A LÓGICA SENIL DA PROPRIEDADE PRIVADA
Num tempo de recursos escassos, permitir que terra
e riquezas sejam controladas por muito poucos — e herdadas — é roubar as novas
gerações. Está na hora das Propriedades Comuns.
Os jovens que tomaram
as ruas de centenas de cidades na última semana estão certos: seu futuro está
sendo roubado. A economia é como os esquemas fraudulentos de “pirâmide”, que
despeja o peso de suas obrigações nos jovens e nos que ainda não nasceram. Seu crescimento
atual depende de roubo intergeracional.
No coração
do capitalismo há uma suposição crucial, porém quase nunca examinada: cada um
tem direito a uma fatia dos recursos globais tão grande quanto seu dinheiro
pode comprar. Você pode comprar tanta terra, tanto espaço atmosférico, tantos
minerais, tanta carne e peixe quanto puder pagar, não importando quem será
privado destes bens. Se você puder pagar, possuirá cadeias de montanhas e vales
férteis. Poderá queimar tanto combustível quanto queira. Cada real, ou dólar,
assegura um certo direito sobre a riqueza natural do mundo. Mas por que? Que
princípio de justiça faz equivaler os números em sua conta bancária a um
direito de possumir o tecido da Terra? A grande maioria das pessoas a quem
coloco esta questão ficam perplexas diante dela.
A
justificativa padrão retorna ao Segundo Tratado de
Governo, de John Locke. Publicado em 1689. Ele sustentava que
se você adquire direitos a possuir riqueza natural quando combina, a esta,
trabalho: o fruto que você colhe, os minerais que você escava do chão e a terra
que você ara tornam sua propriedade exclusiva, porque você pôs seu trabalho
ali.
Este
argumento foi desenvolvido pelo jurista William Blackstone no século XVIII.
Seus livros foram influentes ao extremo na Inglaterra, Estados Unidos e outras
partes. Ele afirmava que o direito de um homem a “dominação única e despótica”
sobre a terra foi estabelecido pela pessoa que primeiro a ocupou, para produzir
comida. Este direito poderia ser trocado por dinheiro. Esta é a base lógica
universal para o grande esquema de pirâmide. E não faz sentido algum.
Para
começar, ela assume um Ano Zero. Neste ponto arbitrário, uma pessoa poderia
adentrar um pedaço de terra, somar seu trabalho a ela e reivindicá-la como sua.
Locke tomou os Estados Unidos como exemplo da lousa em branco sobre a qual as
pessoas poderiam estabelecer seus direitos. Mas a terra (como admitiu
Blackstone) só se tornou uma lousa em branco por meio do extermínio dos que
nela viviam.
O
colonizador podia, além de apagar todos os direitos anteriores, eliminar os
futuros. Ao misturar uma única vez seu trabalho à terra, você e seus
descendentes adquirem o direito a fazê-lo perpetuamente, até decidirem
vendê-la. Desse modo, você evita que todos os futuros reivindicantes tenham
acesso à riqueza natural pelos mesmos meios.
Ainda
pior: segundo Locke, “seu” trabalho inclui o daqueles que trabalham para você.
Mas por que as pessoas que trabalham não deveriam ser aquelas que adquirem os
direitos? Só é compreensível, quando você percebe que, ao usar o termo “homem”,
Locke refere-se não a toda a humanidade, mas aos proprietários europeus.
Aqueles que trabalhavam para eles não tinham tais direitos. Significava, no
final do século XVII, que os direitos sobre a terra em larga escala só podiam
ser justificados, sob aquele sistema, pela propriedade de escravos. Talvez
inadvertidamente, Locke produziu uma declaração dos direitos humanos dos
proprietários de escravos…
Mesmo que
estas objeções pudessem de algum modo ser afastadas, que poder tem o trabalho
de transformar, de forma mágica, tudo o que toca em propriedade privada? Por
que não estabelecer que o direito às riquezas naturais é dado pelo ato de
urinar sobre elas? Os argumentos que defendem nosso sistema econômico são
frágeis e ilógicos. Raspe-os e você verá que toda a estrutura está fundada em
saque: pilhagem contra outras nações, outras espécies vivas e o futuro.
Ainda
assim, com base nestes absurdos, os ricos arrogam-se o direito de comprar a
riqueza natural de que outros dependem. Locke advertia que esta justificativa
só funciona se “há [terra] suficiente, e igualmente boa, deixada em comum a
outros”. Hoje, quer estejamos falando sobre terra, a atmosfera, os sistemas
vivos, filões de minérios ou a maior parte das outras formas de riqueza
natural, é claro que não há nada disso “suficiente e igualmente bom” deixado em
comum a outros. Tudo o que tomamos para nós mesmos, tomamos de outro alguém.
É possível
torcer este sistema. É possível tentar modificá-lo. Mas é impossível torná-lo
justo.
O que
deveria tomar seu lugar? Parece-me que o princípio fundador de qualquer sistema
justo é que aqueles que ainda não vivem terão, ao nascer, os mesmos direitos
daqueles que estão vivos agora. À primeira vista, isso não parece mudar nada: o
primeiro artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece que
“todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Mas
esta sentença não tem significado quase algum, porque nada na declaração impede
uma geração de roubar da seguinte. O artigo que falta deveria ser mais ou menos
assim: “Cada geração terá igual direito ao desfrute da riqueza natural”.
É um
princípio difícil de contestar, mas parece mudar tudo. Ele nos diz, de
imediato, que nenhum recurso renovável deveria ser usado além de sua taxa de
reposição. Nenhum recurso não-renovável deveria ser usado sem que fosse
inteiramente reciclado e reempregado. Isso leva inexoravelmente a duas grandes
mudanças: uma economia circular, em que os materiais nunca se perdem e o fim da
combustão dos fósseis.
Mas e a
própria Terra? Neste mundo densamente povoado, qualquer propriedade sobre a
terra impede a propriedade de outros. O artigo 17n da Declaração Universal é
uma contradição em termos. Ele afirma que “todos têm o direito a possuir propriedades”.
Mas ao não estabelecer limites sobre o quanto uma pessoa pode possuir, ele
assegura que todos não terão este
direito. Seria possível alterá-lo para algo assim: “Todos têm o direito de usar
propriedades sem infringir os direitos de outros a usar propriedades”. A
implicação é que todos os nascidos hoje adquiririam um direito igual de uso, ou
precisariam ser compensados por sua exclusão. Uma forma de implementar este
princípio é por meio de impostos muito relevantes sobre a terra, pagos a um
fundo de riqueza soberano. Estaríamos alterando e restringindo o conceito de
propriedade, e assegurando que as economias tendessem à distribuição, em vez da
concentração.
Estas
sugestões simples despertam mil questões. Não tenho todas as respostas. Mas
tais assuntos deveriam ser tema de diálogo e debate em toda parte. Evitar a
catástrofe ambiental e o colapso sistêmico significa desafiar nossas crenças
mais profundas e menos examinadas.
Publicado
19/03/2019 às 19:44 - Atualizado 19/03/2019 às
Fonte: https://outraspalavras.net/alemdamercadoria/a-logica-senil-da-propriedade-privada/
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