Paradoxos e Desafios do Estado Democrático de Direito
Talvez se possa afirmar, sem riscos de cometer equívoco, que um
dos conceitos centrais do Estado Democrático de Direito em que estamos
inseridos é o conceito de cidadania. Convido o ilustre leitor desta coluna, a
retomar sucintamente a origem deste conceito, manifesto no berço da Civilização
Ocidental, entre os Gregos Antigos. Mais especificamente com os atenienses por
volta do século III a.C. No contexto da cidade estado de Atenas, o exercício da
cidadania apresentava-se como a mais nobre tarefa que podia ser assumida por um
homem livre. Mais do que isto, ser
cidadão era conferir sentido à existência individual, na medida em que se
comprometia com o espaço público, com a cidade-comunidade (polis). Era inerente a condição de cidadão o amor (philia) à cidade, envolvendo-se nas
“ágoras” (praças públicas) com debates e deliberações de ordem legislativa e
executiva, que incidiam na organização e preservação da “polis”. O apreço do cidadão com a manutenção e a estética do
espaço público alcançava tal grau de comprometimento, que diante de um conflito
com povos vizinhos, os cidadãos conformavam a linha de frente do exército,
preferindo se suicidar no campo de batalha em caso de derrota, à ver a sua polis subjugada.
Passados dois mil e quinhentos anos, na atualidade, o conceito de
cidadania apresenta-se entre nós a partir de outras perspectivas. As “ágoras públicas” dos atenienses, em que os
cidadãos praticavam a democracia direta não existem mais. Em sociedades como a
brasileira, constituída por duzentos milhões de seres humanos tornou-se
inviável o debate e a deliberação ampla e irrestrita em torno de questões de
ordem nacional. Nossa democracia apresenta-se então na forma representativa.
Elegemos entre partidos e seus candidatos nossos representantes para ocuparem a
“ágora”, neste caso o Congrego Nacional.
Mas, ainda é preciso observar outros elementos para compreender
aspectos constitutivos de nossa concepção cidadania na atualidade, entre eles:
1. As sociedades modernas se conformaram em sociedades de indivíduos inseridos
na dinâmica de plena produção e consumo. 2. Os indivíduos conferem ao trabalho
o sentido de suas existências. Adam Smith afirma que o trabalho é condição da
riqueza das nações. Nação é o lócus da natalidade, o lugar onde nascemos e,
passamos a compor a população, importante recurso para fortalecimento e justificação
do Estado. Marx, chega a afirmar que o trabalho nos torna humanos. Ao modificar
a natureza por meio do trabalho para acolher nossas demandas, nos humanizamos.
Enfim, o trabalho, entendido como o modo de ser do homem moderno, como
atividade produtiva realizada por indivíduos sob gestão pública, ou privada e,
que consome parte significativa de nosso tempo, de nossas energias. 3. Neste
contexto societário, os indivíduos estão majoritariamente preocupados com seu
trabalho, com sua sobrevivência, com suas condições de possibilidade de acesso
ao consumo. Esvazia-se assim, de forma contundente o espaço público, a
política. Lembremo-nos de que política é a ação entre seres humanos em vista da
promoção do bem viver no espaço público e, isto exige capacidade e disposição
para o diálogo, para a confiança e cooperação na ação.
A partir destes pressupostos, nosso conceito de cidadania
restringiu a “direitos e deveres” “concedidos” pelo “Estado democrático de
direito” que vigia, controla e administra a vida e a morte dos indivíduos e da
população. Nossa sociedade de indivíduos reclama cada vez mais direitos. Tudo
se transforma em direitos do cidadão. E é dever do cidadão requerer
direitos. Direitos de toda ordem,
inflacionando juridicamente as relações sociais, bem como em alguns casos
sobrecarregando o poder judiciário e, por extensão os cofres públicos. Parece
que nossa sociedade de indivíduos troca a possibilidade da liberdade política
em praça pública, por promessas de segurança, calcadas em prerrogativas
jurídicas, que além de inflacionarem a vida, retiram dos indivíduos e da
sociedade a possibilidade de estabelecer consensos em base a razão ético-comunicativa
(Habermas) em torno dos interesses coletivos, públicos, societários. Esta aposta/crença
na judicialização das relações sociais, da vida, reside na concepção de justiça
presente no senso comum, que de forma alguma é a concepção de justiça do
direito e, menos ainda é a concepção de justiça divina. Esta exclusivamente
depende da fé.
Sob tais argumentos, de redutibilidade de nossa concepção de
cidadania é que podemos considerar o fenômeno que se manifesta em nossas
sociedades hodiernas, de esvaziamento da política, mais especificamente da
perda de referências em relação a importância do poder legislativo. É nas
Câmaras de Vereadores, na Assembléia Parlamentar Estadual, no Congresso
Nacional Bicameral: Câmara dos Deputados Federais e Senado, que os interesses
da sociedade brasileira são efetivamente debatidos, disputados e, afirmados ou
não. O papel do poder legislativo em suas diversas instâncias é garantia da
efetividade da democracia representativa em que estamos inseridos. Acompanhar o debate, a ação de vereadores,
deputados e senadores é tarefa nobre da condição de cidadãos. Ou ainda dito de
forma negativa, ou melhor, inversa: o esvaziamento, a perda de referência da
importância do poder legislativo está intimamente vinculada as posturas de insulamento
dos indivíduos, preocupados, ou ocupados excessivamente como sua vida privada,
com seus importantes, mas limitados projetos de realização pessoais.
Insista-se no fato determinante da política, de
que articular, construir o espaço público que permita o bem viver, a busca da
felicidade, do orgulho de ser diante de outras cidades-comunidades, povos e,
culturas, requer a ação política de seres humanos dispostos à confiança e a
cooperação na vida em sociedade. Não basta votar no deputado é preciso acompanhar
seu trabalho, suas ações, comprometê-lo diuturnamente com os interesses da polis. É importante que cada indivíduo,
perceba-se membro da comunidade, responsável pela sua cidade-comunidade,
disposto a buscar informações sobre a gestão pública executiva e legislativa,
procurar compreendê-las e, sobretudo, dialogar com seus colegas de trabalho,
com o vizinho, com a associação do bairro, com o vereador, com o deputado. E
após o belo evento da copa mundo, como campões ou não, compete-nos como
brasileiros assumir de forma consistente nossa condição de cidadãos e nos
envolvermos intensamente no debate das eleições nacionais, reafirmando e
comprometendo-nos com a revitalização do poder legislativo, entre outros
desafios.
Sandro Luiz Bazzanella – Professor de
Filosofia da Universidade do Contestado.
Coordenador do Programa de Mestrado em
Desenvolvimento Regional
Líder do Grupo de Pesquisa
Interdisciplinar em Ciências Humanas – Cnpq.
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