O GÊNERO DA
FILOSOFIA
Pintura a óleo ‘Aspásia rodeada de filósofos gregos’, de Michel Corneille. UIG / GETTY IMAGES
Não é melhor aceitar a lista convencional de
filósofos consagrados e mostrar, por meio dela, a enorme parcialidade do mundo?
Como abordar a história da filosofia
a partir de uma perspectiva de gênero? De um tempo para cá, tem havido
propostas para recuperar filósofas que não receberam atenção suficiente ou
nenhuma. É reconfortante encontrar agora nos novos cânones mulheres como
Aspásia, Hipátia, Catarina de Alexandria, Hildegard von Bingen,
Wollstonecraft, Stein, Arendt, De Beavouir e Weil,
e sua mera inclusão repara uma parte da injustiça histórica sobre a qual está
construído o nosso mundo, e também o mundo da historiografia filosófica. De
qualquer forma, o fato de a lista de vozes femininas silenciadas ser muito
curta não se deve apenas a que quem fez essa lista não reparasse em filósofas
valiosas, mas principalmente a que ao longo da história as mulheres têm tido
muito poucas oportunidades de acesso a lugares de onde emitir sua voz.
Devemos reconhecer, no entanto, que a
própria ideia de uma lista é bastante patriarcal, como se o curso da história
(neste caso, da história da filosofia) fosse uma relação gloriosa de figuras de
destaque, o que, em um mundo protagonizado pelos homens, só poderia resultar em
um ranking masculino. O conceito de superioridade, preeminência ou excelência é
muito falocêntrico. Para ter uma visão mais inclusiva do nosso passado, a meu
ver, a primeira perspectiva que deve ser corrigida é precisamente esta de
conceber a história do pensamento como uma sucessão de momentos estelares, de
pensadores destacados, desconsiderando outras formas de pensar mais horizontais
e compartilhadas. E se aproveitássemos a ocasião para entender o mundo mais do
ponto de vista de nossas práticas culturais do que como uma sucessão
descontínua de indivíduos célebres meditando sozinhos? Se nos limitássemos a
modificar a lista, poderíamos acabar negligenciando a verdadeira tarefa
crítica; seria algo equivalente a que tivéssemos achado que o sufrágio feminino
resolvia toda a batalha dos direitos das mulheres.
Se, apesar de tudo, insistíssemos em
lutar pelo cânone, então deveríamos ter em mente que uma “lista paritária” de
homens e mulheres da história da filosofia teria como efeito perverso adoçar a
desequilibrada realidade de um mundo que foi pensado por e para os homens. Será
que corrigimos a história de imposição, submissão e exclusão dando destaque a
quem de fato não o teve porque não pôde ter acesso aos lugares – academias,
cátedras, universidades − nos quais se decidia esse protagonismo? Duvido muito
que a melhor maneira de combater uma desigualdade de agora em diante seja
contar o passado como se essa desigualdade não tivesse ocorrido. Não fazemos
justiça às vítimas se, através da magia de uma historiografia militante, nós as
transformamos em atores principais de um passado no qual, infelizmente, não
foram protagonistas.
Boas intenções não são uma metodologia
suficiente para as ciências humanas e sociais. Não seria melhor aceitar, com as
modificações necessárias, a lista convencional e mostrar, por meio dela, a
enorme parcialidade de um mundo pensado pelos homens? A tarefa de uma filosofia
inclusiva que incorpore a perspectiva de gênero tem menos a ver com quem a fez
ou deixou de fazê-la e mais com o conceito de filosofia que tem predominado ao
longo da história. A história da filosofia não é incompleta pelo fato de
aparecerem poucas mulheres nela; incompleta é a realidade que essa lista de
homens representa e, principalmente, o que a maior parte desses filósofos
pensava − não apenas das mulheres em particular, mas também de uma sociedade
construída a partir da exclusão da mulher. Não me refiro tanto à misoginia
expressa de Aristóteles, Santo Agostinho, Rousseau, Freud, Nietzsche,
Schopenhauer ou Marx. O mais importante é a exclusão implícita da mulher que o
pensamento desses filósofos promove. Ao estudar os filósofos consagrados,
podemos entender por que nossa sociedade foi construída com uma ideia de
sujeito e de poder que não podia deixar de excluir metade da humanidade. Neles,
a falsa universalidade da razão, a impossibilidade de neutralidade e as
limitações de uma subjetividade mutilada se tornam visíveis. A discriminação,
antes de ser uma prática social, é uma forma de pensar. Sem querer, talvez
esses filósofos mostrem, melhor do que muitas filósofas redescobertas, que
nossa cultura patriarcal se deve a certas formas de entender o público, o
poder, a propriedade, o sujeito e a própria racionalidade. Se estou certo,
então a perspectiva de gênero sobre nossa história da filosofia deveria ser
levada a cabo examinando criticamente o modo como seus verdadeiros
protagonistas descreveram um mundo incompleto e forneceram o arcabouço
conceitual que justificava essa empobrecedora exclusão. Contar como eram
realmente as coisas e não da maneira como gostaríamos que tivessem sido é o
primeiro passo para que, no futuro, elas sejam de outra forma.
Daniel Innerarity é catedrático
de Filosofia Política e pesquisador do Ikerbasque, na Universidade do País
Basco. Acaba de publicar na Espanha ‘Comprender la Democracia’ (Gedisa)
@daniInnerarity
Fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/12/17/cultura/1545063946_645737.html
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