O Ethos do Brasileiro e a Copa do Mundo
Talvez se possa afirmar que
entre os diversos esportes coletivos, o futebol é o esporte que melhor nos
permite conhecer aspectos do ethos brasileiro. Inúmeros são os estudos acadêmicos, os
relatos jornalísticos, as obras cinematográficas, que reverberam percepções e
argumentos demonstrando a forma como nos representamos pelo futebol. Nesta direção, diversos estudiosos do tema
ressaltam que a conquista da Copa de 1958 na Suécia, conferiu ao brasileiro um
sentimento de unidade nacional. Passamos a ser uma nação que se viu
representada pela sua seleção. Passamos a ser uma nação reconhecida
“mundialmente” pelo fato de sermos habilidosos no futebol. Autoestima advinda
do fato de que somos reconhecidos pelo sabemos fazer de melhor: “jogar
futebol”.
Outro aspecto que se apresenta
nesta direção é o fato de que no futebol reforçamos “o mito da democracia
racial.” Não importa a etnia do jogador, se for bom jogador de futebol é
elevado durante os noventa minutos de uma partida a condição de herói
nacional. Se socialmente, economicamente
e, politicamente os espaços de inserção e participação social são restritos à
determinados grupos étnicos, no futebol tais categorias sociais cerceadas de
acesso na escala social, podem ter a sua chance na vida e, assim amenizamos as
contradições sociais, as diversas formas de exclusão social presentes na gênese
da conformação social brasileira.
É motivo de orgulho nacional,
quando outros povos afirmam, que o futebol brasileiro expressa a alegria e a
jovialidade do brasileiro, de um povo hospitaleiro que expressa no jogo a alegria
de viver. Há quem compare que a habilidade do drible de nossos jogadores é o
resultado, ou a síntese da miscigenação dos povos nativos, com os negros
trazidos a estas terras em regime de escravidão, com o ímpeto colonizador dos
povos que se estabeleceram nas terras do novo mundo para fazer a vida. Mais
ainda, a facilidade em driblar o adversário seria resultante de nossa capacidade
cotidiana de nos livrarmos das agruras, dos dissabores, das dificuldades que a
vida nos impõe. Ou ainda, da capacidade de improvisar diante das mais diversas
situações, de dar um jeitinho, onde parece não haver jeito, ou forma de
contornar a situação, ou os problemas. Em contrapartida temos dificuldades na
defesa. A defesa exige capacidade de
interpretar a estratégia do atacante, resolução imediata, eficiente e eficaz do
risco de gol que se apresenta nos pés do adversário. Elegantemente e/ou
afrontadamente desarmar-lhe a possibilidade da jogada. Quem joga na zaga não
tem vida fácil. Dificilmente se reconhece o zagueiro na mesma intensidade do
atacante.
Outro aspecto do ethos brasileiro, que se revela no
futebol é de diante da derrota imputar culpa ao treinador. Time que sofre
derrotas consecutivas troca o treinador. Não se confere ao técnico o tempo
devido para que possa demonstrar sua proposta de trabalho, seu estilo e suas
estratégias de conformação da equipe. Novo treinador é contratado, como se o
mesmo tivesse de antemão a solução para o aparente fracasso da equipe,
desconsiderando-se fragilidades financeiras do clube e, por extensão do elenco
de jogadores a disposição do treinador, entre outras causas. Assim,
transfere-se ao técnico a figura do grande pai, aquele que diz o que tem que
ser feito para que os resultados propositivos possam ser alcançados de
imediato. Desconsidera-se o tempo devido para que se constituía uma
racionalidade futebolística. Não se confere importância ao planejamento de
curto, médio e longo prazo em relação ao que se espera da equipe. Tudo é feito
de improviso. Somos especialistas na arte do improviso e, quando algo não sai
de acordo com as expectativas achamos corriqueiras explicações: “é assim
mesmo”, “falta de sorte”, “incompetência do treinador”. Exemplo sintomático destas
variáveis é como chamamos o atual técnico da seleção brasileira “Felipão”. Talvez, se possa dizer que o “Felipão”
intuiu, ou compreendeu este aspecto do ethos
do brasileiro. Um povo que gosta de obedecer, que esta sempre a procura de
um salvador da pátria. Esse povo precisa de um “grande pai”, que tem cara de
durão com traços de líder autoritário, mas, que sabe o que esta fazendo. Acredita-se
e se aceita sua liderança pelo fato de manda porque sabe mandar. Bate com uma
mão e afaga com a outra. Um líder
conservador, não muito afeito ao debate, à criatividade, ou ao futebol arte. Um
líder de resultados, conquistado sob suas ordens, mas com muito esforço, custe
o que custar. Um líder que valoriza a família: “Família Escolari”, ou “Família
Felipão” nos jargões da imprensa.
A copa do mundo em curso pode
ser um bom momento para compreendermos aspectos de nosso modo de ser
brasileiros (ethos). Nos últimos
meses convivemos com discursos e análises do senso comum questionando os gastos
governamentais com obras exigidas pela FIFA para realização do evento. Aqui nosso modo de ser brasileiros, de não
levar a sério a urgência de uma educação de qualidade, da pressa ao emitir um
juízo, da desconsideração com o uso preciso dos números e, de argumentos
qualificados, da confusão entre as esferas pública e privada se mostraram em
toda sua potencialidade. E, o mais constrangedor desta manifestação de nosso
modo de ser, se apresenta nas seguintes perspectivas: Na miríade de
informações, de estudos sobre os impactos deste mega evento, a disposição dos
brasileiros, seja no âmbito econômico, de geração de emprego e renda, de
possibilidades de desenvolvimento do turismo nacional e estrangeiro, de
ampliação cultural dos brasileiros ao acolher milhares de torcedores de outras nacionalidades,
bem como o fato de ter nossa imagem sendo exportada pelo mundo afora, entre
outras questões relevantes são desconsideradas nos apressados discursos
midiáticos e cotidianos.
Parece que subitamente, meses
antes da realização do evento descobrimos que fomos roubados em acordos e
contratos escusos entre governo e iniciativa privada. Como se a realização da
copa do mundo fosse uma estratégia de reeleição da Dilma. E, as mais toscas
expressões deste pensamento afirmam: “Se o Brasil ganhar a copa a Dilma esta
reeleita”, conjecturando que há um acordo no submundo entre governo e Fifa,
para manipular resultados dos jogos, favorecendo o Brasil na final. Ou ainda, da
necessidade que temos, de tempos em tempos de apontar para a incompetência do
Estado brasileiro, incapaz de planejar, de executar ações e obras desta
magnitude e envergadura. Desconsiderando que o Estado é a manifestação objetiva
de nosso modo de ser. Tudo se passa como
se a Copa do Mundo fosse uma conspiração do governo com a Fifa para retirar
dinheiro da educação, da saúde, da segurança, roubando o indefeso, o inocente e
cordial homem brasileiro.
Talvez, mas não alimentemos
esperanças e expectativas, a Copa do Mundo pode nos oportunizar a percepção de que necessitamos
transcender aspectos de nosso ethos
se quisermos avançar na construção de uma sociedade brasileira consistente,
proativa, inovadora, zelosa pela coisa pública e incentivadora da iniciativa
privada e, da liberdade dos indivíduos de se fazerem. É preciso superar este
sentimento, este modo de representar-se pautado na menoridade, na vitimização,
no messianismo, na desconfiança, na má vontade em querer e fazer-se respeitado
por aquilo que se pensa e, a partir do qual se age por própria conta e risco.
Finalizando convoco o filósofo
prussiano Imannuel Kant (1724-1804). É preciso que os brasileiros abandonem
definitivamente a comodidade da menoridade. Ser menor é confortável. Não é
preciso assumir os riscos e os custos das decisões de quem é maior. É só
obedecer. A comodidade da menoridade permite exportar a culpa pelo fracasso,
bem como esperar que outro pai nos diga o que devemos fazer. Se maior, autônomo,
significa assumir com responsabilidade o uso privado e público da razão. E para
isto precisamos estudar muito. Não tem mistério: a equação é a seguinte: muita
educação, menos má vontade em compreender a fundo os fatos e acontecimentos e,
disposição para reproduzir opiniões corriqueiras de baixa qualidade reflexiva.
Dr. Sandro Luiz
Bazzanella
Professor de Filosofia
Coordenador do
Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional da UnC
Líder do Grupo de
Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas (Cnpq)
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