terça-feira, 23 de abril de 2019


BEM-VINDO À SOCIEDADE DA IGNORÂNCIA

 Bem-vindo à sociedade da ignorância

Iniciemos esta reflexão com o auxilio da língua portuguesa na definição do termo “ignorância” para nos afastarmos de seu uso cotidiano pejorativo e com a finalidade expressa de dirigir ofensa a outrem, ou a determinado grupo em relação à situação em específico. Outrossim, em  tempos de aligeiramento sectário do pensamento definições precisas se apresentam necessárias com o intuito de evitar interpretações equivocadas e conclusões grotescas.

“Ig.no.rân.cia (ìg) s.f.(a) 1. Estado ou condição daquele que, incapaz de utilizar as suas capacidades racionais, engana-se quanto à qualidade dos seus conhecimentos, tomando por verdade o que não passa de um erro ou falácia, expondo-se à vergonha, à crítica ou ao ridículo; falta total e completa de conhecimento ou de instrução. 3. Falta de clarividência associada à falta de bom-senso. (...) Em sentido filosófico, Sócrates afirmava que o reconhecimento da ignorância (1) já é o início da sabedoria. De fato, todos os seres humanos somos, de alguma forma, ignorantes, porque a ninguém é dado saber tudo de tudo. O mal está justamente em não ter consciência da ignorância”. (Grande Dicionário Sacconi)
É estarrecedor a vertiginosa velocidade com que a derrota do pensamento se estabelece entre indivíduos e sociedades em pleno século XXI.  Influenciados pelos ideais iluministas característicos da modernidade em sua  aposta na razão, na capacidade racional de construir consensos, de afirmar instituições e hierarquias de autoridade política e científica na interpretação e ação no mundo, apresenta-se na atualidade certa dificuldade em compreender suficientemente os fenômenos em curso.  Os fatos, os acontecimentos  anunciam sob certos aspectos a derrota do pensamento e a emergência da  sociedade da ignorância.
Recentemente li um livro de autoria de três autores espanhóis (Antônio Brey; Daniel Innerarity e Gonçal Mayos) intitulado: “La Sociedad de la Ignorancia y otros ensayos”, publicado em 2014.  Nesta obra, os autores apresentam alguns paradoxos constitutivos dos tempos em que vivemos entre eles a exponencial capacidade tecnológica de produzir, armazenar e promover o consumo de  informações, sobreposta à limitada capacidade cognitiva humana de conferir tratamento analítico e reflexo as informação recebidas. 
Para os referidos autores esta condição nos coloca diante dos limites da anunciada e almejada sociedade do conhecimento. Ou seja, o acesso tecnológico a quantidade ilimitada de informações parece não promover nos indivíduos o avanço qualitativo na compreensão dos  desafios  e das contradições nos quais se inserem as sociedades contemporâneas.  Porém,  tudo indica que a sociedade do conhecimento se efetiva em sua especificidade no âmbito das corporações empresariais, que conferem tratamento às informações estratégicas necessárias a constituição do conhecimento produtivo em seu segmento de atuação.
Outro paradoxo apresentado pelos autores a partir da revolução tecnológica incide na mudança dos padrões de comunicação entre os seres humanos.  Ou seja, antes da emergência da internet, dos telefones celulares, das redes sociais, de aplicativos como o WahtsApp, entre outros haviam centros de produção de informação e de conteúdos (rádio,  televisão, revistas e jornais impressos), a partir dos quais se estabelecia uma agenda pública, que em maior ou menor grau promovia a troca de ideias, a emissão de opiniões e, talvez até mesmo o debate sobre questões de maior apelo individual, ou social. Ou seja, talvez se possa afirmar que naquele contexto se apresentava de forma de forma mais contundente uma agenda razoavelmente pública que norteava a comunicação entre os indivíduos.
A  emergência das novas tecnologias, da internet, das redes sociais, dos aplicativos de telefonia móvel altera de forma visceral tal condição.  Os centros tradicionais de produção e difusão de informações dividem espaço com os indivíduos que transcendem sua condição de meros  consumidores de informações para tornarem-se produtores e disseminadores instantâneos de conteúdos de toda ordem.  Milhões, senão bilhões de indivíduos diuturnamente em todo o mundo fazem postagens de notícias, de informações, de imagens, de alegrias e dramas da vida privada, comentando acontecimentos expressando suas opiniões sobre os mais variados  temas e  questões que circunscrevem a vida e o mundo na atualidade.
Para os referidos autores, tal condição intensifica o alastramento da sociedade da ignorância na medida em que os indivíduos majoritariamente produzem e replicam de forma efêmera e vertiginosa informações científicas parciais, posicionamentos preconceituosos, fake news,  dramas da vida privada, mensagens de auto-ajuda, entre tantas outras situações. Ato continuum os indivíduos produtores e divulgadores de conteúdos nas redes sociais não se apresentam propensos a acatar o possível debate que sua postagem pode promover. Trata-se antes de qualquer coisa de afirmar de forma dogmática suas verdades,  sua visão de mundo, de simplesmente apagar (deletar) o comentário de outrem, ou em casos mais exasperados de xingar e detratar moralmente o oponente, quando não contrapor ao argumento em  debate inverdades retorcendo fatos e acontecimentos.
Sob tais prerrogativas, estamos diante da diluição do indivíduo concebido pelo iluminismo como autônomo no uso público e privado da razão.  Estamos diante de uma massa de seres humanos sobrecarregados de informações de toda ordem e, desprovidos do exercício reflexivo e público da potência do pensamento.  O conhecimento é resultado do  acesso as informações, que submetidas a um paciente tratamento reflexivo alcançam validade a partir da confrontação no debate público. O esvaziamento da potência do pensamento que estamos vivenciando anuncia a derrota do pensamento diante da emergência e hegemonia do relativismo opinativo em curso na atualidade.
Talvez isto explique a emergência de teses criacionistas, da desconsideração de fatos históricos, da relativização de crimes contra a humanidade, da aceitação de opiniões grotescas emitidas por lideranças políticas, de teorias da conspiração que denunciam um complô das esquerdas, do socialismo, ou mesmo do  comunismo para dominar o mundo, a desconsideração de resultados de sólidas pesquisas cientificas relativas às questões ambientais e, tantas outras obtusidades que proliferam cotidianamente comprometendo a capacidade de pensamento e ação dos indivíduos.
O avanço  da sociedade da ignorância tem efeitos deletérios no âmbito da política.  Ela é o resultado do insulamento e massificação dos indivíduos e conseqüente do esvaziamento do debate público. Descrentes no poder da política em conferir sentido e finalidade ao espaço público, ao mesmo tempo em que se coloca a serviço dos interesses privados, de corporações, submetida aos imperativos da economia especulativa, marcada pelas instabilidades institucionais, as massas de indivíduos tornam-se indiferentes as questões públicas. Este fenômeno é mundial, encontramos  em maior, ou  menor grau em países desenvolvidos, emergentes e subdesenvolvidos e, nesta direção se apresenta com toda sua contundência no Brasil no processo eleitoral em 2018 e, no governo em curso.
Ou seja, a vertiginosa proliferação da sociedade da ignorância é uma das possibilidades de compreensão dos fenômenos eleitorais que efetivaram nas urnas o governo de plantão. Indiferentes diante da política em função do cansaço de promessas não cumpridas; de escândalos de corrupção; de lobbies das corporações presentes nos três poderes  que se locupletam dos recursos públicos, os eleitores de Messias aceitaram tacitamente o fato do candidato ao longo de toda a campanha não apresentar uma concepção de Estado, ou de políticas públicas vinculadas a um projeto de desenvolvimento nacional. Isto não  quer dizer que os candidatos concorrentes tivessem apresentado propostas suficientemente consistentes.  Mais do que isto, seus eleitores aceitaram e potencializaram nas redes sociais discursos eivados de preconceitos conceituais, de opiniões rasteiras desprovidas, ou até mesmo desautorizados cientificamente. Aceitaram anacronismos discursivos como o combate a ameaça do socialismo, a extirpação de “ideologias” (mesmo desconhecendo a profundidade científica e política deste conceito), a reintrodução de questões de fundo religioso e moral em temas da alçada da ordem  pública estatal,   entre tantas outras obtusidades.
A sociedade da ignorância em que nos encontramos inseridos demonstra apatia, indiferença, (senão simpática diante de uma suposta boa intenção de seu líder), ao fato de que após 100 (cem) dias de governo da junta familiar-teológica e militar não se apresentou à sociedade brasileira um programa de governo consistente. O que se observa entre um Twitter (Twitter é a rede social, os posts que faz nela se chamam tweet, ou, no plural, tweets) e outro do signatário maior da nação brasileira, ou de seus filhos foi um conjunto de ações pontuais, além de iniciativas questionáveis nas relações internacionais.  O atual governo se movimenta alicerçado numa única proposta. Sua demanda é demográfica, contábil e de interesse dos rentistas: a “Reforma da  Previdência”.  O  discurso oficial e, reproduzido pelo seu séquito afirma que a reforma é a solução para todos os males  do país.  A reforma é o “bilhete premiado” para o crescimento econômico imediato do país. Neste monólogo governamental excluíram-se da  pauta os milhões de desempregados, a ausência de recursos para a pesquisa científica e tecnológica, a  urgência de uma educação de qualidade  e,  tantas outras mazelas que acometem a sociedade brasileira prejudicando seu desenvolvimento. A proposta do governo de reforma da previdência é uma afronta aos presentes e futuros pensionistas da iniciativa privada, ao mesmo tempo em que é uma bela concessão à corporação dos militares e do judiciário. Mas, sobretudo é uma exigência  do mercado,  dos investidores que anseiam pela aprovação do regime de capitalização,  ou algo assemelhado.
“O sono da razão produz monstros” (Goya). A expressão da ignorância não tem classe social. Neste contexto, o tolo se vê autorizado a emitir suas aligeiradas, superficiais e  preconceituosas opiniões sobre tudo e sobre todos. O esvaziamento da política nos conduz a obtusidades de toda ordem, senão ao totalitarismo. As experiências totalitárias não foram um fenômeno civilizatório pontual ou localizado, mas estão circunscritas na racionalidade ocidental que viceja em nossos dias.  Na sociedade da ignorância em curso, marcada por intransigências discursivas,  pela ausência do debate, senão pela agressão física e verbal em alguns casos, a defesa da democracia é prática retórica. O niilismo em curso não consegue reconhecer as exigências qualitativas do debate público (apenas reage às postagens nas redes sociais) necessário ao  exercício da democracia, sobretudo em sociedades complexas organizadas na forma de democracias representativas.
Para Brey, Innenarity e Mayos a sociedade da ignorância é a manifestação de transformações civilizatórias profundas em curso. Há um longo deserto  a ser percorrido, quiçá possamos encontrar alguns oásis. Tomar água fresca, respirar ar ameno, encontrar amigos  desarmados e dispostos  ao debate. Compreender tais fenômenos suficientemente é o desafio urgente, mas ao mesmo tempo paciente que nos assiste neste contexto.

Dr. Sandro Luiz Bazzanella
Professor de filosofia





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