Admirável trabalho novo
Os impactos
econômicos e sociais das mudanças no mundo do trabalho e a
posição de especialistas e profissionais diante dessas transformações
Ao longo dos últimos anos vem se observando, em
diversas partes do mundo, uma modificação nas formas e estruturas de trabalho.
Se por um lado percebemos a alta taxa de desemprego, a falta de estabilidade
nas empresas, a terceirização e a ausência de registros profissionais, de
outro ouvimos de consultores promessas de mais flexibilidade nos horários de
trabalho, maior autonomia na produção, mais capacitação e interação do
profissional. Devemos boa parte dessas modificações às mudanças dos paradigmas
do trabalho, às inovações tecnológicas e à globalização, que rompeu com as
barreiras da distância. Quais são os impactos positivos e os negativos dessas
modificações?
Assim como a sociedade industrial do início do
século XX se viu centrada nas relações trabalhador e indústria, vivemos hoje
uma nova dinâmica social moldada não só pela era digital, na qual outras interações
se criam e transformam a forma de vermos o mundo, mas pela rapidez e instabilidade
derivada dela. Entretanto, essas mesmas armas que em certo aspecto facilitam,
em outros tantos dificultam, exigindo ainda mais dos profissionais, que agora
não se sustentam ao dominar apenas o conhecimento de sua função. Além disso,
existe um outro fator de angústia: ter de lidar com a falta de vínculos, o desemprego
e a efemeridade dos contratos trabalhistas.
As modificações nas relações de trabalho não afetam apenas o setor
profissional, mas a dinâmica social. "O mundo vive transformações
radicais, a produção do conhecimento e as conquistas tecnológicas assumem uma
velocidade muito intensa. Estas modificações influenciam o mercado de trabalho
exigindo um profissional que se atualize constantemente e que se aproprie da
tecnologia a serviço de seu foco profissional", exemplifica o psicólogo
Alexandre Rivero.
Entretanto, como afirma o sociólogo e historiador
norte-americano Richard Sennett, professor de Sociologia e História na London
School of Economics e autor de um livro clássico sobre o mundo do trabalho,
"A corrosão do caráter: conseqüências pessoais do trabalho no novo
capitalismo" (Editora Record), os últimos anos não foram os melhores para
os trabalhadores. Um dos fatores é o aumento do volume de atividades sem a
elevação compatível de salário e benefícios. O sociólogo também vê com preocupação
uma das principais mudanças na organização do trabalho, que é a perda da
identidade. Sennett aponta ainda para questões como a falta de vínculo com o
local de trabalho, a diminuição, ou menor, a perda dos laços de solidariedade
dentro da empresa, a degradação e humilhação na seleção de profissionais. Para
completar, o alto escalão de uma empresa e os níveis gerenciais mostram-se
pouco comprometidos com essas "consequências pessoais do novo
capitalismo" (não por acaso o subtítulo da obra de Sennett), ou mascaram
isso com ações recreativas supostamente voltadas para uma maior
"qualidade de vida" dos seus "colaboradores".
A análise de Sennett vai longe e aprofunda-se na
dinâmica social. Em "A corrosão do caráter", ele afirma que o
capitalismo vive na atualidade um novo momento, de natureza flexível. Sennett
inicia o prefácio do livro lembrando que "A expressão 'capitalismo
flexível' descreve hoje um sistema que é mais que uma variação do mesmo tema.
Enfatiza-se a flexibilidade. Atacam-se as formas rígidas da burocracia, e
também os males da rotina cega. Pede-se que os trabalhadores sejam ágeis, estejam
abertos a mudanças de curto prazo, assumam riscos continuamente, dependam cada
vez menos de leis e procedimentos formais".
Portanto, de acordo com o autor, essa "nova
ordem" capitalista afeta a tal ponto os indivíduos, que não lhes oferece
condições para uma construção linear de vida baseada em suas experiências. Ao
contrário do trabalhador no modelo fordista do passado que, embora imerso na
burocracia, rotina e alienação, possuía uma trajetória constante e
expectativas de longo prazo. Atualmente, isso já não é tão possível devido a
uma dinâmica de incertezas, mudanças de emprego e de cidade e o sucessivo
rompimento de laços. As relações centrais, outrora vistas e sentidas na coletividade,
passam a ser individualizadas, extrapolam o mundo do trabalho e se estendem a
toda forma de sociabilidade. Em um mundo fragmentado, de relações efêmeras,
cortadas, instáveis, sem continuidade, tampouco margem de segurança, tudo, inclusive
o trabalho, perde a referência e a compreensão.
Não são apenas as formas de trabalho que se
tomaram flexíveis, mas as de poder. Em uma sociedade em que nada é continuo,
é preciso reinventar a estrutura das instituições. No entanto, embora na superfície
pareça que a equipe possui autonomia, ainda é o capitalista quem dá as cartas.
A única novidade nesse processo é a maneira e o lugar onde, em muitas áreas e
profissões, ocorre tal expediente. Troca-se a empresa pela casa e o controle
face a face pelo meio eletrônico.
Essa estrutura de trabalho não só enfatiza a já
comentada ausência de vínculos estáveis entre empregado e empresa, como gera
uma desordem social e na identidade do trabalhador. Dentro desse sistema passa-se
também a valorizar o jovem (embora, paradoxalmente, exija-se dele experiência),
pois eles seriam mais flexíveis e adaptáveis a várias circunstâncias.
Para finalizar as colocações aterradoras de
Sennett, as relações impessoais de trabalho irão afetar diretamente as sociais
e vice-versa. Estabelecendo relações superficiais, descartáveis, cujos laços
de lealdade e compromissos são tão frouxos quanto a efemeridade do curto prazo
de trabalho. "Em um regime que não oferece aos seres humanos motivos para
ligarem uns para os outros não pode preservar sua legitimidade por muito
tempo", ressalta o autor.
Globalização e Pós-Modernismo
A preocupação com as modificações e influências
da globalização no mercado de trabalho e na vida social não são ressaltadas
apenas por Richard Sennett. Pesquisadores como Sônia Maria Guimarães Laranjeira,
professora titular do Departamento de Sociologia e coordenadora do Programa de
Pós-Graduação em Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (IFCH- UFRGS), discorrem sobre a questão
a partir de enfoques variados, com o intuito de refletir - e encontrar caminhos
- para uma nova relação entre o profissional e o trabalho. Em seu texto
"As transformações do trabalho num mundo globalizado" (Rev.
Sociologias, n °4,.2000), Sônia Laranjeira entende que a digitalização, por
exemplo, representa uma mudança de paradigma, pois por intermédio dessa tecnologia
estrutura-se uma nova lógica de ação sobre o mundo.
Um dos maiores sociólogos brasileiros de todos os
tempos, Octávio lanni (1926 - 2004) dedicou boa parte de seus estudos para
examinar o "enigma da modernidade mundo" e as "teorias da
globalização", por sinal títulos de dois de seus livros publicados pela
editora Civilização Brasileira. No artigo "As ciências sociais e a
modernidade-mundo: uma ruptura epistemológica", publicado em 2001 na
Revista de Ciências Humanas da Universidade Federal do Paraná (UFPR), lanni
analisa o mundo como sendo atravessado por uma ruptura histórica tão
avassaladora quanto um terremoto inesperado, por isso capaz de transformar os
modos de vida e de trabalho radicalmente, bem como suas formas de sociabilidade
e ideais. Ianni complementa: "Tudo o que parecia estável, transforma-se,
recria-se ou dissolve-se. Nada permanece. E o que permanece já não é mais a
mesma coisa. Alteram-se as relações do presente com o passado; e o futuro
parece ainda mais incerto. O que predomina é o dado imediato do que se vê,
ouve, sente, faz,produz,consome,desfruta,carece,sofre, padece".
As modificações ainda estão em curso, sugere o
sociólogo no artigo, e resultarão em um abalo nos quadros sociais, na mentalidade
e nos referenciais da coletividade e dos indivíduos de todo o planeta. No cerne
dessas transformações estarão os conceitos de tempo e espaço, que gerem a
noção de lugar, território, fronteira, presente, passado, próximo, remoto,
arcaico, moderno, contemporâneo e não contemporâneo.
Nas palavras do geógrafo e cientista social
britânico David Harvey, professor de Geografia Humana da Universidade Cidade
de Nova York e autor de “Condição pós-moderna” (2002), podemos chamar esse
momento pelo termo “pós-moderno"”, embora essas classificações sejam
sempre discutíveis no âmbito da teoria e da pesquisa sociológica. A partir de
um resgate histórico, Harvey considera o pós-modernismo, época em que vivemos,
corno uma reação a monotonia, modernismo universal, verdades absolutas,
positivismo, padronização do conhecimento e da produção. Corno resposta,
temos um mundo que privilegia a heterogeneidade, a fragmentação e a
indeterminação.
O economista marxista Ernest MandeI (1923-1995)
explica: "Passamos para uma nova era a partir do inicio dos anos 1960,
quando a produção da cultura tornou-se integrada à produção de mercadorias em
geral: a frenética urgência de produzir novas ondas de bens com aparência cada
vez mais nova (de roupas a aviões), em taxas de transferência cada vez mais
essencial à inovação e à experimentação estéticas. As lutas antes travadas
exclusivamente na arena da produção se espalharam, em consequência disso,
tornando a produção cultural uma arena de implacáveis conflitos sociais. Essa
mudança envolve uma transformação definida nos hábitos e atitudes de consumo,
bem como num novo papel para as definições e intervenções estéticas. Por isso,
a produção cultural popular pós-modernista apenas procurou satisfazer da
melhor maneira possível em forma de mercadoria, outros sugerem que o
capitalismo, para manter seus mercados, viu-se forçado a produzir desejos e,
portanto, estimular sensibilidades individuais para criar uma nova estética
que superasse e se opusesse às formas tradicionais de alta cultura".
O raciocínio é completado por Harvey: "As
condições de modernização capitalista formam o contexto material a partir do
qual pensadores e produtores culturais modernos e pós-modernos forjam suas
sensibilidades, princípios e práticas estéticos; parece razoável concluir que
a virada para o pós-modernismo não reflete nenhuma mudança fundamental na
condição social. A ascensão do pós-modernismo ou representa um afastamento de
modos de pensar sobre o que pode ou deve ser feito com relação a essa condição
social, ou reflete uma mudança na maneira de operação do capitalismo em nossos
dias. Em ambos os casos, a descrição do capitalismo feita por Marx nos oferece,
se for correta, uma base muito sólida para pensar as relações gerais entre a
modernização, a modernidade e os movimentos estéticos que extraem energias
dessas condições".
O “Novo Trabalhador”
O mercado de trabalho tem passado por muitas
- e aceleradas - mudanças nos últimos quarenta anos. Essas formas de produção
contribuíram para formar uma nova concepção do trabalhador desejado pelas
organizações. "O trabalho cada vez mais vai exigindo as funções cognitivas
superiores: atenção, concentração, discernimento, pensamento lógico,
criatividade, tomada de decisão, planejamento, organização. O trabalho mecânico
vai sendo substituído pela máquina. Um modelo de trabalho mais saudável aceita
o desafio de conciliar produção, lucro e valorização da pessoa humana.
Resgata a saúde com patrimônio fundamental para justificar a vida e o trabalho.
Entende o trabalho como ação de transformação da realidade interna do
trabalhador e da realidade externa. Num processo de diálogo e aprendizagem constante",
ressalta Alexandre Rivero.
Para tanto, é preciso cultivar um bom clima
interno, proporcionar bem-estar aos seus colaboradores, "facilitando"
oportunidades de convivência com a familia e mantendo-as atentas à
necessidade de treinamento constante. São as chamadas "Learning
Organizations". O ser humano deve sentir-se pleno para produzir plenamente.
Desse modo, o mercado privilegia o profissional que usa a sua inteligência para
resolver problemas, buscar soluções e desenvolver-se mesmo que a empresa não
lhe forneça as condições. Esse é o discurso padrão das empresas, consultores e
recrutadores. Nesse sentido, ouvir o que tem a dizer os mediadores e
especialistas é entender como é feita a elaboração dos discursos acerca das
qualidades do "novo trabalhador”.
O trabalhador, por essa ótica, teria a autonomia
para decidir a maneira que julga adequada para atingir o resultado esperado.
"O que importa é que este resultado venha e que satisfaça os requisitos da
em presa ou do cliente. Já encontramos muitos profissionais trabalhando em
home-offices, conectados à Internet com seus notebooks e Blackberrys, sem
necessariamente terem que bater ponto em um escritório", explica Cláudio
Pelizari, economista, palestrante e consultor de Qualidade de Vida, Etiqueta Profissional
e Marketing Pessoal.
Não se pode esquecer, é claro, de um aspecto
significativo das relações trabalhistas "flexíveis" adotadas nos
últimos anos: a desburocratização crescente dos registros e vínculos
profissionais. Essa situação tornou-se comum em várias áreas. No cenário
brasileiro, uma das justificativas seria a contenção dos custos dos impostos e
encargos da legislação trabalhista agrupada na Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT), assinada em 10 de maio de 1943 por Getúlio Vargas à época do
Estado Novo. Os empregadores argumentam que manter um empregado com carteira
assinada custa, para a empresa, o dobro de um não registrado. Portanto, várias
empresas, dependendo do tamanho e do ramo de atividade, optam por estabelecer
contratos flexíveis, deixando que os padrões de remuneração estejam ligados
efetivamente ao resultado apresentado pelo colaborador, agora chamado de
"parceiro".
Segundo a consultora Maria Aparecida.
Revista Sociologia nº 27.
Nenhum comentário:
Postar um comentário