OS LAMAÇAIS DA BR 319 E OS LAMAÇAIS DE BRASÍLIA A TODO O BRASIL
O convite. Em dezembro de 2018,
em visita ao amigo e pesquisador Walter Marcos Knaesel Birkner, morador da
paradisíaca cidade e balneário de Penha, em Santa Catarina, recebi um convite
irrecusável. Fui convidado para uma viagem ao norte do país para buscar seu
carro em Boa Vista, capital do Estado de Roraima, adquirido durante sua estadia
na Universidade Federal de Roraima no ano de 2018. Ida de avião e retorno de
carro pelo oeste do país. Convite aceito de forma imediata e intuitiva.
Desconhecia o fato de que o carro era um Gol 1.6 (Até aqui tudo certo é um
carro confiável, bom de mecânica. Quem já teve um Gol sabe do que estamos
falando). Mas, o que eu não sabia era o fato de que o carro é vermelho. Em
tempos nebulosos e de apagão do pensamento tais detalhes podem se tornar
determinantes.
O retorno. Percorremos 5.100
km de Boa Vista/Roraima à Blumenau/SC. Ao longo do percurso tivemos a
oportunidade de nos depararmos com a vastidão continental do Brasil. Mas,
sobretudo a riqueza hídrica e natural do norte do país. É uma parte
considerável do paraíso. Mas, sobretudo, nos deparamos com uma população
generosa, acolhedora e prestativa. Gente simples, mas de uma generosidade
incomensurável. E o que dizer da culinária? Comida saborosa. Composta de uma
variedade de temperos e de pimentas de todos os tipos e gostos. O
questionamento recorrente que se apresentava ao longo da viagem, assim
pode ser apresentado: como um país repleto de recursos naturais e de gente boa
se encontra em condição de penúria, de desigualdades sociais gritantes,
num país subdesenvolvido? Observando atentamente as mais diversas situações
duas respostas se apresentam prontamente, mas não definitivamente: 1ª
Elites locais, regionais e nacionais se locupletam com as riquezas que o solo
desta terra generosamente coloca a disposição em detrimento das necessidades e
interesses da população. 2ª Tal condição é mantida e potencializada pela
dinâmica política local, regional e nacional, habilidosa na defesa das mais
diversas corporações que, em defesa dos interesses privados, lesam as demandas
públicas.
A Travessia
– Porém, um dos momentos mais marcantes foi a travessia da BR 319 que
liga (ou deveria ligar) Manaus, capital do Estado do Amazonas a Porto Velho,
capital do Estado de Rondônia. Segundo o Walter a travessia de Manaus a Porto
Velho de balsa levaria uma semana, além de consumir recursos na ordem de R$
2.500,00 a R$ 3.000,00. Raciocínio óbvio, a travessia pela BR 319 em sua
extensão de 852km levaria um dia, talvez um dia e meio, considerando o fato de
que 480 km da estrada são desprovidos de piso asfáltico, ou outro tipo de
revestimento de superfície. Ao longo do percurso procuramos nos informar sobre
as condições da estrada. Informações desencontradas. Para alguns a BR 319 nesta
época do ano, novembro a abril, torna-se intransitável em função das monções.
Outros reconheciam tal condição, mas em função da escassez das chuvas,
mesmo reconhecendo que haveria no caminho alguns atoleiros, era transitável.
Enfim, no sábado, dia 12.01.2019, após a travessia de balsa do Rio Negro
e Solimões e, das orientações do prestativo amazonense Jefferson enveredamos
pela BR 319. Os primeiros 200 quilômetros foram tranquilos. Estrada de barro,
mas sem atoleiros. No fim da tarde chegamos na pousada da “Dona Mocinha”,
à beira do Igapó-açu. Lugar simples. Moradores ribeirinhos. Acolhedores. No
domingo, 13.01, partimos às 6h30min, com a expectativa de chegar em Porto Velho
no fim da tarde, ou início da noite. No porta-malas do Gol um galão de 20
litros de combustível (não há postos em 500 quilômetros até a localidade de
“Realidade” próximo a Humaitá/AM) e uma corda de 10 metros como
prevenção em relação a necessidade de sermos rebocados caso ficássemos
atolados. A corda e enxada que não levamos havia sido recomendação dos
ribeirinhos.
O Lamaçal
– Mal sabíamos que enfrentaríamos uma infinidade de atoleiros de
extensões diversas de 10 a 500 metros de extensão de lama. Somente transitam
naquelas condições camionetes traçadas 4×4, Jipes com tração e equipados
comguinchos, caminhões traçados e ônibus. Aliás, os ônibus são um
capítulo a parte, levando dois, três, até quatro dias para fazer o trajeto ao
custo do sacrifícios de motoristas, ajudantes e passageiros para desenterrá-los
dos referidos atoleiros. Levamos 3 dias para atravessar o famoso “trecho do
meio” (algo em torno de 480 quilômetros). Pernoitamos no domingo, dia 13.01.19
,para segunda-feira, 14.01.19, encalhados no meio do atoleiro junto com o
porto-velhense “Antônio Abedia” que nos rebocava com sua camionete Chevrolet
S10 ao longo do domingo. Não foi um pernoite digno de hotel 3 estrelas,
mas estávamos no meio da floresta amazônica redados de antas, porcos do mato,
araras, sucuris e onças. Nesta travessia fomos auxiliados por inúmeras pessoas.
Agradecemos a todos o auxílio, mas em especial ao Antônio Abedia e a duas
famílias de catarinenses, naturais da cidade de Ibirama – Santa Catarina
(fazenda Catarinas) e, que moram naquela região há 20 anos. Na segunda,
dia 14 de janeiro, à tarde, os catarinenses nos acolherem em suas terras em
função de avarias no Gol que impediam a continuidade da viagem. Ufa! Estávamos
em casa e, melhor de tudo, ainda vivos. Sim, desde domingo estávamos
literalmente no meio da lama, tomando água quente, comendo as últimas bolachas
e os farelos de salgadinhas que tínhamos conosco.
A Rodovia –
A BR 319, também conhecida como rodovia Álvaro Maia, é uma rodovia
federal que liga Manaus (AM) e Porto Velho (RO). Sua extensão total é de 885
Km, dos quais 820 Km ficam no Estado do Amazonas e 64,9 em Rondônia. É a
única ligação por terra entre as duas capitais do norte. A BR 319 foi
projetada e construída entre os anos de 1968 a 1973. Foi inaugurada
oficialmente em 1976, pelo então presidente militar Ernesto Geisel. Em 1988 a
rodovia foi fechada em função da deterioração total de capa asfáltica. Em 1996
o presidente FHC incluiu a recuperação da rodovia em seu plano de governo e, em
2007 o presidente Lula incluiu a recuperação da BR 319 no PAC (Plano de
Aceleração do Crescimento). Em 2019 a rodovia e a população daquela região
continuam abandonados a própria sorte. Sem estrada e sem energia elétrica
em pleno século XXI.
É lama que não acaba mais –
Segundo que a cada 30 quilômetros do “trecho do meio” da BR 319 encontrávamos
um atoleiro que não apenas atrasava a viagem, mas que nos exigia esforços
e recursos para transpô-lo. A trajetória do Brasil colônia e, sobretudo
em sua fase Imperial e Republicana, é marcada por atoleiros políticos,
jurídicos e econômicos em ciclos de mais ou menos 30 anos. Exceto o
período do governo geral no Brasil colônia que perdurou 200 anos,
nossa trajetória recente é de lamaçais políticos, jurídicos e econômicos.
Em cada lamaçal que a plutocracia econômica, política e jurídica decide lançar
o país em função dos arranjos e dos interesses privados destes grupos, o povo
brasileiro é lançado na incerteza, aprofundando seu ceticismo em relação as
suas elites, descrença em sua classe política, ojeriza pela própria política.
Ao longo destes inúmeros atoleiros econômicos, políticos e jurídicos, os
brasileiros sabem que a única chance que possuem é continuar lutando pela vida
cotidiana. Sabem que para sobreviver nestas terras marcadas por capitalismo
extrativista e predatório é necessário aperfeiçoar o jeitinho. Sabem que nestas
terras “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Sabem que nossas elites são
violentas não titubeiam em demitir, bater, prender, ou utilizar qualquer outro
recurso cabível ou descabível para garantir seus interesses e de seus
agregados.
A Esperança é uma razão triste (Espinosa) – Ao superar um atoleiro na
BR 319 alimentávamos a crença de que a partir daquele momento a viagem
seguiria. Sabíamos que encontraríamos outros atoleiros. Mas, como aquele
que vencemos não haveria outro e, portanto teríamos condições de superar os
lamaçais vindouros. Ledo engano. Novamente estávamos atolados até o pescoço e,
não havia outra saída a não ser esperar que alguém nos auxiliasse. Os
atoleiros econômicos, políticos e jurídicos produzidos pela elite nacional
extrativista, descomprometida com um projeto de desenvolvimento regional
e nacional, fazem com que os brasileiros alimentem suas crenças de que um dia
este país vai dar certo. A fé assume neste contexto uma importância
vital. Sim, não há outra possibilidade de salvação a não ser
acreditar que Deus é brasileiro. De que Messias, que está entre nós como
sobrenome Guedes irá ou irão definitivamente extirpar os lamaçais da velha
política, os vícios das velhas corporações, a avidez dos interesses privados
que exigem do estado a garantia de seus negócios e empreendimentos a revelia da
pobreza e da miséria de um povo honesto e trabalhador. Ademais em
parte dos brasileiros, as recorrências dos lamaçais da pátria madrasta
desenvolve um sentimento de aceitação da sina, do carma que se abateu
sobre a vastidão desta terra. “O brasileiro é assim mesmo, fazer o quê”, dizem
honestos cidadãos calejados e roubados ao longo de suas vidas.
Criacionismo – Enterrados
até o pescoço em mais um lamaçal os brasileiros se digladiam, se xingam,
procuram pontualmente os culpados por mais esta crise. Basta extirpar as
ideologias, basta extirpar o excesso de direitos, basta endurecer as leis,
prender em segunda instância, executar os ladrões de galinhas e, retomar a fé
no criacionismo, bem como acreditar que num país capitalista de elites
extrativistas, submetido a interesses macroeconômicos financeiros globais a
honesta e bem intencionada lógica de mercado corrigirá os rumos de uma história
que primeiramente se apresenta como tragédia e dias depois se apresenta como
farsa.
O Eterno retorno do mesmo (Nietzsche). E, assim
como na BR 319, continuamos de atoleiro em atoleiro lutando cotidianamente pela
mísera sobrevivência. Paradoxo escandaloso: num território pleno de
riquezas naturais a miserabilidade campeia livre, leve e solta devorando
oportunidades e a vida de seus habitantes. “Um povo que não conhece sua
história está condenado a repeti-la indefinidamente” (Edmund
Burke). Agradeço ao Walter pelo convite/oportunidade de andar na
lama, bem como ter participado dos infindáveis debates que estabelecemos ao
longo dos 5.692 quilômetros pensando o Brasil.
*Dr. Sandro Luiz Bazzanella é professor de Filosofia
Fonte: https://www.jmais.com.br/os-lamacais-da-br-319-e-os-lamacais-de-brasilia-a-todo-o-brasil/
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