Economia:
mais próxima dos números que das pessoas?
Pesquisadora adverte: área foi migrada para
ciências “exatas” para silenciar um debate crucial: distribuir riquezas é um
processo político – e não individual. Crises, portanto, não são resolvidas só
com dados, mas com a redução das desigualdades.
Por estar alicerçada
em dados matemáticos e indicadores numéricos, a economia que vivemos na
atualidade parece elementarmente ser derivada das ditas ciências exatas. Por
trás dessa lógica está a de que a saída é sempre pelos números, de que é sempre
possível conceber uma equação que demonstre a solução para os problemas. Esta,
para a professora Esther Dweck, é uma visão estreita do campo e assumir isso é
abrir espaço para um receituário neoliberal que busca curar as crises. “A
economia é uma ciência social aplicada. Eu não tenho dúvidas quanto a isso”,
dispara. “O objeto da teoria econômica é entender como a sociedade garante os
meios materiais para sua sobrevivência e reprodução. Portanto, a economia
aborda como as sociedades garantiram a produção e a distribuição desses meios
materiais”, explica.
Entretanto,
na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, observa que desde o final do
século XIX há essa tensão que puxa o campo da economia para as ciências exatas.
“Naquela época, mudaram o nome da ciência de ‘Economia Política’, como era
definida pelos economistas clássicos, para ‘Economics’
(em inglês) para tentar aproximar das ciências exatas. Uma das mudanças
importantes desse período foi alterar a discussão de distribuição como um
processo político, como visto por Smith, Ricardo e Marx, para um processo
estritamente ‘econômico’”, detalha. E conclui: “a lógica passa a ser uma visão
individualista, onde cada agente será remunerado de acordo com as suas
capacidades”.
Fica claro
na abordagem de Dweck é que a assunção dessas perspectivas se torna terreno
fértil para o emprego do que chama de “receituário neoliberal” que foi sendo
imposto aos Estados. “Foram liberalização financeira, liberalização comercial,
privatização, liberalização dos fluxos financeiros, desregulamentação dos
mercados financeiros domésticos e uma mudança na lógica da política fiscal, que
passou a ter como único objetivo, ou objetivo principal, a sustentabilidade da
dívida pública”, destaca. E qual o objetivo? Para a professora, a meta é
“garantir a estabilidade e o retorno esperado do capital, em consonância com
abertura financeira”. Por isso, defende: “é preciso colocar no centro de um
novo modelo de desenvolvimento a redução da desigualdade de renda e aumento do
investimento social, ambos fundamentais para acelerar o crescimento econômico
de forma mais inclusiva e ambientalmente sustentável”.
Esther
Dweck é professora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ, possui doutorado em Economia pela UFRJ, com período-sanduíche
no LEM da Scuola SantAnna, em Pisa, Itália. Entre 2011 e 2016, atuou no
Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, no cargo de chefe da Assessoria
Econômica e como secretária de Orçamento Federal
***
IHU On-Line – Até que
ponto a Economia opera como ciência social aplicada, portanto voltada ao
bem-estar coletivo, e a partir de que ponto ela se converte em um sistema
tecnocrático de financeirização da vida?
Esther Dweck – A economia é
uma ciência social aplicada. Eu não tenho dúvidas quanto a isso. O objeto da
teoria econômica é entender como a sociedade garante os meios materiais para
sua sobrevivência e reprodução. Portanto, a economia aborda como as sociedades
garantiram a produção e a distribuição desses meios materiais.
No
entanto, desde o final do século XIX, há uma tentativa de equiparar a economia
às ciências exatas. Naquela época, mudaram o nome da ciência de “Economia
Política”, como era definida pelos economistas clássicos, para “Economics”
(em inglês) para tentar aproximar das ciências exatas. Uma das mudanças
importantes desse período foi alterar a discussão de distribuição como um
processo político, como visto por Smith, Ricardo e Marx, para um processo
estritamente “econômico”. Nesse sentido, a lógica passa a ser uma visão
individualista, onde cada agente será remunerado de acordo com as suas
capacidades.
IHU On-Line – Quais
foram os caminhos que levaram o debate econômico e, em certo sentido, a teoria
econômica à perspectiva utilitarista como saída única?
Esther Dweck – Essa visão do
final do século XIX culminou com a definição estrita da ciência econômica, por
Lionel Robbins, em 1932, como: “a ciência que estuda as formas de comportamento
humano resultantes da relação existente entre as ilimitadas necessidades a
satisfazer e os recursos que, embora escassos, se prestam a usos alternativos”.
No entanto, essa visão foi questionada a partir dos acontecimentos das décadas
de 1930, devido à grande depressão e com o desfecho político trágico que levou
à II Guerra Mundial.
As visões
alternativas sobre economia, que sempre caminharam em paralelo à teoria mais
convencional, ainda que marginalizadas, ganharam espaço e contribuíram para uma
mudança quanto à formulação do objeto da economia. O colapso social das décadas
de 1930 e 1940 levou a um consenso dentro da economia de que o sistema
capitalista não era capaz de garantir a distribuição equitativa da riqueza, nem
mesmo garantir a produção de forma sustentada. Mesmo dentro de uma perspectiva
mais convencional, os problemas apontados por Keynes ao final da Teoria Geral –
incapacidade de garantir o pleno emprego e a tendência à concentração de renda
– ganharam destaque nas proposições de política econômica depois da II Guerra
Mundial.
A
constituição de Estados de Bem-Estar Social e outras políticas ativas de
redução das flutuações econômicas passaram a fazer parte das recomendações de
muitos economistas como forma de enfrentar esses problemas. Sabemos que,
enquanto essas políticas foram adotadas, o mundo passou pela chamada “Era de
Ouro do Capitalismo”, com crescimento econômico e redução das desigualdades.
Rompimento
No
entanto, esse consenso teórico e político foi rompido a partir da década de
1970. Como ressaltam Dardot e Laval, a partir dos governos conservadores de
Reagan e Thatcher houve um questionamento sobre a regulação keynesiana
macroeconômica, a propriedade pública das empresas, o sistema fiscal
progressivo, a proteção social, o enquadramento do setor privado por
regulamentações estritas, especialmente em matéria de direito trabalhista e representação
dos assalariados – embora a primeira experiência mundial dessa nova visão tenha
sido o Chile, no governo Pinochet, ainda no início dos anos 1970.
IHU On-Line – De que
forma o neoliberalismo e a financeirização transformaram, ao mesmo tempo, a
economia em uma ciência mais complexa – no sentido de que ninguém entende bem
seus mecanismos de funcionamento – e a teoria econômica em uma ciência mais
vulgar, pobre intelectualmente – no sentido de que há cada vez menos senso
crítico?
Esther Dweck – As políticas
que foram sendo impostas aos países a partir desse receituário neoliberal foram
liberalização financeira, liberalização comercial, privatização, liberalização
dos fluxos financeiros, desregulamentação dos mercados financeiros domésticos e
uma mudança na lógica da política fiscal, que passou a ter como único objetivo,
ou objetivo principal, a sustentabilidade da dívida pública, de forma a
garantir a estabilidade e o retorno esperado do capital, em consonância com
abertura financeira. Assim, a política fiscal deixa de ter como objetivo a
estabilidade do crescimento e a distribuição da renda e passa a ser a fiadora
do espaço de valorização do capital.
Nesse
sentido, há uma mudança na correlação de forças internas a cada país, os
Estados vão aos poucos perdendo a capacidade de coordenar os investimentos
públicos e privados, perdem capacidade de fomentar o crescimento e a geração de
emprego e há uma maior suscetibilidade das economias nacionais a crises
internas e externas. A consequência, por um lado, é de uma perda de autonomia
nas políticas econômicas, as economias nacionais ficam mais sujeitas às
flutuações nos mercados internacionais e aumenta a complexidade na
administração das economias nacionais, dos países emergentes.
Por outro
lado, desde o governo Thatcher, procura-se passar a ideia de que não há
alternativa econômica a essa visão, o que ficou conhecido como TINA (There
is no alternative). No entanto, países como China, e mesmo outros
asiáticos, demonstraram que esse caminho proposto nas décadas de 1980 e 1990
não era o único. Depois da crise asiática, em 1997, houve alguma reversão dos
processos de abertura dos países asiáticos, que passaram a se proteger mais.
Aqui no Brasil, a partir de 2003, aproveitamos o período de forte liquidez
internacional para acumular reservas e paramos o caminho de maior abertura e
integração aos países centrais. Adotamos uma estratégia mais centrada no
mercado interno, por meio de políticas de redistribuição de renda, e demos um
forte impulso aos investimentos públicos e à coordenação dos investimentos pelo
Estado. Infelizmente, depois de 2016, mesmo com os resultados positivos dessa
estratégia, voltamos a uma total submissão aos preceitos neoliberais.
IHU On-Line – De que
forma a Emenda Constitucional 95, que restringe os recursos orçamentários, a
reforma trabalhista e a proposta de reforma da Previdência impactam e geram
restrições às políticas econômicas de Estado em diferentes níveis?
Esther Dweck – Essas três
grandes reformas são um exemplo dessa nova submissão. Na realidade, são uma
destruição do que ainda tínhamos de uma estrutura institucional que permitia
pensar em um projeto mais inclusivo para o Brasil. Vejamos, como apresentamos
no livro Economia para Poucos: Impactos
Sociais da Austeridade e Alternativas para o Brasil, que organizei
em conjunto com Pedro Rossi e Ana Luiza Matos de Oliveira, a EC 95/2016 é uma
destruição da Constituição de 1988. A EC 95/2016 institui uma política de
austeridade permanente. Ao impedir um crescimento real dos gastos primários
(aqueles que incluem benefícios sociais, saúde, educação, justiça, cultura,
segurança pública, entre outros), ela impõe um corte permanente em termos dos
gastos por cidadão e como proporção do PIB. Além disso, é uma política
recessiva, que acentua o quadro de estagnação econômica por que estamos
passando.
A emenda
retira o poder do congresso e da sociedade de moldar o tamanho do orçamento
público e provoca um acirramento do conflito distributivo dentro do orçamento.
Assim, impõe outro projeto de país, incompatível com aquele almejado pela
Constituição de 1988. Da forma como está, será muito difícil cumprir o limite
de gastos estipulado pela EC, mas vai permitir um projeto permanente de ajuste
liberal, pois exige diversas outras reformas. Na própria emenda, já foram
reduzidos os mínimos constitucionais de saúde e educação. Isso já está causando
uma redução do financiamento da atenção básica, com consequências trágicas,
como o aumento da mortalidade infantil e materna.
No livro,
os diversos artigos apresentam os resultados desastrosos que já estão ocorrendo
e os que ainda vão acontecer nas mais diversas áreas. Dentre as reformas
impostas pela EC 95, a reforma da Previdência foi a que veio na sequência. A
proposta de reforma apresentada pelo governo Bolsonaro, assim como a de Temer,
com o discurso falacioso de corte dos privilégios, na verdade é um ataque ao
regime solidário e de repartição atual brasileiro. O Regime de Previdência
Social brasileiro é um dos importantes instrumentos de transferências sociais e
quase 70% dos benefícios se concentram em um salário mínimo. Ao aumentar o
tempo mínimo de contribuição, alterar as regras da aposentadoria rural e mudar
o critério para o direito Benefício de Prestação Continuada – BPC, a proposta
atinge os mais pobres e desmonta um importante colchão de prevenção de crise
social no Brasil.
Finalmente,
a reforma trabalhista procura retirar todo o poder de barganha dos
trabalhadores, ao procurar igualar o mercado formal ao informal. Isso acaba
desprotegendo os trabalhadores e beneficiando os patrões.
IHU On-Line – Quais
são as consequências sociais do aprofundamento das políticas neoliberais? O que
a experiência em outros países tem a nos ensinar?
Esther Dweck – O resultado é
muito claro e já estamos vendo no Brasil. Assim como ocorreu em outras partes
do mundo, principalmente após 2010, essas políticas levam à recessão econômica
e ao caos social. Na Europa e nos Estados Unidos, depois do retorno às
políticas de austeridade em 2010, diversos trabalhos têm apontado como isso
gerou três resultados claros:
1) a
recuperação mais lenta de uma crise econômica na história;
2) um
forte aumento da desigualdade com piora de diversos indicadores sociais;
3) piora
nos resultados fiscais, o que vem sendo chamado de ajuste fiscal
autodestrutivo, ou seja, o ajuste fiscal acaba contribuindo para uma
recuperação lenta ou para uma acentuação da crise e isso reduz ainda mais a
arrecadação tributária.
Como
sabemos, esses resultados estão presentes no Brasil, portanto essas políticas
trazem impactos negativos nas três esferas: econômica, social e fiscal.
IHU On-Line – Como
superar a recessão econômica sem cair em um desenvolvimentismo, não raro
assassino e ambientalmente devastador? Qual nossa perspectiva de futuro?
Esther Dweck – Na conclusão do
livro que mencionei acima, apresentamos um esboço de um projeto social de
desenvolvimento econômico sustentável. Em um livro lançado recentemente pela
Cepal, Alternativas para o
desenvolvimento brasileiro: Novos horizontes para a mudança estrutural com
igualdade, há um conjunto de textos que apontam nessa direção. O
meu texto com o Pedro Rossi nesse livro, “Políticas
sociais, distribuição, crescimento e mudança estrutural”, avança na
ideia que desenvolvemos antes. Nesse texto apontamos que é preciso colocar no
centro de um novo modelo de desenvolvimento a redução da desigualdade de renda
e aumento do investimento social, ambos fundamentais para acelerar o
crescimento econômico de forma mais inclusiva e ambientalmente sustentável.
A lógica
que queremos demonstrar é que esse é um projeto que não apenas garante maior
justiça social e reparação histórica à enorme desigualdade brasileira, como
também tem enorme potencial de dinamizar a economia dada a enorme concentração
de renda e a carência de infraestrutura social. Nesse sentido, há um potencial
de décadas de investimentos sociais a serem executados para que possamos
atingir níveis adequados, e há um longo caminho redistributivo para que os
níveis de desigualdade sejam aceitáveis.
Enfim, é
cada vez mais importante repensar o modelo de desenvolvimento e deixar de lado
a falsa dicotomia entre a questão social e ambiental e a questão econômica se
quisermos garantir de fato uma mudança estrutural com igualdade. Nesse livro
também tem um texto da Camila Gramkow muito interessante sobre a questão
ambiental: “De obstáculo a motor do
desenvolvimento econômico: o papel da agenda climática no desenvolvimento”,
que eu acho que vale a pena como forma de repensar o papel da agenda ambiental
no Brasil.
IHU On-Line – O papa
Francisco vem defendendo a constituição de uma nova lógica econômica,
concebendo uma “economia que não mata”. Como a senhora apreende essas críticas
de Bergoglio ao atual sistema econômico? E qual a viabilidade, do ponto de
vista do campo econômico, da implementação de uma economia eticamente
responsável, como proposto por ele nos debates que devem ocorrer em Assis no
ano que vem?
Esther Dweck – Acho que há
diversos economistas dispostos a se engajar nessa agenda de “estudar e praticar
uma economia diferente, que faz viver e não mata, inclui e não exclui, humaniza
e não desumaniza, cuida da criação e não a depreda”. Infelizmente, não é por
onde têm caminhado as políticas econômicas adotadas pelos dirigentes das
principais economias mundiais, mas há sim diversos economistas dispostos a
repensar a economia. Acho que a iniciativa do Institute for New Economic
Thinking – INET é uma dessas aberturas para tentarmos repensar a forma de
ensinar e praticar economia.
Caso
contrário, continuaremos nessa trajetória de um mundo cada vez mais polarizado,
com as desigualdades crescentes e incapaz de garantir o mínimo para
sobrevivência para grande parte da população. A consequência desse descaso por
parte das autoridades, como podemos ver no Brasil, é um aumento da violência e
o fim de qualquer empatia entre as pessoas. O fato de que muitos acham normal o
Estado estar autorizado a fazer uma verdadeira guerra aos jovens negros e
pobres brasileiros é um sintoma de que a nossa sociedade está doente.
IHU On-Line – Quais
são os desafios para construir uma economia eticamente responsável, capaz de
defender de forma irrestrita as vidas humana, animal e do meio ambiente?
Esther Dweck – Existem muitos
grupos interessados no avanço do projeto neoliberal Brasil, um projeto que
acaba com os mecanismos de proteção social e de redistribuição de renda. Não é
à toa que as elites brasileiras se uniram em torno de um projeto de destruição
do tecido social, de venda dos ativos nacionais, perda de soberania e
ambientalmente irresponsável. Infelizmente, ainda não há uma consciência por
grande parte da população dos efeitos dessa política sobre a vida da grande
maioria da população e esses grupos estão conseguindo garantir o seu projeto de
uma economia para poucos, para muito poucos.
Fonte:
Esther
Dweck entrevistada por Ricardo Machado, no IHU
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