JABUTICABA
OU DA INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER BRASILEIRO (II)
Efeitos de superfície
revelam causas profundas. Anuncia-se um novo governo de conformação liberal,
conservadora, com nuances reacionários e autoritários. Vozes anunciam: É uma
jabuticaba! Mas, o que uma jabuticaba? Fruta deliciosa. Versátil. De
significativo valor nutricional. Pode ser consumida in natura. Pode ser utilizada na produção de licores e geleias.
Respeita a diversidade racial. Sua casca tem coloração escura e sua poupa é
branca. Quando submetida à infusão libera coloração vermelha e não é de
esquerda, nem comunista. É nativa. Genuinamente brasileira. Tudo indica que
utilizá-la como metáfora para disfarçar contradições e gambiarras políticas e
econômicas é expressão de má fé. E, ademais, tudo nos leva considerar que não
da para defender “escola sem jabuticaba”. A maioria da criançada gosta desta
fruta. Porém, não nos causará surpresa
se no atual contexto, algum hipócrita moralista de plantão sugerir que a
jabuticaba estimula o erotismo infantil e interfere na opção sexual de crianças
e adolescentes.
Sob tais
perspectivas, pretendemos nesta crônica colocar em jogo dois aspectos da
genuína arquitetura teórica e prática do novo governo. Tal arquitetura é fruto
da melhor engenharia político-social forjada no “jeitinho brasileiro de ser”
que se encontra nos fundamentos da “insustentável leveza do ser brasileiro”,
derivada da trajetória política, econômica e cultural presente no processo de
colonização aos dias atuais.
Inicialmente o
jeitinho foi uma prática desenvolvida pelos escravos para livrar-se, ou pelo
menos amenizar a violência a que eram submetidos nos canaviais, nas minas, nas
plantações de café. A saída era fingir-se de morto para findar o açoite. Diante
de situações limites era preciso improvisar, dar um jeito para se manter vivo,
ou mesmo para proteger os amigos, ou familiares. A técnica era eficaz. Isto se
comprova pelo fato de que se manteve ao longo dos tempos, inclusive sendo
incorporada por diversos segmentos da sociedade brasileira até os dias de hoje.
Lugar comum, o futebol é a expressão escandalosa de tal prática. É marca
registrada do jogador brasileiro “cavar uma falta”, “cavar um pênalti”, ou
mesmo “cavar a expulsão do adversário” sem motivo justificado. No dia-a-dia
diante de dificuldades as pessoas dão um jeitinho de se livrar de enrascadas,
da falta de dinheiro, entre tantas outras situações.
Mas, para quem acha
que o jeitinho é uma prerrogativa dos segmentos mais baixos da sociedade
brasileira engana-se redondamente. Esta técnica de sobrevivência também se
tornou uma técnica de poder incorporada nos mais distintos segmentos sociais. O
paradoxo se apresenta no fato de que numa sociedade que aboliu a escravidão em
13 de maio de 1888, não aboliu seu modos
operandi, expresso tacitamente no ditado popular: “Manda quem pode, obedece
que tem juízo”. A manifestação do jeitinho como modus operandi, como técnica de poder não apenas produz, mas mantém
ao longo dos séculos o apartheid que
historicamente constitui a sociedade brasileira. Os números demonstram como
determinados segmentos e corporações “dão um jeitinho” de manter, senão ampliar
seus interesses privados em detrimento das necessidades da nação.
Em 2017, os lucros
dos bancos com taxas de serviço bancários, entre elas: taxa para manter sua
conta corrente aberta, taxas de emissão e pagamento de boletos bancárias e,
outras taxas, somaram R$ 126, 4 bilhões1. O lucro de 7
dos 10 maiores bancos que operam no país alcançou a cifra de R$ 86 bilhões de
reais2. Empresas (1,8 milhão
de empresas) devem em impostos referentes a contribuições sociais e,
contribuições sobre o lucro líquido R$ 545 bilhões de reais aos cofres públicos3. Ruralistas (proprietários de terra) devem R$
1 trilhão de reais ao governo4. A corporação do judiciário, que pode
ser aquinhoada com um generoso aumento de 16,39% em seus salários, cujo salário
base passará a ser de R$ 39.000,00 reais aproximadamente, caso o Presidente
Temer sancione o aumento, consolidou em 2017 despesas na ordem de R$ 90,8
bilhões de reais5. Este montante respondeu a por 1,4% do Produto
Interno Bruto (PIB) do Brasil, ou o equivalente a 2,6% dos gastos da União, dos
estados e dos municípios. Cada brasileiro pagou naquele ano R$ 437,47 pelos
serviços morosos e pelas decisões às vezes duvidosas do judiciário. Neste valor
estão incluídas as generosas aposentadorias e pensões dos nobres magistrados.
Prezado(a) Leitor(a).
Atenção! Os números apresentados acima são apenas de alguns segmentos e, de uma
corporação da sociedade brasileira. Evite tomar a parte pelo todo.
Provavelmente dívidas bilionárias de setores da iniciativa privada e, rombos
nos cofres públicos em função de interesses de outras corporações sugam ainda
mais o estado brasileiro. Porém, agora acompanhe e procure comparar alguns dos
valores da peça orçamentária da União para 2019 que regulamenta a destinação de
recursos para determinadas áreas da sociedade brasileira. Lembre-se que agora
estamos diante do orçamento geral, dos recursos advindos da sociedade
brasileira e de sua devolução à 210 milhões de brasileiros na forma de
políticas públicas, de programas de governo, de obras públicas, entre outras
formas de retorno. Desenvolvimento Social R$ 745,2 bilhões de reais; Saúde R$
128,9 bilhões; Educação 115,2 bilhões de reais; Ciência e Tecnologia 9,8
bilhões de reais; Segurança pública 13,4 bilhões de reais; Cidades 7,3 bilhões
reais; Agricultura 9,4 bilhões de reais6.
O paradoxal modus operandi do disseminado jeitinho
brasileiro nos coloca diante do questionamento do que significa o rótulo “liberal”
atribuído à composição da matriz econômica do governo eleito em 28 de outubro
de 2018. O liberalismo econômico em sua versão clássica possui um pressuposto
basilar, qual seja: “Igualdade de condições entre os indivíduos de uma
sociedade como ponto de partida”. Isto significa: acesso à educação, à saúde, à
emprego, à salário suficiente para as necessidades básicas, à segurança pessoal
e da propriedade, à financiamentos para o fomento da produtividade, entre
outras questões. A partir deste pressuposto se estabelece as condições para a
livre iniciativa dos indivíduos, sem a excessiva tutela do estado e, por
decorrência a justa medida das relações econômicas reguladas pelo livre
mercado.
Mas, novamente
questiona-se: diante do jeitinho de grupos e corporações, que se locupletam com
a sonegação dos recursos públicos, de corporações que abocanham significativas
fatias dos mesmos recursos, de uma população de indivíduos lançados a própria
sorte, de uma sociedade marcada pela desigualdade, o que significa anunciar-se
no atual contexto como liberal na economia? Este liberalismo moldado pelo modus operandi do jeitinho brasileiro
aponta para a suspeita de que teremos um controle ainda maior do Estado por
parte de determinados grupos e corporações, mantendo a histórica relação da
estrutura social que nos conformou: a casa grande e a senzala.
Jeitinho é sinônimo
de gambiarra. Coisa improvisada. Feita as pressas e de qualquer jeito para
resolver uma determinada situação, ou preservar determinadas condições, senão acordos.
Observemos a gambiarra política em curso. Anuncia-se um governo liberal na
economia. Autoritário no discurso, anunciando “desdeologização” das ideologias
(que pode também significar cerceamento de ideias e concepções de mundo
diversas e diferentes). Reacionário em relação a hábitos, costumes e afirmação
de valores sociais. Anti-sistêmico na política (menosprezando as instituições
partidárias), mas fisiológico na composição das alianças necessárias a
operacionalização do presidencialismo de coalizão a partir do qual governará o
país.
Evidentemente não
desconsideramos o fato de que o Brasil está inserido no conjunto de
transformações mundiais em curso e, que conduzem povos e países a uma guinada a
direita do espectro político. Até aqui tudo certo. Sociedades caminham em ziguezague,
desde os mais remotos tempos e algumas alcançaram e alcançam consensos
adequados. Porém, é aqui que nos diferenciamos de outros povos. Acabamos com a
escravidão. Mas, as premissas da sociedade escravocrata permanecem entre nós.
Extrativista. Autoritária. Violenta. Sem apreço pela meritocracia, articula-se
em corporações para assegurar seu regime de acumulação a expensas dos
interesses e das necessidades públicas. A Jabuticaba é injustamente acusada
para disfarçar a voracidade do jeitinho brasileiro de articular suas
gambiarras. Viva! Estamos inovando as
bases do liberalismo. Será? É neo-liberalismo? Não! Acho que é outra coisa...
Sandro Luiz Bazzanella - Professor de
Filosofia
Fonte:http://jmais.com.br/jabuticaba-ou-da-insustentavel-leveza-do-ser-brasileiro-ii/
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