GASTRONOMIA
ATRAVÉS DA HISTÓRIA:
O CASO
ITALIANO (2)
Pratos austro-húngaros, tomate, milho, batata,
cacau americanos, óleo árabe. Como, ao longo dos séculos, dominações e
conquistas transformaram culinária do país mediterrâneo.
No texto anterior (Gastronomia através da história: o caso italiano (1), comentei sobre a diversidade gastronômica italiana e sobre
a força do regionalismo na alimentação. Começo este capítulo contando para onde
ia toda a tradição local na hora em que chegavam os invasores estrangeiros
trazendo seus baús repletos de receitas caseiras.
As regiões
que viviam sob domínio estrangeiro, especialmente sob os Habsburgs ou os
Bourbons, também se adaptavam às exigências de seus novos senhores na hora do
jantar. Introduzir novos hábitos alimentares era, e continua sendo, uma das
formas de dominação de uma cultura sobre outra. E não deixa de ser interessante
encontrar a digital do conquistador em alguns pratos servidos. Vou dar alguns
exemplos saborosos.
Um básico:
o que é um bife à milanesa? Sei qual será sua resposta: um bife empanado e
frito. Certo? Sim, mas porque essa forma de se preparar o bife se chama “à
milanesa”?
Não foram
os lombardos que inventaram essa técnica. O bife “à milanesa” nada mais é do
que o Schnitzel Austro-húngaro!
Lembremos que o Ducado de Milão foi incorporado ao Reino Lombardo, sob controle
do Império Austríaco a partir de 1815 (Congresso de Viena) até a Guerra de
Unificação. Os austríacos deixaram esta receita na cidade, que os milaneses
aprovaram, repetiram e renomearam a forma de preparo.
Tem um
outro exemplo notável: o canederli. Quem descende de família veneta, trentina
ou do Alto Àdige, sabe do que estou falando. São aqueles bolinhos feitos com
uma massa que parece de pão, recheados ou não com linguiça e servidos cozidos.
Estou descrevendo o irmão gêmeo do Knödel austríaco, cujo nome foi latinizado.
Se me
permitem uma digressão, o knödel era consumido em todo Império Austro-húngaro,
isso quer dizer, Hungria e outras regiões do leste europeu, onde vivia uma
grande população judia. Existe um prato tradicional do receituário ashkenazita
(dos judeus da Europa oriental) chamado kneidlach,
leia-se kneideler, que nada mais é do que um knödel sem recheio. E assim o
knödel, que virou kneideler, se tornou um canederli. Tudo junto e misturado.
Mas tem
ainda outros fazeres da maior tradição gastronômica italiana que usam produtos
que não são e nem nunca foram italianos. Em primeiro lugar, o tomate. Um
produto americano!! É o tomate asteca…
Chegou em
Napoli no período em que o sul da Itália era parte do Império Bourbon, sob
domínio espanhol. Este fruto, chamado de “pomod’oro” porque quando chegava era
dourado (não amadurecido), servia inicialmente como decoração, respeitando a
crença de que seria venenoso. Veio da América e ao encontrar solo e clima
perfeitos para seu desenvolvimento, se tornou um símbolo da culinária
napolitana. Preste atenção, estamos no século XVI e até aqui não existia molho
de tomate na Itália! Nada de pasta al sugo ou pizza com base vermelha, mas vou
deixar para falar da pasta no próximo capítulo.
Gostaria
de citar também o milho, outro produto americano, que chega no norte da Itália
e invade a cozinha pobre e camponesa, transformando para sempre a polenta, que
até então era preparada com farinha de trigo.
Não vou
nem entrar no capítulo “batata”, mais um produto americano, diretamente dos
Andes para a Europa, mas vou provocar suas papilas gustativas: que tal falarmos
do chocolate? Acho que é de conhecimento geral que o cacau vem do México e
América Central, também trazido pelos espanhóis. Mas tem uma história muito
curiosa que é a invenção de um produto que adoça o crepe de muita gente.
Na cidade
piemontesa de Torino se desenvolveu, desde o século XVI, uma fortíssima
produção de chocolate, que já não era apenas uma bebida, de acordo com a
tradição mesoamericana, e sim degustada na forma sólida de um lingote.
No período
do embargo que Napoleão impôs à Península Ibérica, a quantidade de cacau que
chegava ao mercado centro europeu foi drasticamente reduzida e Torino se viu
sem matéria prima suficiente para atender sua demanda por chocolate.
Um dos
fabricantes locais, da casa Caffarel,
teve então uma ideia. Como nesta região se produz a avelã “tonda-gentili”, uma
das espécies mais saborosa da castanha, ele fez a experiência de misturar o
pouco cacau disponível com uma boa quantidade de creme de avelã, que daria o
volume final necessário para atender a freguesia. A mistura foi chamada de “creme gianduia”,
fez muito sucesso e ganhou o mercado.
Muitas
décadas depois, para concorrer nos Estados Unidos com a pasta de amendoim
local, a fábrica italiana Ferrero, transformou o
creme gianduia em uma pasta
mais açucarada, inventou um nome que fazia menção à castanha (Nut) com o sufixo
italianizado (tella) e lançou, para conquistar todos os continentes, a Nutella.
Bem,
estávamos até agora fazendo o aperitivo (uma invenção italiana, que serve para
estimular o estomago e abrir o apetite) do meu texto. Passemos agora ao antipasto.
E vou
começar falando do “olio di oliva”, que
traduzimos por azeite.
Bom
esclarecer que esta palavra em português vem do nome em árabe “az-zait”, produto
da “az-zaituna”, e chega ao Brasil na
bagagem dos lusitanos, que viveram sete séculos em companhia dos mouros na
Península Ibérica.
A oliveira
selvagem teve sua origem nos territórios que hoje pertencem à Turquia e Síria,
no Oriente Médio. Desde o século XVI A.C., os fenícios, em suas grandes
navegações, espalharam as oliveiras pela região em torno ao Mediterrâneo, cujo
clima era perfeito para o seu desenvolvimento.
Começaram
pela Grécia e logo se tornou fundamental para a sua economia e cultura. Os
gregos usavam o óleo como alimento, como cosmético, como medicamento e nos
rituais de preparação dos atletas para os jogos.
Quando
Roma, cuja mentalidade sempre foi militar, ligada a guerra e aos conhecimentos
práticos, conquistou o território grego, aprendeu e absorveu muito desta outra
cultura, que era muito mais sofisticada, se ocupava de filosofia, poesia,
teatro, apreciava a beleza e o equilíbrio. Levando para Roma os escravos
gregos, para serem inclusive seus professores, os romanos importaram também
suas oliveiras, que logo se espalharam por todo o território peninsular.
Na medida
em que o império ia crescendo, o azeite passou a ser um dos principais produtos
comercializado pelos romanos, requisitadíssimo tanto como alimento, como para
tratamento de saúde e de beleza. Assim, rapidamente se tornou um símbolo.
A oliveira
tinha status! Por exemplo, os imperadores romanos eram coroados com grinaldas
de folhas de oliveira douradas, ou ainda, ramos de oliveiras eram usadas, no
lugar da posterior bandeira branca, como sinal de rendição e paz de exércitos
derrotados, que depois presenteavam os vencedores com bandejas de azeitonas.
Com o
final do Império Romano, na Alta Idade Média, a Europa viveu um momento de
desabastecimento das cidades e de grande êxodo urbano. O comércio acabou e a
zona rural se transformou em áreas de agricultura de subsistência. Abandonou-se
o cultivo das oliveiras em troca de outros produtos de primeira necessidade.
Mantiveram-se
apenas algumas árvores para produzir pequenas quantidades de óleo, o suficiente
para a igreja manter suas celebrações e ritos. O óleo estava sendo
cristianizado! Volto a falar de como a Igreja se apropriou de determinados
elementos da gastronomia mediterrânea depois.
O
Renascimento das cidades, das feiras e do comércio espalhou novamente as
oliveiras pelo território italiano que hoje produz, em 18 das suas 20 regiões,
um dos azeites de melhor qualidade do mundo.
Falando do
azeite (olio) é quase natural
pensar no vinagre (aceto).
O que
falar deste liquido (ou creme) precioso que entra na cozinha e dá um show, e
quando eu digo “show” falo das carnes, das pastas, dos doces, dos chocolates, e
não da salada, porque o aceto é tudo, menos
tempero de salada.
Nenhum
texto relata com certeza a data de nascimento do aceto
balsâmico, mas existem várias hipóteses e uma delas fala de um
nascimento casual. Uma certa quantidade do suco cozida da uva, chamado “saba”
um adoçante usado na culinária modenese, teria sido esquecido em um vaso e
encontrado tempos depois, quando já apresentava sinais de uma avançada
acidificação. Tem também o testemunho de um certo Donizone, monge beneditino
que viveu entre os séculos XI e XII, que escreveu que no ano 1046, o rei
francês teria enviado um mensageiro ao Marques de Canossa, pedindo um pouco
daquele aceto que havia
provado antes. Ou seja, estamos falando de um produto que habita castelos,
palácios e sótãos, há mais de mil anos.
Ficou
curioso com o sótão? Para entender tenho que explicar rapidamente como se
produz este que é ainda símbolo da cultura da cidade de Modena.
A matéria
prima do aceto balsâmico é
obtida das uvas Trebbiano e Lambruschi, cultivadas na região de colinas dos
Apeninos Modenenses, na província de Modena, uma área de terreno ligeiramente
calcário e de clima de transição entre o mediterrâneo e o continental, que faz
com que a uva apresente uma alta concentração de açúcar, o que interfere na
atividade dos micro-organismos responsáveis pela transformação do aceto.
Uma
quantidade do suco da uva (mosto di uva) é cozido em fogo brando por x horas,
depois é transferido para um barril de uma madeira específica e fica lá,
pensando na vida, por um ano, de preferência no sótão da casa, porque é onde
faz muito calor no verão e muito frio no inverno. Assim, os micro-organismos
que passam do ar para o mosto e que devem digerir o açúcar, trabalham muito no
verão e repousam no inverno.
Passado o
primeiro ano, se retira uma quantidade do líquido e se coloca no segundo
barril, de outra madeira específica, e se completa o primeiro barril com o
mosto novo. Volta para o sótão, passa o inverno/verão, e ao final deste ano se
retira um pouco do segundo barril, que vai ser colocado num terceiro, de outra
madeira, e se tira o mesmo tanto do primeiro, que vai para o segundo, e se
completa o primeiro… e assim sucessivamente por pelo menos cinco anos (cinco
barris – a sequência de barris recebe o nome de “bateria”), para então produzir
o primeiro vidrinho de aceto balsamico tradizionale di
Modena, que custa uma fortuna.
No passado
cada família modenense tinha uma bateria em casa, sempre com um nome feminino
porque elas nasciam junto com as filhas, como sendo o dote que cada uma levaria
para o casamento. E a produção não se destinava ao comércio, mas para uso
familiar ou como presente. Falei “no passado”, mas boa parte das famílias em
Modena mantém suas baterias até hoje!
Terminando
nosso aperitivo, antecipo o cardápio do próximo texto: um pouco da história do Primo e
do Secondo
Mas antes
de encerrar a conversa, devo responder a questão que deixei no ar no meu texto
anterior: por que azurra? Esta cor não
está na bandeira da Itália, mas está na bandeira dos Savoia, a monarquia
piemontesa que promoveu a unificação do país e o governou até o final da
Segunda Guerra Mundial.
A camiseta
azul do time italiano passou a ser usada em 1911, numa partida amistosa de
futebol entre Itália e Hungria, como homenagem ao rei Vittorio Emanuele III.
Publicado 31/01/2019 às 16:33
Fonte: https://outraspalavras.net/historia-e-memoria/gastronomia-atraves-da-historia-o-caso-italiano-2/
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