes são, nessa visão, tão cruéis
quanto ineficazes: não tornarão o fraco mais forte, apenas infelizmente; as
esperanças imprudentemente acordadas só acrescentarão o insulto da derrota à
insjúria da inferioridade.
P.155 O
egoísmo dos grandes e poderosos é "saudável e sagrado", já que sua
própria grandeza e poder são um presente (…) para toda a humanidade.
Infelizmente, diria Zaratustra, há também um outro egoísmo, o daqueles que só
têm sua fraqueza e degradação para oferecer.
P.155 A
mensagem de Zaratustra, porta-voz de Nietzsche, pode ser tudo, menos obscura ou
ambígua. Há felicidade para todos,
mas não a mesma felicidade para cada um. O
"saudável e sagrado" egoísmo dos grandes e poderosos, nobres e
determinados, é a felicidade - enquanto a única "felicidade" (mais
corretamente, o evitamento da infelicidade) a ser atingida pelo resto é assimilar
essa formidável verdade e agir em consonância com o que ela lhes diz.
P.155/156 Para evitar
a ruína, os homens devem ser libertados: os grandes e poderosos da piedade, da compaixão, das consciências
(injustamente) culpadas e dos (inoportunos) escrúpulos, e os humildes e vulgares da esperança.
P.157/158 Foi a
chegada do Super-Homem que tornou Deus redundante. Com a tolerância, a
resignação e a piedade fora do caminho, no mundo tal como visto (vislumbrado,
previsto, augura -do, desejado e anunciado) pelo Homem Superior, não há espaço para Deus - esse Deus da igualdade e
patrono da preservação do homem... Nesse mundo vindouro do
Homem Superior, o desafio não é mais como preservar o homem, mas "Como o
homem deve ser superado?".
P.158 A exigência mais enfatizada por
Nietzsche é a de uma "reavaliação de todos os valores". Entre os
valores cuja reavaliação é mais urgente se destacam a compaixão e a piedade
pelo mais fraco.
P.158 A franqueza de Nietzsche ao expor o credo
dos praticantes da variedade centrípeta de busca da felicidade tal como
praticada pelos "caubóis" e "cowgirls pós-modernos"
era intragável para seus contemporâneos;
P.158 Nossa
época é a época da ressurreição de Nietzsche. Não mais visto como um iconoclasta
e/ou uma curiosidade, ele é valorizado por muitos intérpretes atuais como um
grande, talvez o maior, porta-voz das emoções que colocam
em movimento e orientam a filosofia de vida de um número crescente de nossos contemporâneos.
P.158 (…),
é a categoria da responsabilidade
que fornece o foco
da obra de Emmanuel Levinas.
P.159 Segundo Emmanuel Levinas, a
responsabilidade pelo Outro é que é a "estrutura essencial, primária e
fundamental" de minha subjetividade.
P.159 Na verdade, "o próprio nó do
subjetivo é atado na ética entendida como responsabilidade". Sou
porque sou para os outros. Para todos os fins e
propósitos práticos, "ser" e "ser para os outros" são
sinônimos.
P.159 É das responsabilidades que carrego que
é tecido o meu "eu": responsabilidades "pelo que não foi feito
por mim, ou pelo que nem me interessa". "A
partir do momento em que o Outro me olha, sou responsável por ele, sem ter assumido
responsabilidades quanto a isso."
P.160 (…),
Levinas repetidamente admite e adverte que "uma exigência ética não é uma
necessidade ontológica".
P.161 A responsabilidade não
tem capacidade de determinar minhas ações.
P.161 Enfrentar a
responsabilidade ética, aceitar essa responsabilidade, assumir
a responsabilidade por essa responsabilidade, é
questão de escolha - tendo poucos ou nenhum ponto a seu favor, exceto a voz da
consciência. Assumir a responsabilidade não é absolutamente algo garantido;
P.161 A ética não é mais
forte nem "mais real" que a existência - é apenas melhor.
Assumir responsabilidade por minha responsabilidade é
resultado de buscar aquele "melhor" - de uma busca que pode ou não
ser realizada...
POSFÁCIO
SOBRE ORGANIZAR E SER ORGANIZADO
P.163 Ser artistas
significa dar forma e condição àquilo que de outro modo seria sem forma ou
aparência. Manipular probabilidades. Impor uma "ordem" no que, de
outro jeito, seria o "caos": "organizar" uma coleção de
coisas e eventos que, não fosse isso, seria caótica - aleatória, fortuita e
imprevisível -, tornando a ocorrência de alguns desses eventos mais provável
que a de todos os outros.
P.165 (…)..." No caminho do gerencialismo
para a "economia da experiência", nasceram, porém, novos tipos de
organizações, "empresariais, descaradamente ecléticas, não-lineares e por
vezes gritantemente ilógicas. São constituídas via proximidade, subjetividade,
jovialidade e performatividade." E assim, ao que parece, chegou o momento
de dar adeus à constância, à consistência e à coerência.
P.166 (…)
economia "gerencial" para a economia da "experiência" (…)
progressivo obscurecimento, abrandamento ou eliminação das fronteiras que um dia
separaram nitidamente as esferas da vida e as áreas de valor auto-sustentadas e
autônomas: o local de trabalho e o lar, o tempo de trabalho e o tempo livre, o
trabalho e o lazer e, de fato, os negócios e a família (separar-se dela foi
memoravelmente proclamado por Max Weber como o ato fundador da modernidade e
sua declaração de guerra a tudo que fosse irrelevante para os objetivos da
organização e incapaz de ser subordinado à
sua lógica
impessoal).
P.166 Na
era dos celulares, laptops
e palmtops, não há desculpa para se estar temporariamente
fora de alcance, seja do local de trabalho ou da família - dos deveres do trabalho
ou das obrigações familiares. Estar constantemente à disposição de sócios e chefes, assim
como de amigos e membros da família, torna-se não apenas uma possibilidade,
mas um dever e também um impulso interior.
P.167 O emblema da dominação genuína é hoje
em dia a facilidade com que o desempenho de tarefas gerenciais ortodoxas é evitado,
tendo sido transferido lateralmente ou para baixo na
hierarquia.
P.167 (…) empregados "empoderados"
se tornam auto-administrados. Confia-se que empregados auto-administrados utilizem partes
de si mesmos que estavam fora do alcance dos chefes nos contratos de trabalho
tradicionais - agregando recursos que seus gerentes não podiam agregar. Também
se espera dos novos empregados "empoderados" (chamados ou não de
"subempreiteiros") que não contem
as horas gastas a serviço da companhia empregadora e que controlem e
neutralizem as partes de si mesmos que sejam potencialmente contraproducentes
ou problemáticas,
P.168 Em vez de colher safras desenvolvidas
independentemente e tornadas "prontas para a colheita" nos locais
tradicionais, as organizações agora precisam assumir as tarefas de plantio e
cultivo laborioso das qualidades que pretendem mobilizar a fim de aumentar a
"performatividade" de seus membros.
P.169 (…) [A] questão de ser ou não parte de
alguma coisa orienta o comportamento do empregado como indivíduo."4
"O código do amor", acredita Âkers-trom, orienta a estratégia do
"novo tipo" de organização. E assim não há um contrato de trabalho
por escrito (tal como não há um acordo verbal de coabitação entre os amantes)
que seja estabelecido para sempre, "para o bem ou para o mal" e
"até que a morte nos separe". Os parceiros são mantidos perpetuamente
in statu nascendi, incertos quanto ao
futuro, precisando constantemente provar de modo cada vez mais convincente que
"ganharam" e "merecem" a simpatia e lealdade do chefe ou
parceiro.
P.169 O trabalho nunca acaba, tal como as
estipulações de amor e reconhecimento nunca são totais e incondicionais. Não há
tempo para deitar sobre os louros: estes, como se sabe, murcham e definham com
o tempo, os êxitos tendem a ser esquecidos um instante depois de terem sido obtidos,
a vida numa empresa é uma infinita sucessão de emergências...
P.169 (…), a lógica da versão individualista
da "habilitação" promovida pela "economia
da experiência" torna a cooperação, o comprometimento mútuo e a
solidariedade entre colegas de trabalho não apenas redundantes, mas
simplesmente contraproducentes.
P.170 (…)
a individualização dos salários, a dispersão das reivindicações comuns, o
abandono dos acordos coletivos e o enfraquecimento das "solidariedades
específicas") parecem militar contra a solidariedade comunal. Agora é cada
um por si, com os gerentes recolhendo os ganhos de "produtividade"
derivados daquilo que eqüivale a meter o "t" de solitário no lugar do
"d" de solidário...
P.170 É precisamente porque
estamos dispostos "a
constituir amizades e companheirismos profundos", e ansiámos por isso de
modo mais vigoroso e intenso do que nunca, que nossos relacionamentos são
cheios de som e fúria, repletos de ansiedade e estados de alerta perpétuo.
P.171 Em nosso ambiente
líquido-moderno, a lealdade por toda a vida é uma bênção misturada com muitas
maldições.
P.172 O amor, devemos
concluir, se abstém de prometer um caminho fácil para a felicidade e o sentido.
P.172/173 (…) crescente fragilidade
dos vínculos humanos, a impopularidade dos compromissos de longo prazo, a
tendência a se despojar os "deveres" dos "direitos" e
evitar quaisquer obrigações a não ser as "obrigações a si mesmo" (…),
o amor tende a ser visto ou como perfeito desde o início ou como fracassado - a
ser abandonado e substituído por um espécime "novo e aperfeiçoado",
ao que se espera genuinamente perfeito.
P.173 A
felicidade, para relembrar o diagnóstico de Kant, é um ideal não da razão, mas
da imaginação.
FIM
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