FRANCO BERARDI VÊ A
EPIDEMIA
DE
DESCORTESIA
Para
filósofo italiano, capitalismo financeirizado multiplica relações incorpóreas.
Estas nos tornam brutais, ao minar nossa condição de lidar com a ambiguidade
humana
Entrevista a Pablo
Esteban, no Página/12
Tradução: André
Langer, do IHU
Imagem: Jean-Michel
Basquiat, Obnoxious Liberals (1982)
O filósofo italiano Franco "Bifo" Berardi tem um sorriso fácil. É professor da Universidade de
Bolonha há um bom tempo, mas antes, quando tinha apenas 18 anos, participou das
revoltas juvenis de 68, fez-se amigo de Félix
Guattari, freqüentou Michel
Foucault, ocupou universidades e foi feliz.
Atualmente, garante que essa possibilidade não existe
mais: os humanos já não imaginam, não sentem, não fazem silêncio, não refletem
ou ficam entediados. Os corpos não se comunicam e, portanto, conhecer o mundo
passou a ser um horizonte impossível. Diante de uma realidade atravessada pelo
surgimento de regimes fascistas – mascarados com balões, pipoca e dentes
brilhantes –, os cidadãos protagonizam uma sociedade violenta, caracterizada
pela “epidemia da descortesia”.
Berardo fundou revistas, criou rádios alternativas e TVs
comunitárias, publicou livros, entre os quais se destacam: A
fábrica de infelicidade (2000), Depois do
futuro (2014) e Fenomenologia
do fim. Sensibilidade e mutação conectiva (2017).
Nesta oportunidade propõe como sobreviver em um cenário
de fascismo emergente, de vertigem e agressividade à ordem do dia.
Eis a entrevista.
Você,
com frequência, apresenta a seguinte frase: “O capitalismo está morto, mas
continuamos vivendo dentro do cadáver”. O que quer dizer com isso?
A vitalidade e a energia inovadora que o capitalismo
tinha até meados do século XX acabou. Hoje ele se transformou em um sistema
essencialmente abstrato; os processos de financeirização da
economia dominam a cena e a produção útil foi substituída. Na medida em que não
se podia pensar o valor de troca sem antes recair no valor de uso, sempre
acreditávamos que o capitalismo era muito ruim, mas promovia o progresso. Hoje,
pelo contrário, não produz nada de útil, apenas se acumula e acumula valor.
Por
que não nos relacionamos mais?
A abstração da comunicação produziu um projeto de troca
de sinais financeiros digitais que, naturalmente, não requer a presença de
pessoas para poder ser feita. Os corpos estão isolados: quanto mais conectados,
menos em comunicação estamos. Refiro-me a uma crítica ao progresso que já foi
discutida tenazmente por Theodor
Adorno e Max
Horkheimer em Dialética do Iluminismo.
Na introdução do livro, eles assinalam que o pensamento crítico e a democracia
assinam sua sentença de morte se não conseguirem entender as consequências
sombrias do iluminismo. Se não entendermos que a maioria da população reage de
maneira temerosa à mudança, tudo acabará muito mal.
Em
que sentido?
Nós acreditávamos que Adolf Hitler tinha perdido, mas
isso não é verdade. Ele perdeu uma batalha, mas ainda ganha suas guerras. Os
líderes Rodrigo
Duterte (Filipinas), Jair
Bolsonaro, Donald Trump, Matteo
Salvini (Itália) e Víktor Orbán (Hungria)
representam os sinais de um nazismo emergente e triunfante em todo o mundo.
Por
que vivemos com tanta violência e agressividade?
Eu posso responder reproduzindo uma frase que li no blog
de um jovem de 19 anos: “Desde o meu nascimento tenho interagido com entidades
automáticas e nunca com corpos humanos. Agora que estou na minha juventude, a
sociedade me diz que tenho que fazer sexo com pessoas, que são menos
interessantes e muito mais brutais que as entidades virtuais”. Isso quer dizer
que ao nos relacionarmos – cada vez mais – com autômatos,
perdemos a nossa expertise, a capacidade de lidar com a ambiguidade dos seres
humanos, e nos tornamos brutais. Com efeito, olhamos com olhos mais simpáticos
para as máquinas. A violência sexual é a falta de aptidão do sexo para falar.
Na verdade, vivemos falando de sexo, mas o sexo não fala. Não conseguimos
compreender o prazer do desejo de cortejar, da ironia, da sedução e, nesse
sentido, a única coisa que resta quando raspamos o fundo do tacho é a
violência, a apropriação brutal do outro.
Se
a capacidade emocional foi perdida e a de raciocinar está desaparecendo, o que
nos resta como Humanidade?
Não há saída para o nacional-socialismo global. A única
coisa que resta como resposta é o trauma, a partir da readaptação do cérebro
coletivo. O problema fundamental não é político, mas cognitivo: a vitória de
Bolsonaro não representa apenas uma desgraça para o povo brasileiro; é também
uma declaração de morte para os pulmões da Humanidade. Eu digo isso como
asmático: a destruição da
Amazônia que está sendo preparada implica uma verdadeira
catástrofe. Enquanto o fim de nossos recursos está se aproximando, a evolução
do conhecimento social, algumas vezes, requer dois ou mais séculos.
Se
já não conseguimos mais imaginar, será impossível construir futuros.
É claro, se não imaginamos não conseguimos agir. A
imaginação depende do que sabemos, das nossas trajetórias e experiências e,
sobretudo, da nossa percepção empática do entorno e do corpo dos outros.
Emocionalmente, nós não vivemos mais de maneira
solidária. Os jovens de hoje estão sozinhos, muito solitários. Precisamos
construir um movimento erótico para curar o cérebro coletivo. Trata-se de
reunificar o corpo e o cérebro, a emoção e o entendimento. Daqui, #NiUnaMenos é
a única experiência global que, na minha perspectiva, recupera estes vínculos.
Devemos aprender com esse fenômeno e estendê-lo a outras áreas, recuperar
direitos e voltar a viver a vida.
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