HAVERÁ VIDA ALÉM DO PIB?
Cada vez mais pensadores –
inclusive economistas – consideram que o velho indicador de “riquezas” mede
apenas dinheiro (e oculta desigualdade, devastação e alienação). Mas… há
alternativas? Roteiro para um debate indispensável
Crescer por crescer é a filosofia da célula cancerosa.
O objetivo
da economia, o cuidado com a nossa casa, consiste essencialmente em assegurar o
bem-estar das famílias sem prejudicar as gerações futuras. Isso exige
inteligência no uso dos recursos que, por sua vez, exige formas adequadas e
transparentes de fazer as contas. O PIB, como todos devem saber, é o produto
interno bruto. Para o comum dos mortais, que não faz contas macroeconômicas,
trata-se da diferença entre aparecerem novas oportunidades de emprego (PIB em
alta) ou ameaças de desemprego (PIB em baixa). Para o governo, é a diferença
entre ganhar uma eleição e perdê-la: não à toa o governo britânico acrescentou
ao PIB as estimativas do comércio de drogas e da prostituição, para poder dizer
que “estamos crescendo”. Para os jornalistas, é uma ótima oportunidade de dar a
impressão de que entendem do que se trata, mas reduzir a questão do
desenvolvimento a uma cifra escancara a porta para “interpretações”. Para os
que se preocupam com a destruição do meio-ambiente, é uma causa de desespero,
já que a nossa principal conta esqueceu este detalhe. Para o economista que
assina o presente artigo, é uma oportunidade para desancar o que é uma
contabilidade clamorosamente deformada, e apresentar algo que funcione.
Peguemos o
exemplo de uma alternativa contábil chamada FIB. Trata-se simplesmente de um
jogo de siglas, Felicidade Interna Bruta. Tem gente que prefere felicidade
interna líquida, questão de gosto. O essencial é que inúmeras pessoas no mundo
e técnicos de primeira linha, nacional e internacional, estão cansados de ver o
comportamento econômico ser calculado sem levar em conta – ou muito
parcialmente – os interesses da população e a sustentabilidade ambiental. Como
é possível dizer que a economia vai bem, ainda que o povo vá mal? Então a
economia serve para quê?
No Brasil
a discussão entrou com força ainda nos anos 1990 a partir do cálculo do IDH
(Indicadores de Desenvolvimento Humano), que inclui, além do PIB, a avaliação
da expectativa de vida (saúde) e do nível da educação. Na esfera internacional,
temos dois livros básicos: Reconsiderar a riqueza,
de Patrick Viveret, e Os novos indicadores de riqueza,
de Jean-Gadrey e Jany-Catrice. Há inúmeras outras iniciativas em curso, que
envolvem desde o Indicadores de Qualidade do Desenvolvimento do IPEA, até os
sistemas de informação para seguir o desenvolvimento local, como o Atlas
Municipal do PNUD, os sistemas integrados de indicadores de qualidade de vida
nas cidades na linha do IRBEM do movimento Nossa São Paulo. Temos evidentemente
o excelente relatório, de 2009, bastante demolidor, assinado por nada menos que
Amartya Sem, Joseph Stiglitz e Jean Paul Fitoussi. E, muito recentemente, temos
o aporte fundamental de Kate Raworth, como veremos adiante. O essencial, para
nós, é que estamos refazendo as nossas contas. Não é secundário, nem “técnico”,
nem mistério de economistas: contabilizar de forma adequada o que fazemos
constitui a bússola que nos permite nos orientarmos como sociedade. E se a
bússola aponta uma direção errada…
A destruição ambiental
As
limitações do PIB aparecem facilmente através de exemplos. Um paradoxo
levantado por Viveret, por exemplo, é que quando o navio petroleiro Exxon
Valdez naufragou nas costas do Alaska, foi necessário contratar inúmeras
empresas para limpar as costas, o que elevou fortemente o PIB da região. Mais
recentemente, o desastre da British Petroleum(BP) no Golfo do México contribuiu
para o PIB americano. O mesmo raciocínio pode ser aplicado aos desastres de
Mariana e Brumadinho. Como pode a destruição ambiental aumentar o PIB?
Simplesmente porque o PIB calcula apenas o volume de atividades econômicas, não
calcula se elas são úteis ou nocivas. O PIB mede o fluxo dos meios, não o
atingimento dos fins. Na metodologia atual, a poluição aparece como sendo ótima
para a economia, e o IBAMA como o vilão que impede a economia de avançar. Nessa
lógica, as pessoas que jogam pneus e fogões velhos no rio Tietê, obrigando o
Estado a contratar empresas para o desassoreamento da calha, contribuem para a
produtividade do país. No Brasil, os negociantes da agroindústria avançam na
Amazônia; na Indonésia, liquidam as florestas para produzir combustível “limpo”
para a Europa; e falam em alimentar o mundo e em dinamizar a economia. Isto é
conta?
A conta do capital natural
Mais grave
ainda é o PIB não levar em conta a redução dos estoques de bens naturais do
planeta. Quando um país explora seu petróleo, isto é apresentado como
eficiência econômica, pois aumenta o PIB. A expressão “produtores de petróleo”
é interessante, pois nunca ninguém produziu petróleo: é um estoque de bens
naturais, e a sua extração, se der lugar a atividades importantes para a
humanidade, é positiva; mas sempre devemos levar em conta que estamos reduzindo
o estoque de bens naturais que entregaremos aos nossos filhos.
Desde
2003, por exemplo, o Banco Mundial compreende extração de petróleo como
descapitalização e não como aumento da riqueza de um país. Extração de petróleo
está na conta da poupança nacional e não na conta do PIB.
Desde
2003, por exemplo, o Banco Mundial já não considera mais extração de petróleo
como o aumento da riqueza de um país, mas sim como sua descapitalização. Isto é
elementar, se uma empresa ou um governo apresentasse sua contabilidade no fim
de ano sem levar em conta a variação de estoques, teria as suas contas
rejeitadas. Não levar em conta o consumo de bens não renováveis que estamos
dilapidando, de forma radical, e a organização das nossas prioridades. Em
termos técnicos, o PIB é uma contabilidade grosseiramente errada, que leva a um
desastre planetário em futuro não distante.
Custos que aumentam o PIB
A
diferença entre os meios e os fins na contabilidade aparece claramente nas
opções de saúde. A Pastoral da Criança, por exemplo, desenvolve um amplo programa
de saúde preventiva, atingindo milhões de crianças até 6 anos de idade através
de uma rede de cerca de 450 mil voluntárias. São responsáveis, nas regiões onde
trabalham, por 50% da redução da mortalidade infantil, e 80% da redução das
hospitalizações. Com isto, menos crianças ficam doentes, o que significa que se
consome menos medicamentos, que se usa menos serviços hospitalares, e que as
famílias vivem mais felizes. Mas o resultado do ponto de vista das contas
econômicas é completamente diferente: ao cair o consumo de medicamentos, o uso
de ambulâncias, de hospitais e de horas de médicos, reduz-se também o PIB. Mas
o objetivo é aumentar o PIB ou melhorar a saúde (e o bem-estar) das famílias?
Todos
sabemos que a saúde preventiva é muito mais produtiva, em termos de
custo-benefício, do que a saúde curativa-hospitalar. Mas, se nos colocarmos do
ponto de vista de uma empresa com fins lucrativos, que vive de vender
medicamentos ou de cobrar diárias nos hospitais, é natural que prevaleça a
visão do aumento do PIB e do aumento do lucro. É a diferença entre os serviços
de saúde e a indústria da doença. Na visão privatista, a falta de doentes
significa falta de clientes. Nenhuma empresa dos gigantes chamados
internacionalmente de “big pharma” investe seriamente em vacinas, e muito menos
em vacinas de “doenças de pobres” como a malária. Privilegiam em particular
doenças degenerativas de idosos, autênticas minas de ouro. Sobre como funciona
esta deformação de opções Marcia Angell, aposentada editora do New
England Journal of Medicine, escreveu um livrinho que é uma
pérola, A verdade sobre os laboratórios
farmacêuticos. Ver este ângulo do problema é importante, pois
nos faz perceber que a discussão não é inocente, e os que clamam pelo progresso
identificado com o aumento do PIB querem, na realidade, maior dispêndio de
meios, e não melhores resultados. Pois o PIB não mede resultados, mede o fluxo
dos meios.
Medindo os meios em vez dos resultados
É
igualmente importante levar em consideração que o trabalho das 450 mil voluntárias
da Pastoral da Criança não é contabilizado como contribuição para o PIB. Para o
senso comum, isto parece uma atividade que não é propriamente econômica, como
se fosse um esparadrapo social. Os gestores da Pastoral, no entanto, já
aprenderam a corrigir a contabilidade oficial. Contabilizam a redução do gasto
com medicamentos, que se traduz em dinheiro economizado na família, e que é
liberado para outros gastos. Nesta contabilidade corrigida, o não-gasto aparece
como aumento da renda familiar. As noites bem dormidas quando as crianças estão
bem representam qualidade de vida, coisa muitíssimo positiva, e que é afinal o
objetivo de todos os nossos esforços. O fato da mãe ou do pai não perderem dias
de trabalho pela doença dos filhos também ajuda a economia.
A
importância desta dimensão da contabilidade é enorme, na medida em que
rapidamente, no mundo, o centro de gravidade das atividades produtivas se
desloca da produção física de bens e serviços para as chamadas políticas
sociais, como saúde, educação, cultura, segurança e semelhantes, bens e
serviços essencialmente de consumo coletivo. Um exemplo ajuda: no Canadá, onde
a saúde constitui um serviço público gratuito e universal, o custo anual é de
3.400 dólares por habitante. Nos Estados Unidos, onde domina a saúde como
negócio, o custo é de 9.400 dólares, com qualidade incomparavelmente mais
baixa. É claro que a irracionalidade do sistema americano, baseado no out-of-pocket, saúde
como serviço comercial, aumenta o PIB. Hoje os serviços de saúde nos Estados
Unidos atingem 20% do PIB, tornando-se inclusive o centro de todos os debates
eleitorais. Mas o que queremos, é mais saúde ou mais PIB? O que
deveríamos estar medindo é a produtividade sistêmica de um setor, em termos de
melhores resultados para a sociedade pelo menor custo possível.
Escassez que aumenta o PIB
Uma outra
forma de aumentar o PIB é reduzir o acesso a bens gratuitos. Na Riviera de São
Lourenço, perto de Santos, as pessoas não têm mais livre acesso à praia, a não
ser através de uma série de enfrentamentos constrangedores. O condomínio
contribui muito para o PIB local, pois as pessoas têm de gastar bastante para
ter acesso ao que antes acessavam gratuitamente. Quando as praias são
gratuitas, não aumentam o PIB. Hoje os painéis publicitários nos “oferecem” as
maravilhosas praias e ondas da região, como se as tivessem produzido. A busca
de se restringir a mobilidade, o espaço livre de passeio, o lazer gratuito
oferecido pela natureza, gera o que hoje chamamos de “economia do pedágio”, de
empresas que aumentam o PIB ao restringir o acesso aos bens. Hoje os parques de
São Paulo estão todos ameaçados, não por racionalidade econômica, mas por
interesse de negociatas. Teremos uma vida mais pobre, e um PIB maior. Este
ponto é particularmente grave no caso do acesso ao conhecimento. Trata-se de
uma área onde há excelentes estudos recentes, como A Era do
Acesso e A sociedade de custo marginal zero,
de Jeremy Rifkin; The Future of Ideas, de
Lawrence Lessig; O imaterial, de André
Gorz, ou ainda Wikinomics, de Don
Tapscott. Na era do conhecimento, as nossas universidades de linha de frente
trabalham com xerox de capítulos isolados do conjunto da obra, autênticos ovnis
científicos, quando o MIT, principal centro de pesquisas dos Estados Unidos,
disponibiliza os cursos na íntegra gratuitamente online, no quadro do OpenCourseWare (OCW).
Na China prevalece o CORE (China Open resources for Education).
Mas ainda predominam os copyrights, que incidem sobre as obras até 90 anos após
a morte do autor. E se fala naturalmente em “direitos do autor”, quanto se
trata essencialmente de direitos das editoras, dos intermediários (1).[i] No
Brasil, teremos acesso aberto às obras de Paulo Freire a partir de 2050.
É
impressionante investirmos por um lado imensos recursos públicos e privados na
educação, e por outro lado empresas tentarem restringir o acesso às pesquisas.
O objetivo é assegurar lucro das editoras, aumentando o PIB, ou termos melhores
resultados na formação, facilitando e incentivando (em vez de cobrar) o
aprendizado? Trata-se, aqui também, da economia do pedágio, de impedir a
gratuidade que as novas tecnologias permitem por meio da pesquisa temática e o
acesso online, a pretexto de proteger a remuneração dos produtores de
conhecimento.
Um
documentário básico de Jason Schmitt, Paywall:
the business of scholarship, de setembro de 2018, ajuda
bastante a entender a dimensão das restrições à pesquisa artificialmente
criadas, travando o seu desenvolvimento. Hoje o sistema de intermediação de
publicações científicas se tornou um negócio de 25 bilhões de dólares, ganhos
por grupos como Elsevier que não têm nenhuma contribuição senão o de negociar
preços, apoiando-se na obrigação dos pesquisadores ganharem pontos (impact
factor). É um oligopólio que a pretexto de excelência científica
trava o acesso. Os custos de intermediação impressionantes e lucros da ordem de
35% ao ano claramente aumentam o PIB no curto prazo, mas travam os efeitos
multiplicadores da generalização do conhecimento científico-tecnológico.
Pelo
contrário, os sistemas abertos, na linha do open
access, como ArXiv, Plos, Sci-Hub e outras iniciativas que
asseguram acesso gratuito online à ciência de ponta levam a que muitos mais
cientistas possam expandir a sua produtividade, em vez de reinventar a roda. A
generalização do acesso à ciência gera evidentemente efeitos multiplicadores,
em particular para as universidades e países que estão fora do clube dos ricos.
Nos EUA já são 15 mil cientistas que boicotam as chamadas revistas indexadas.
Nesta era de transformações tecnológicas, a batalha pela difusão das pesquisas,
em particular das que foram financiadas com recursos públicos, é fundamental.
Margens de lucro deste montante sobre o que não precisaram produzir
caracterizam um rentismo absurdo. O imenso aumento de produtividade que
significaria o processo aberto de colaboração científica é perdido. O pedágio
aumenta o PIB, mas trava o desenvolvimento.
A confusa medição da economia intangível
O
argumento orienta a pesquisa de Haskel e Westlake, no seu Capitalism
without Capital, que caracteriza a nossa era de economia
imaterial, em que o conhecimento tornou-se o principal fator de produção: “O
nosso argumento central neste livro é que há algo de fundamentalmente diferente
no caso do investimento intangível, e que entender a firme transição para o
investimento intangível nos ajuda a entender alguns dos desafios chave que hoje
enfrentamos: inovação e crescimento, desigualdade, o papel da gestão bem como a
reforma financeira e de políticas (policy).
Sustentaremos aqui que há duas grandes diferenças com os ativos intangíveis.
Primeiro, é que a maior parte dos sistemas de medição os ignora. Há boas razões
para isso, mas à medida que os intangíveis têm se tornado mais importantes,
isso significa que hoje estamos tentando medir o capitalismo sem contar todo o
capital. Segundo, as propriedades econômicas básicas dos intangíveis fazem com
que uma economia densa em intangíveis se comporte de maneira diferente de uma
economia densa em tangíveis. ”(7) Esta inadequação da metodologia do cálculo do
PIB à economia do conhecimento moderno é mais um defeito estrutural de
importância crescente. Estamos falando do principal eixo de atividades da
economia moderna. Na produção e venda de uma bicicleta, há registros e
contabilização das transações. A rede mundial de pesquisa do genoma, em que os
resultados são compartilhados de forma colaborativa sem intermediação, escapa
simplesmente ao radar. O Wikinomics de Don
Tapscott, mostra os inúmeros setores envolvidos. Arun Sundararajan, em Economia
Compartilhada, elenca as inúmeras iniciativas no mundo, muito
além do Uber e Airbnb que aparecem na mídia. Sim, o nome do autor é assim
mesmo, nem todo mundo chama Alberto Lopes.
O tempo esquecido
Outra
deformação deste tipo de conta é a não contabilização do tempo das pessoas. No
nosso ensaio Democracia Econômica,
inserimos um capítulo “Economia do Tempo”. Está disponível online, e
gratuitamente. O essencial é que o tempo é por excelência o nosso recurso não
renovável. Quando uma empresa nos obriga a esperar na fila, ela faz um cálculo:
a fila é custo do cliente, não se pode abusar demais. Mas o funcionário é custo
da empresa, e, portanto, vale a pena abusar um pouco. Isto se chama
externalização de custos. Imaginemos que o valor do tempo livre da
população economicamente ativa seja estimado em 5 reais a hora. Ainda que a
produção de automóveis represente um aumento do PIB, as cerca de 2 horas
diárias perdidas pelo paulistano pelo encalacramento do trânsito poderiam ser
contabilizadas. Com 6 milhões de pessoas que se deslocam diariamente para o
trabalho em São Paulo, são 60 milhões de reais. A partir desta conta,
passamos a olhar de outra forma a viabilidade econômica da construção de metrô
e de outras infraestruturas de transporte coletivo. E são perdas que permitem
equilibrar as opções pelo transporte individual: produzir carros realmente
aumenta o PIB, mas é uma opção que só é válida enquanto apenas minorias têm
acesso ao automóvel. Hoje São Paulo anda em primeira e segunda, gastando com o
carro, com a gasolina, com o seguro, com as doenças respiratórias, com o tempo
perdido. Os quatro primeiros itens aumentam o PIB. O último, o tempo perdido,
não é contabilizado. Aumenta o PIB, reduz-se a mobilidade, e em particular
gasta-se inutilmente o nosso tempo de vida. Mas o carro afinal era para quê?
Esqueceram de medir a riqueza
O PIB mede
o fluxo anual, esqueceu de medir a riqueza acumulada. Dividir o PIB do país
pela população nos vai dar uma boa aproximação da renda per capita, por pessoa.
Aliás o Brasil está na média mundial, cerca de 11 mil dólares anuais, o
significa que o que produzimos hoje permitiria assegurar uma renda razoável de
10 mil reais por mês por família de 4 pessoas. Nosso problema não é pobreza, é
caos distributivo. Estamos entre os 10 países mais desiguais do planeta em
termos de renda. Mas uma coisa é o fluxo, a renda que me chega a cada ano, e a
riqueza acumulada: a minha casa, o meu carro, a minha poupança constituem o meu
estoque de riqueza. Tirando as dívidas, trata-se da riqueza domiciliar líquida (net
household wealth).
Só
recentemente começamos a medir isso, e é espantoso ver a que ponto a
desigualdade se torna mais visível. No Brasil, 6 pessoas têm mais riqueza
acumulada do que a metade mais pobre da população, 105 milhões de pessoas. O
PIB naturalmente não mede isso: mede o fluxo, não o estoque. No mundo,
dependemos do Crédit Suisse, um grande banco internacional, para entender o
tamanho do desastre: nas cifras apresentadas em Davos, em janeiro de 2019,
constatamos que, em 2017, 26 pessoas no mundo tinham mais riqueza acumulada do
que a metade mais pobre da população mundial. Visto de outra forma, 1% mais
rico tem mais riqueza do que os 99% seguintes. Produziram isso? É uma ONG, a
Oxfam, que baseada nos dados do Crédit Suisse (administra fortunas, sabe do que
fala) nos apresenta os dados sistematizados, permitindo abrir os olhos das
pessoas para o drama que se aprofunda. Os dois principais problemas que afligem
o planeta – a destruição ambiental e a desigualdade explosiva – simplesmente
não aparecem no PIB. Larry Elliott, do Guardian, que acompanhou as discussões
das elites em Davos (2)[ii],
constata que “a economia no seu sentido tradicional é inútil quando se trata de
enfrentar os problemas urgentes que precisam ser resolvidos.”
A busca de alternativas
Alternativas?
Sem dúvida, e estão surgindo rapidamente. Quando o PIB foi criado nos anos
1930, e generalizado ao permitir o seguimento da reconstrução da Europa após a
II Guerra mundial, medir o volume de ferro e de cimento, de certa forma,
refletia adequadamente os avanços. Hoje, porém, os limites do PIB são
evidentes. Não haverá o simples abandono do PIB, e sim a compreensão de que ele
mede apenas um aspecto, e de forma muito limitada, que é o fluxo de uso de
alguns meios produtivos. Mede, de certa forma, a velocidade da máquina. Não
mede para onde vamos, só nos diz se estamos indo depressa ou devagar. Não
responde aos problemas essenciais que queremos acompanhar: estamos produzindo o
quê, com que custos, com que prejuízos (ou vantagens) ambientais, e para quem?
Aumentarmos a velocidade sem saber para onde vamos não faz sentido. Contas
incompletas são contas erradas, porque dão uma falsa impressão de avanços,
quando não avaliamos de que lado está o progresso.
Em 2009,
uma comissão orientada por Joseph Stiglitz, Amartya Sen e Jean-Paul Fitoussi
apresentaram um relatório, Report by the
Commission on the measurement of Economic Performance and Social Progress,
abertamente crítico da presente forma de medida do progresso econômico e
social. Ainda que não apresentando uma proposta fechada, o relatório acabou
traçando os pontos de referência de uma nova contabilidade nacional. De forma
geral, a visão consiste em resgatar as dimensões das contas nacionais que
melhor representam os interesses da sociedade: “Já é tempo de deslocar o nosso
sistema de medição das medidas da produção econômica para a medida do bem-estar
das pessoas. E as medidas do bem-estar deverão ser colocadas no contexto da
sustentabilidade” (3).[iii] Portanto,
do foco de medição da produção passamos para o foco no resultado final, a
qualidade de vida, mas sustentável em termos das futuras gerações. O social e o
ambiental tornam-se o eixo organizador da informação.
Relativamente
ao PIB, no relatório Stiglitz, a cifra central alternativa seria a renda
nacional disponível líquida (net national disposable income),
cifras que uma vez desagregadas para a perspectiva domiciliar permitem avaliar
melhor o impacto econômico para a sociedade. Há um deslocamento, em termos do
peso relativo dos setores produtivos, com maior atenção para as áreas hoje
muito mais centrais e difíceis de mensurar, como saúde, cultura e educação O
ponto maior de atenção passa a ser a renda domiciliar, o que permite dar melhor
visibilidade às condições de vida das famílias. A questão chave da desigualdade
entra para o primeiro plano, com uma contabilidade que reflita efetivamente a
distribuição. A contas deverão incluir as atividades não monetárias.
Um avanço?
Sem dúvida, mas ainda estamos longe de um sistema articulado e transparente de
contabilização dos nossos progressos. O relatório serviu em todo caso para
recolocar a discussão do PIB na pauta. Uma imagem utilizada pelos autores, a de
que estamos pilotando uma sociedade complexa com apenas um indicador de
velocidade no painel, é muito expressiva.
Há
diversas apreciações do relatório Stiglitz, mas trata-se sem dúvida de um
avanço para um referencial que já tem pés e cabeça, contrariamente às
deficiências gritantes do PIB. O mais provável é que este movimento de mudança
das contas nacionais irá incorporar um conjunto de aportes dos mais variados
setores e das mais variadas metodologias. Para quem queira acompanhar, há os
trabalhos mencionados acima, em particular a boa visão de conjunto que oferece
o estudo de Jean Gadrey, editado em português (Senac). Temos de ser realistas:
não haverá cidadania sem uma informação adequada, e adequadamente distribuida.
E precisamos constatar que a contabilidade nacional, herdada ainda dos anos
1930, precisa evoluir. Não podemos nos queixar que as pessoas não entendem o
que acontece com a economia, quando sequer produzimos as informações
necessárias para as pessoas se orientarem. Eu vejo o PIB hoje como um
impressionante instrumento de demagogia política.
Uma referência básica: Kate Raworth
Um aporte
de grande importância pode ser encontrado no recente trabalho de Kate Raworth, Doughnut
Economics: 7 ways to think like a 21st Century Economist, de
2017. O livro ajuda a mudar como pensamos a
ciência econômica. Exagero? Pois essa britânica de Oxford alia simplicidade e
clareza na exposição, com uma revisão em profundidade de como vemos, analisamos
e contabilizamos as atividades econômicas. Ela inclusive faz a ponte com as
teorias herdadas, avaliando seus aportes e fragilidades frente a um mundo que mudou
profundamente. Ela não descarta as teorias herdadas, mas organiza a transição.
George
Monbiot, no The Guardian, não exagera: “Eu li este livro com a excitação com
que as pessoas do seu dia devem ter lido a Teoria
Geral de John Maynard Keynes. É brilhante, entusiasmante e
revolucionário. Com um poço profundo de aprendizagem, sabedoria e pensamento
profundo, Kate Raworth redesenhou e redefiniu os marcos da teoria econômica. É
completamente acessível, mesmo para pessoas sem conhecimento do assunto. Eu acredito
que Doughnut Economics vai
mudar o mundo”. Comentário forte, mas surpreendentemente adequado. Para a
resenha feita pelo próprio Monbiot, para o Guardian, veja http://www.monbiot.com/2017/04/13/circle-of-life/
Pois não é
exagero mesmo. Com décadas de busca por um ajuste da teoria econômica às novas
realidades, eu fiquei realmente feliz com o resultado. O mundo mudou.
Continuarmos presos no cálculo do PIB que perdeu qualquer sentido. Não
contabilizar os impactos ambientais já beira a idiotice, quando temos 7,5
bilhões de habitantes consumindo ferozmente. Falar em mercado livre perdeu
qualquer sentido na era dos gigantes financeiros e das megacorporações
articuladas. Pensar a economia nacional e, mais ainda, a política econômica
nacional, na era da globalização, é cada vez menos realista: onde estão
contabilizados os 520 bilhões de dólares (um terço do nosso PIB) escondidos em
paraísos fiscais? Patentes de décadas no ritmo presente de transformação
tecnológica são pré-históricas. Enfim, tantos aspectos da atividade econômica
mudaram, em particular na sua dimensão institucional, que já não resolve
acrescentar um “neo-” ou um “pós-“ às teorias herdadas, e muito menos colocar
alguns remendos no cálculo do PIB.
De forma
simples e direta, Raworth faz um tipo de “reset” de como vemos o mundo
econômico, e a nova visão faz todo sentido. Consciente de que precisamos hoje
de uma imagem de referência, uma âncora imaginária para os nossos conhecimentos
econômicos, a autora substitui nossos tradicionais e complexos gráficos por uma
imagem: o doughnut, a nossa
familiar rosquinha. Como imagem, a rosquinha é poderosa, e como a Oxfam tinha
desenvolvido esta metodologia, eu também a vinha utilizando. Em Doughnut
Economics, ela já aparece completa. Vale a pena se apropriar
de uma ideia básica: a de que estamos produzindo algumas coisas em excesso,
como poluição do ar; e outras de forma insuficiente, como educação e saúde. Os
excessos aparecem explodindo para além da rosca e as insuficiências não chegam
à rosca, ficam no vazio interno.
Com esse
desenho simples estamos saindo do absurdo do PIB, em que a destruição ambiental
como desmatamento ou vazamentos de petróleo aparecem como positivos, pois
aumentam as atividades e logo o PIB. Evoluímos para uma conta completa que
permite identificar o que deve ser controlado, por exemplo a contaminação
química; e o que deve ser expandido, por exemplo o acesso aos alimentos.
Entramos assim na economia do bom senso. Doughnut
Economics nos traz um ponto de partida sobre o qual podemos
construir as políticas, organizar estímulos ou regulação, e repensar as nossas
teorias. Veja a imagem:
Ou seja, no vazio
interno da rosca, temos as insuficiências, shortfall, o
que tem de se remediar para entrar no espaço seguro da própria rosca. E no
vazio externo, temos os excessos, o overshooting, que
precisamos reduzir. Nada muito diferente de como cuidamos da nossa casa, onde
temos de complementar as insuficiências e controlar os excessos. Com esse
estudo, a economia deixa de ser um mistério para amadores de modelos
matemáticos, e passa a fazer sentido para os comuns dos mortais. Ao mesmo
tempo, temos uma imagem simples e desafios que são coerentes com o que foi
decidido nas grandes conferências de 2015, com o Acordo de Paris e os Objetivos
do Desenvolvimento Sustentável, a Agenda 2030, em Nova Iorque. (38-39)
Na
tradicional rosquinha da padaria, temos uma âncora mental. Ficar no espaço da
rosca, onde está a massa e o sabor, é o que temos de resgatar. O vazio do meio
são as insuficiências, como acesso à alimentação, enquanto o vazio externo é o
que estamos extrapolando, como as emissões de carbono. A simplicidade e
facilidade de leitura, inclusive de visualização mental, dos desafios
econômicos, são essenciais, pois enquanto a imensa maioria da população não
entender a lógica de como usamos os nossos recursos, as farsas irão continuar.
Inclusive a farsa maior de que precisamos dos ricos pois eles investem e geram
empregos, e de pobres pois a pobreza os leva a trabalhar. Na realidade, os
ricos hoje fazem aplicações financeiras em vez de investir, colocam os recursos
em paraísos fiscais e, portanto, pouco investem e mal pagam os seus impostos.
No mundo que funciona, impostos sobre o capital improdutivo levariam os
rentistas a buscar fazer algo de útil com os seus capitais. E como constatamos
em qualquer iniciativa que assegurou mais recursos para a população, o
resultado é maior demanda, multiplicação de pequenas e médias empresas e
expansão do emprego. O que aliás gera maior massa de impostos e equilíbrio de
contas públicas. Veja-se o sucesso do New Deal, do Welfare State, e até mais
recentemente da “geringonça” portuguesa.
Em Doughnut
Economics, ao vermos em que setores e com que atividades
estamos por um lado dilapidando os recursos naturais do planeta por excessos de
uso, e por outro que insuficiências existem em diversas partes da população,
podemos, setor por setor, canalizar os esforços e recursos financeiros para
onde irão gerar maior equilíbrio.
Ou seja,
podemos calcular onde devemos nos restringir, onde podemos expandir, em que
setores há prioridades para assegurar o básico para a população. A economia
passa a fazer sentido. Tim Jackson, que comenta o livro, lembra o absurdo de
termos sido “persuadidos a gastar o dinheiro que não temos em coisas que não
precisamos para causar impressões que não irão durar sobre pessoas que não nos
importam.” Já era tempo que alguém desse um pouco de sentido na visão geral da
economia realmente existente. No centro das respostas, não estão modelos
complicados, e sim a “capacidade do século 21 de criar formas muito mais
efetivas de governança, em cada escala, do que as que têm sido vistas
anteriormente.”(51) Volto a afirmar: é uma leitura fundamental, que permite
transitarmos para a economia do século 21, transição necessária, pois as
mudanças são profundas.
Há razões
políticas para tanta insistência em manter uma forma de avaliação do
crescimento econômico e social tão deformada? Quanto a isso, não há dúvidas. É
imensamente proveitoso para um conjunto de grupos econômicos e financeiros
privados usar uma contabilidade em que a produção de um brinquedo de plástico
apareça como produto, e o trabalho dos que organizam serviços de saúde apareça
como custos, sem falar de virarmos as costas para os desastres ambientais. A
forma de contabilizarmos o nosso progresso e a cifra mais representativa respondem
a interesses, não a técnicas contábeis responsáveis. E deixa, evidentemente, o
grosso da população no escuro.
Fechamos a
presente nota técnica com uma citação excepcionalmente eloquente de Robert
Kennedy, de 1968 ainda, quando o PIB americano era ainda de 800 bilhões (hoje é
da ordem de 18 trilhões).
“Durante
um tempo demasiadamente longo, parece que reduzimos a nossa excelência pessoal
e os valores da comunidade à mera acumulação de coisas materiais. O nosso
Produto Interno Bruto, agora, já supera os US$800 bilhões por ano, mas este
PIB, – se julgarmos os Estados Unidos da América por este critério – este
PIB contabiliza a poluição do ar e a publicidade de cigarros, e as ambulâncias
para limpar a carnificina nas nossas autoestradas. Soma as fechaduras especiais
para as nossas portas e as prisões para as pessoas que as rompem. Soma a
destruição florestal e a perda da nossa maravilha natural na expansão caótica
urbana…E os programas de televisão que glorificam a violência para vender
brinquedos para as nossas crianças. No entanto, o produto nacional bruto não
conta a saúde das nossas crianças, a qualidade da sua educação ou a alegria das
suas brincadeiras. Não inclui a beleza da nossa poesia ou a solidez dos nossos
casamentos, a inteligência do nosso debate público ou a integridade dos nossos
funcionários públicos. Não mede nem o nosso humor nem a nossa coragem, nem
nossa sabedoria nem a nossa aprendizagem, nem a nossa compaixão nem a nossa
devoção ao nosso país. Resumindo, mede tudo, exceto aquilo que faz a vida valer
a pena” (4).[iv]
De 1968
para cá, o PIB americano subiu muito, e todas as pesquisas de satisfação de
vida indicam uma queda progressiva. Afinal, de que se trata? De aumentar o PIB
ou de viver melhor? E qual dos dois objetivos deve ser medido? O PIB, tão
indecentemente exibido na mídia, e nas doutas previsões dos consultores, merece
ser colocado no seu papel de ator coadjuvante. O objetivo é vivermos melhor. A
economia é apenas um meio. É o nosso avanço para uma vida melhor que deve ser
medido. E de uma forma
que possamos entendê-lo.
Notas
(1) O
material do MIT pode ser acessado no site www.ocw.mit.edu; Em vez de tentar colocar
pedágions na expansão de novas tecnologias, como aliás é o caso das empresas de
celular que lutam contra o wi-fi urbano
e a comunicação quase gratuita via skype e
outros programas, as empresas devem
pensar em se reconverter, e prestar serviços úteis ao mercado. A IBM ganhava
dinheiro vendendo computadores, e quando este mercado se democratizou com o
barateamento dos computadores pessoais migrou para a venda de softwares. Estes
hoje devem se tornar gratuitos (a própria IBM optou pelo Linux), e a empresa
passou a se viabilizar prestando serviços de apoio informático. Travar o acesso
aumenta o PIB, mas empobrece a sociedade.
(2)
Elliott, Larry – Davos 2019: the yawning gap between
rethoric and reality – The Guardian, 27 Jan. 2019 – https://www.theguardian.com/business/2019/jan/27/davos-2019-the-yawning-gap-between-rhetoric-and-reality
(3) The
time is ripe for our measurement system to shift emphasis from measuring
economic production to measuring people’s well being. And the mesasures of
well-being should be put in a context of sustainability””. J. Stiglitz et al., Report
by the Commission on the measurement of Economic Performance and Social
Progress, September 2009, p. 12 – http://www.stiglitz-sen-fitoussi.fr
(4)
www.jfklibrary.org/Historical+Resources/Archives/Reference+Desk/
Speeches/RFK/RFKSpeech68Mar18UKansas.htm
)
Referências:
Elliott,
Larry – Davos 2019: the yawning gap between
rethoric and reality – The Guardian, 27 Jan. 2019 – https://www.theguardian.com/business/2019/jan/27/davos-2019-the-yawning-gap-between-rhetoric-and-reality
Gadrey,
Jean e Florence Jany-Catrice – Os novos indicadores de
riqueza – Ed. Senac, São Paulo, 2006
Haskel,
Jonathan and Stan Westlake – Capitalism without
Capital: the rise of the intangible economy – Princeton
University Press, Oxford 2018
Raworth,
Kate – Doughnut Economics: 7 ways to think
like a 21st century economist –
Chelsea Green Publishing, White River Junction, 2017 – http://www.chelseagreen.com
Schmitt,
Jason – Paywall: the Business of Scholarship –
(Documentário, 1h 04) – http://dowbor.org/2019/01/paywall-the-business-of-scholarship-filme-de-jason-schmitt-1h04-set-2018.html/
Stiglitz,
Joseph, Amartya Sen and Jean Paul Fitoussi, Report by
the Commission on the measurement of Economic Performance and Social Progress,
September 2009, p. 12 – http://www.stiglitz-sen-fitoussi.fr
Sundararajan,
Arun – The sharing Economy: the end of
employment and the rise of crowd-based capitalism – Cambridge,
MIT Press, 2016, ISBN 9780262034579
Viveret,
Patrick – Reconsiderar a riqueza – UNB, Brasília, 2006
por Ladislau Dowbor
Publicado 28/02/2019 às 20:25
Fonte: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/havera-vida-alem-do-pib/
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