GASTRONOMIA
ATRAVÉS DA HISTÓRIA:
O CASO
ITALIANO (1)
Fragmentada ao fim do Império Romano, invadida por
múltiplos povos, Península Itálica tornou-se caldeirão de culturas. Por isso,
sua culinária é rica, provocante e confortadora – a ponto de se tornar
referência global
Primeira Parte – O
convite
Alguém que
entra em um restaurante e pede uma entrada, um prato principal, um vinho e uma
sobremesa, além de se alimentar, de desfrutar de um dos sentidos humanos, de
exercitar um dos maiores prazeres da nossa natureza, repete, reforça e
reformula um movimento histórico e cultural que é bem mais antigo do que
podemos imaginar e que pode ter origens muito diferentes daquelas imaginadas.
A comida
reflete, de maneira completa, a cultura de um povo. Isso porque, em primeiro
lugar, o que se come é determinado pela geografia do lugar, seu solo, seu
clima, sua fauna e flora. Depois, na hora da transformação, do forno e do
fogão, segue receitas do povo deste local, suas tradições, crenças e histórias.
E você me
questionaria: come melhor quem conhece história e geografia?
Sim, sem
dúvida! Conhecer onde, quando, com quem e por que um determinado prato surge no
cardápio da humanidade pode nos abrir um mapa dos sabores que se misturam com
outros indícios culturais e com a história. Existe forma mais interessante de
se visitar a História do que sentados à mesa, com garfo e faca na mão?
Então vem
comigo nesse rápido giro gastronômico. Já aviso que estão proibidas as paradas
em maquidônaldis, estarbóquis, pizzarrâti e
demais multinacionais que oferecem produtos ultra processados como se fossem
comida. Vamos falar de alimentos de verdade,
e para agradar todo mundo, vamos embarcar para o país que eu defino como a
grande cozinha do mundo: a Itália.
Quando
estou girando o mundo e me sinto cansada de provar coisas novas e nem sempre do
meu agrado, e para dar uma descansada ao paladar, procuro um lugar que tenha
“comida caseira”. Inevitavelmente acabo em um restaurante italiano. Mas isso
não acontece apenas comigo. Geralmente em um grupo, no momento em que fica
difícil achar uma sugestão que agrade a todos, o apelo “Pasta e Pizza” acalma e
convence a grande maioria.
Já de
partida, nessa viagem, lanço minha primeira questão: porque a Itália tem essa
força gastronômica? Porque todo mundo, eu disse todo mundo,
gosta de comer aquilo que chamamos de comida italiana?
A
resposta, é claro, está na história. Vamos retroceder um pouco na linha do
tempo da Península Itálica, uns 1500 anos, e observar como o Império Romano (do
Ocidente) foi se esfarelando e seu território foi sendo ocupado, invadido,
penetrado, pelos chamados “bárbaros”.
Adoro o
episódio do gaulês Asterix e os Godos em
que dois guardas romanos vigiam a fronteira do Império quando se escuta (com
letras góticas) alguém atrás dos arbustos que diz: “quando eu disser três”, os
guardas escutam, desconfiados, mas o maior diz que nenhum bárbaro teria a
ousadia de colocar seus pés imundos em território romano. Não consegue terminar
a frase e um grupo de godos, ou seriam visigodos, ou ostrogodos, atacam e
rendem os romanos. Ótimo imaginar que foi assim!
É verdade
que ao longo dos anos, desde o século V, bárbaros invadiram, saquearam,
ocuparam ou simplesmente chegaram e se instalaram no território que fora
romano, dividindo a península em inúmeros Estados autônomos, independentes e
frequentemente concorrentes. Por exemplo: a República de Venezia, Ducado de
Savoia, Ducado de Espoleto, República de Genova, Principado de Salerno, Reino
da Lombardia, Reino de Sicília, Marquesado de Toscana, Estado Papal e tantos
outros.
Cada um
desses Estados, que ao longo do período Medieval e do Renascimento foram sendo
aglutinados ou separados, desenvolveu uma cultura própria e diferente daquela
do seu vizinho. A começar pela língua, cujos humores vibram ainda em notas e
tons diferentes, de acordo com cada um dos dialetos que sobrevivem nas atuais
regiões italianas (divisão política que equivalente aos nossos Estados). Depois
podemos observar, na arquitetura, que cada um desses reinos, ducados,
principados e repúblicas construiu seus palácios, suas catedrais e suas muralhas,
seguindo a planta elaborada por mentes geniais. Se um príncipe chamava
Botticelli para pintar e valorizar um ambiente de seu palácio, o vizinho
mandava chamar Ticiano, ou Tintoretto, o outro contratava Rafael e o mais rico
já ia para as cabeças, chamava logo Michelangelo ou da Vinci. Nessa
concorrência, a península foi sendo formada, lapidada, decorada com as maiores
obras de arte do continente europeu.
Até hoje a
Itália é um grande colar de pérolas. Basta pegar uma estrada e percorrer 10
quilômetros. Você não conseguirá chegar ao final do percurso no mesmo dia,
porque a cada quilômetro rodado surgirá uma vila, um burgo, uma igreja e uma
cidadezinha que revelará uma jóia inesperada e maravilhosa para ser visitada,
um pequeno troféu para o viajante mais curioso.
Por isso a
Itália abriga o maior número de sítios tombados pela Unesco como Patrimônio da
Humanidade e talvez seja essa a explicação ao fato de o país estar sempre entre
os primeiros colocados na lista de destinos mais desejados dos viajantes no
mundo inteiro. É um destino que nunca sai de moda e nunca se esgota. Na Itália
é fácil escapar das cidades super turísticas e mergulhar por caminhos quase
inexplorados com a certeza de encontrar algum segredo maravilhosamente bem
guardado.
E a
comida?… Ahhh, a briga não é diferente quando a gente vai para a cozinha. Cada
região, cada cidade, cada família inventou sua receita, escolheu seus
ingredientes e certificou o nascimento de seus manjares dos deuses. E este
fazer gastronômico é um patrimônio imaterial do país, valorizado e preservado
ao longo das gerações. Hoje se prepara uma pasta, uma carne, uma torta como se
fazia desde os inicio dos tempos (o exagero é proposital, para ser coerente com
o estilo pungente e teatral do italiano médio). Não ouse modificá-lo,
atualizá-lo. Sabe aquele papo de “releitura”? Nada disso é admitido em solo
itálico. Se a avó fazia assim, este é o jeito certo de se fazer. Ponto final.
Esta forma
de manter as tradições nas receitas e nos seus ingredientes tornou o cardápio
italiano um documento de alta confiança. Um pesto
genovese ou uma pasta alla
Normasiciliana, têm suas receitas originais compulsoriamente
preservadas e garantidas; já o purgatório está cheio de almas brasileiras que
resolveram tropicalizar o tal do molho. Isso é um pecado! Hai
capito?
Uma vez,
em um pequeno restaurante torinese, sugeri à dona,
que me servia uma fruta, que colocasse raspas da casca de limão sobre a fatia
de abacaxi e ela, muito zangada perguntou: “e quem não gosta de limão, faz o
que?”. Fui quase linchada e expulsa do local…
Mas vamos
olhar a geografia da península italiana para entender como o espaço opera
gerando tamanha diversidade alimentar.
Podemos
resumir o mapa da seguinte maneira: ao norte temos uma planície (Planície
Padana) cercada de montanhas (os Alpes) e no centro-sul, montanhas (cadeia dos
Apeninos) cercada por planícies. Cada região apresenta determinado relevo com
montanhas e/ou colinas e/ou planícies, e solos com características diversas. A
fusão dessas condições geológicas e meteorológicas gera microclimas específicos
e responsáveis pela multiplicidade de sabores, cores e consistências daquilo
que se produz. Depois é só acrescentar povos com histórias e tradições
gastronômicas diferentes, e teremos um verdadeiro mosaico de pratos e receitas.
As
regiões, que competiam desde o século V ou VI, entraram empurradas no projeto
dos Savóia de unificação nacional, em 1861, e seguem até hoje pisando nos calos
umas das outras. Os italianos são muito regionalistas, territoriais, enxergam o
vizinho como adversário, inclusive na hora de cozinhar. E como cada um tem sua
receita, baseada na tradição centenária de cada família, nos vocabulários e nas
histórias regionais, a ideia de uma Itália
é ainda frágil. Ou seja, quando a gente percorre o país, nos damos conta de
que, sob o aspecto gastronômico, não existe um “restaurante italiano” porque
não existe uma “comida italiana”. O que existe é a cozinha lombarda ou
piemontesa, ou napolitana, ou siciliana ou toscana ou ainda veneziana, cada uma
deixando muito claro seu orgulho como portadora de um patrimônio cultural
local.
O italiano
só se sente italiano mesmo quando a seleção italiana entra em campo. Só quando
aparece a “azurra”, em qualquer esporte. Epa… Mas porque a cor oficial das
seleções esportivas italianas é o azul? Não existe essa cor na bandeira
italiana…
Curioso,
não?
Publicado 18/01/2019 às 14:57 -
Atualizado 18/01/2019 às 15:05
Fonte: https://outraspalavras.net/historia-e-memoria/gastronomia-atraves-da-historia-o-caso-italiano-1/
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