BEM-VINDO À SOCIEDADE
DA IGNORÂNCIA
Iniciemos esta reflexão com o auxilio da língua
portuguesa na definição do termo “ignorância” para nos afastarmos de seu uso
cotidiano pejorativo e com a finalidade expressa de dirigir ofensa a outrem, ou
a determinado grupo em relação à situação em específico. Outrossim, em tempos de aligeiramento sectário do
pensamento definições precisas se apresentam necessárias com o intuito de
evitar interpretações equivocadas e conclusões grotescas.
“Ig.no.rân.cia (ìg) s.f.(a) 1.
Estado ou condição daquele que, incapaz de utilizar as suas capacidades
racionais, engana-se quanto à qualidade dos seus conhecimentos, tomando por
verdade o que não passa de um erro ou falácia, expondo-se à vergonha, à crítica
ou ao ridículo; falta total e completa de conhecimento ou de instrução. 3.
Falta de clarividência associada à falta de bom-senso. (...) Em sentido
filosófico, Sócrates afirmava que o reconhecimento da ignorância (1) já é o
início da sabedoria. De fato, todos os seres humanos somos, de alguma forma,
ignorantes, porque a ninguém é dado saber tudo de tudo. O mal está justamente
em não ter consciência da ignorância”. (Grande Dicionário Sacconi)
É estarrecedor a vertiginosa velocidade com que a derrota
do pensamento se estabelece entre indivíduos e sociedades em pleno século
XXI. Influenciados pelos ideais
iluministas característicos da modernidade em sua aposta na razão, na capacidade racional de
construir consensos, de afirmar instituições e hierarquias de autoridade política
e científica na interpretação e ação no mundo, apresenta-se na atualidade certa
dificuldade em compreender suficientemente os fenômenos em curso. Os fatos, os acontecimentos anunciam sob certos aspectos a derrota do
pensamento e a emergência da sociedade
da ignorância.
Recentemente li um livro de autoria de três autores
espanhóis (Antônio Brey; Daniel Innerarity e Gonçal Mayos) intitulado: “La
Sociedad de la Ignorancia y otros ensayos”, publicado em 2014. Nesta obra, os autores apresentam alguns
paradoxos constitutivos dos tempos em que vivemos entre eles a exponencial
capacidade tecnológica de produzir, armazenar e promover o consumo de informações, sobreposta à limitada capacidade
cognitiva humana de conferir tratamento analítico e reflexo as informação
recebidas.
Para os referidos autores esta condição nos coloca diante
dos limites da anunciada e almejada sociedade do conhecimento. Ou seja, o
acesso tecnológico a quantidade ilimitada de informações parece não promover
nos indivíduos o avanço qualitativo na compreensão dos desafios
e das contradições nos quais se inserem as sociedades
contemporâneas. Porém, tudo indica que a sociedade do conhecimento
se efetiva em sua especificidade no âmbito das corporações empresariais, que
conferem tratamento às informações estratégicas necessárias a constituição do
conhecimento produtivo em seu segmento de atuação.
Outro paradoxo apresentado pelos autores a partir da
revolução tecnológica incide na mudança dos padrões de comunicação entre os
seres humanos. Ou seja, antes da
emergência da internet, dos telefones celulares, das redes sociais, de
aplicativos como o WahtsApp, entre outros haviam centros de produção de
informação e de conteúdos (rádio,
televisão, revistas e jornais impressos), a partir dos quais se estabelecia
uma agenda pública, que em maior ou menor grau promovia a troca de ideias, a
emissão de opiniões e, talvez até mesmo o debate sobre questões de maior apelo
individual, ou social. Ou seja, talvez se possa afirmar que naquele contexto se
apresentava de forma de forma mais contundente uma agenda razoavelmente pública
que norteava a comunicação entre os indivíduos.
A emergência das
novas tecnologias, da internet, das redes sociais, dos aplicativos de telefonia
móvel altera de forma visceral tal condição. Os centros tradicionais de produção e difusão
de informações dividem espaço com os indivíduos que transcendem sua condição de
meros consumidores de informações para
tornarem-se produtores e disseminadores instantâneos de conteúdos de toda
ordem. Milhões, senão bilhões de
indivíduos diuturnamente em todo o mundo fazem postagens de notícias, de
informações, de imagens, de alegrias e dramas da vida privada, comentando
acontecimentos expressando suas opiniões sobre os mais variados temas e
questões que circunscrevem a vida e o mundo na atualidade.
Para os referidos autores, tal condição intensifica o
alastramento da sociedade da ignorância na medida em que os indivíduos majoritariamente
produzem e replicam de forma efêmera e vertiginosa informações científicas
parciais, posicionamentos preconceituosos, fake
news, dramas da vida privada,
mensagens de auto-ajuda, entre tantas outras situações. Ato continuum os indivíduos produtores e
divulgadores de conteúdos nas redes sociais não se apresentam propensos a acatar
o possível debate que sua postagem pode promover. Trata-se antes de qualquer
coisa de afirmar de forma dogmática suas verdades, sua visão de mundo, de simplesmente apagar
(deletar) o comentário de outrem, ou em casos mais exasperados de xingar e detratar
moralmente o oponente, quando não contrapor ao argumento em debate inverdades retorcendo fatos e
acontecimentos.
Sob tais prerrogativas, estamos diante da diluição do
indivíduo concebido pelo iluminismo como autônomo no uso público e privado da
razão. Estamos diante de uma massa de
seres humanos sobrecarregados de informações de toda ordem e, desprovidos do
exercício reflexivo e público da potência do pensamento. O conhecimento é resultado do acesso as informações, que submetidas a um
paciente tratamento reflexivo alcançam validade a partir da confrontação no
debate público. O esvaziamento da potência do pensamento que estamos
vivenciando anuncia a derrota do pensamento diante da emergência e hegemonia do
relativismo opinativo em curso na atualidade.
Talvez isto explique a emergência de teses criacionistas,
da desconsideração de fatos históricos, da relativização de crimes contra a
humanidade, da aceitação de opiniões grotescas emitidas por lideranças
políticas, de teorias da conspiração que denunciam um complô das esquerdas, do
socialismo, ou mesmo do comunismo para
dominar o mundo, a desconsideração de resultados de sólidas pesquisas
cientificas relativas às questões ambientais e, tantas outras obtusidades que
proliferam cotidianamente comprometendo a capacidade de pensamento e ação dos
indivíduos.
O avanço da
sociedade da ignorância tem efeitos deletérios no âmbito da política. Ela é o resultado do insulamento e
massificação dos indivíduos e conseqüente do esvaziamento do debate público.
Descrentes no poder da política em conferir sentido e finalidade ao espaço
público, ao mesmo tempo em que se coloca a serviço dos interesses privados, de
corporações, submetida aos imperativos da economia especulativa, marcada pelas
instabilidades institucionais, as massas de indivíduos tornam-se indiferentes
as questões públicas. Este fenômeno é mundial, encontramos em maior, ou
menor grau em países desenvolvidos, emergentes e subdesenvolvidos e,
nesta direção se apresenta com toda sua contundência no Brasil no processo
eleitoral em 2018 e, no governo em curso.
Ou seja, a vertiginosa proliferação da sociedade da
ignorância é uma das possibilidades de compreensão dos fenômenos eleitorais que
efetivaram nas urnas o governo de plantão. Indiferentes diante da política em
função do cansaço de promessas não cumpridas; de escândalos de corrupção; de lobbies das corporações presentes nos
três poderes que se locupletam dos
recursos públicos, os eleitores de Messias aceitaram tacitamente o fato do
candidato ao longo de toda a campanha não apresentar uma concepção de Estado,
ou de políticas públicas vinculadas a um projeto de desenvolvimento nacional.
Isto não quer dizer que os candidatos
concorrentes tivessem apresentado propostas suficientemente consistentes. Mais do que isto, seus eleitores aceitaram e
potencializaram nas redes sociais discursos eivados de preconceitos
conceituais, de opiniões rasteiras desprovidas, ou até mesmo desautorizados
cientificamente. Aceitaram anacronismos discursivos como o combate a ameaça do
socialismo, a extirpação de “ideologias” (mesmo desconhecendo a profundidade
científica e política deste conceito), a reintrodução de questões de fundo
religioso e moral em temas da alçada da ordem
pública estatal, entre tantas
outras obtusidades.
A sociedade da ignorância em que nos encontramos
inseridos demonstra apatia, indiferença, (senão simpática diante de uma suposta
boa intenção de seu líder), ao fato de que após 100 (cem) dias de governo da
junta familiar-teológica e militar não se apresentou à sociedade brasileira um
programa de governo consistente. O que se observa entre um Twitter (Twitter é a
rede social, os posts que faz nela se chamam tweet, ou, no plural, tweets) e
outro do signatário maior da nação brasileira, ou de seus filhos foi um conjunto
de ações pontuais, além de iniciativas questionáveis nas relações
internacionais. O atual governo se
movimenta alicerçado numa única proposta. Sua demanda é demográfica, contábil e
de interesse dos rentistas: a “Reforma da
Previdência”. O discurso oficial e, reproduzido pelo seu
séquito afirma que a reforma é a solução para todos os males do país.
A reforma é o “bilhete premiado” para o crescimento econômico imediato do
país. Neste monólogo governamental excluíram-se da pauta os milhões de desempregados, a ausência
de recursos para a pesquisa científica e tecnológica, a urgência de uma educação de qualidade e,
tantas outras mazelas que acometem a sociedade brasileira prejudicando seu
desenvolvimento. A proposta do governo de reforma da previdência é uma afronta
aos presentes e futuros pensionistas da iniciativa privada, ao mesmo tempo em
que é uma bela concessão à corporação dos militares e do judiciário. Mas,
sobretudo é uma exigência do
mercado, dos investidores que anseiam
pela aprovação do regime de capitalização,
ou algo assemelhado.
“O sono da razão produz monstros” (Goya). A expressão da
ignorância não tem classe social. Neste contexto, o tolo se vê autorizado a
emitir suas aligeiradas, superficiais e
preconceituosas opiniões sobre tudo e sobre todos. O esvaziamento da
política nos conduz a obtusidades de toda ordem, senão ao totalitarismo. As
experiências totalitárias não foram um fenômeno civilizatório pontual ou localizado,
mas estão circunscritas na racionalidade ocidental que viceja em nossos
dias. Na sociedade da ignorância em
curso, marcada por intransigências discursivas,
pela ausência do debate, senão pela agressão física e verbal em alguns
casos, a defesa da democracia é prática retórica. O niilismo em curso não
consegue reconhecer as exigências qualitativas do debate público (apenas reage às
postagens nas redes sociais) necessário ao
exercício da democracia, sobretudo em sociedades complexas organizadas
na forma de democracias representativas.
Para Brey, Innenarity e Mayos a sociedade da ignorância é
a manifestação de transformações civilizatórias profundas em curso. Há um longo
deserto a ser percorrido, quiçá possamos
encontrar alguns oásis. Tomar água fresca, respirar ar ameno, encontrar
amigos desarmados e dispostos ao debate. Compreender tais fenômenos suficientemente
é o desafio urgente, mas ao mesmo tempo paciente que nos assiste neste
contexto.
Dr. Sandro Luiz Bazzanella
Professor de filosofia
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