sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Admirável trabalho novo


Admirável trabalho novo

Os impactos econômicos e sociais das mudanças no mundo do trabalho e a posição de especialistas e profissionais diante dessas transformações


Ao longo dos últimos anos vem se observando, em diversas partes do mundo, uma modificação nas formas e estruturas de trabalho. Se por um lado percebemos a alta taxa de desemprego, a falta de estabilidade nas empresas, a terceirização e a au­sência de registros profissionais, de outro ouvimos de consul­tores promessas de mais flexibilidade nos horários de trabalho, maior autonomia na produção, mais capacitação e interação do profissional. Devemos boa parte dessas modificações às mudan­ças dos paradigmas do trabalho, às inovações tecnológicas e à globalização, que rompeu com as barreiras da distância. Quais são os impactos positivos e os negativos dessas modificações?
Assim como a sociedade industrial do início do século XX se viu centrada nas relações trabalhador e indústria, vivemos hoje uma nova dinâmica social moldada não só pela era digital, na qual outras inte­rações se criam e transformam a forma de vermos o mundo, mas pela rapidez e ins­tabilidade derivada dela. Entretanto, essas mesmas armas que em certo aspecto fa­cilitam, em outros tantos dificultam, exi­gindo ainda mais dos profissionais, que agora não se sustentam ao dominar ape­nas o conhecimento de sua função. Além disso, existe um outro fator de angústia: ter de lidar com a falta de vínculos, o de­semprego e a efemeridade dos contratos trabalhistas.
As modificações nas relações de tra­balho não afetam apenas o setor profis­sional, mas a dinâmica social. "O mundo vive transformações radicais, a produção do conhecimento e as conquistas tecnoló­gicas assumem uma velocidade muito in­tensa. Estas modificações influenciam o mercado de trabalho exigindo um profis­sional que se atualize constantemente e que se aproprie da tecnologia a serviço de seu foco profissional", exemplifica o psicó­logo Alexandre Rivero.
Entretanto, como afirma o sociólogo e historiador norte-americano Richard Sen­nett, professor de Sociologia e História na London School of Economics e autor de um livro clássico sobre o mundo do trabalho, "A corrosão do caráter: conseqüências pesso­ais do trabalho no novo capitalismo" (Edi­tora Record), os últimos anos não foram os melhores para os trabalhadores. Um dos fatores é o aumento do volume de atividades sem a elevação compatível de salário e benefícios. O sociólogo também vê com pre­ocupação uma das principais mudanças na organização do trabalho, que é a perda da identidade. Sennett aponta ainda para questões como a falta de vínculo com o local de trabalho, a diminuição, ou menor, a perda dos laços de solidariedade dentro da empresa, a degradação e humilhação na seleção de profissionais. Para completar, o alto escalão de uma empresa e os níveis ge­renciais mostram-se pouco comprometi­dos com essas "consequências pessoais do novo capitalismo" (não por acaso o subtí­tulo da obra de Sennett), ou mascaram isso com ações recreativas supostamente volta­das para uma maior "qualidade de vida" dos seus "colaboradores".
A análise de Sennett vai longe e aprofun­da-se na dinâmica social. Em "A corrosão do caráter", ele afirma que o capitalismo vive na atualidade um novo momento, de natureza flexível. Sennett inicia o prefácio do livro lembrando que "A expressão 'capi­talismo flexível' descreve hoje um sistema que é mais que uma variação do mesmo tema. Enfatiza-se a flexibilidade. Ata­cam-se as formas rígidas da burocracia, e também os males da rotina cega. Pede-se que os trabalhadores sejam ágeis, este­jam abertos a mudanças de curto prazo, assumam riscos continuamente, depen­dam cada vez menos de leis e procedimen­tos formais".
Portanto, de acordo com o autor, essa "nova ordem" capitalista afeta a tal ponto os indivíduos, que não lhes oferece condi­ções para uma construção linear de vida baseada em suas experiências. Ao contrá­rio do trabalhador no modelo fordista do passado que, embora imerso na burocra­cia, rotina e alienação, possuía uma tra­jetória constante e expectativas de longo prazo. Atualmente, isso já não é tão pos­sível devido a uma dinâmica de incertezas, mudanças de emprego e de cidade e o su­cessivo rompimento de laços. As relações centrais, outrora vistas e sentidas na cole­tividade, passam a ser individualizadas, ex­trapolam o mundo do trabalho e se esten­dem a toda forma de sociabilidade. Em um mundo fragmentado, de relações efême­ras, cortadas, instáveis, sem continuidade, tampouco margem de segurança, tudo, in­clusive o trabalho, perde a referência e a compreensão.
Não são apenas as formas de trabalho que se tomaram flexíveis, mas as de po­der. Em uma sociedade em que nada é con­tinuo, é preciso reinventar a estrutura das instituições. No entanto, embora na superfície pareça que a equipe possui autono­mia, ainda é o capitalista quem dá as car­tas. A única novidade nesse processo é a maneira e o lugar onde, em muitas áreas e profissões, ocorre tal expediente. Troca-se a empresa pela casa e o controle face a face pelo meio eletrônico.
Essa estrutura de trabalho não só enfa­tiza a já comentada ausência de vínculos estáveis entre empregado e empresa, como gera uma desordem social e na identidade do trabalhador. Dentro desse sistema pas­sa-se também a valorizar o jovem (embora, paradoxalmente, exija-se dele experiência), pois eles seriam mais flexíveis e adaptáveis a várias circunstâncias.
Para finalizar as colocações aterradoras de Sennett, as relações impessoais de tra­balho irão afetar diretamente as sociais e vice-versa. Estabelecendo relações superfi­ciais, descartáveis, cujos laços de lealdade e compromissos são tão frouxos quanto a efemeridade do curto prazo de trabalho. "Em um regime que não oferece aos seres humanos motivos para ligarem uns para os outros não pode preservar sua legitimi­dade por muito tempo", ressalta o autor.

Globalização e Pós-Modernismo

A preocupação com as modificações e influências da globalização no mercado de trabalho e na vida social não são ressalta­das apenas por Richard Sennett. Pesquisa­dores como Sônia Maria Guimarães Laran­jeira, professora titular do Departamento de Sociologia e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Insti­tuto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (IFCH- UFRGS), discorrem sobre a ques­tão a partir de enfoques variados, com o intuito de refletir - e encontrar caminhos - para uma nova relação entre o profissio­nal e o trabalho. Em seu texto "As transfor­mações do trabalho num mundo globalizado" (Rev. Sociologias, n °4,.2000), Sônia Laranjeira entende que a digitalização, por exemplo, representa uma mudança de pa­radigma, pois por intermédio dessa tecno­logia estrutura-se uma nova lógica de ação sobre o mundo.
Um dos maiores sociólogos brasileiros de todos os tempos, Octávio lanni (1926­ - 2004) dedicou boa parte de seus estudos para examinar o "enigma da modernidade mundo" e as "teorias da globalização", por sinal títulos de dois de seus livros publica­dos pela editora Civilização Brasileira. No artigo "As ciências sociais e a modernida­de-mundo: uma ruptura epistemológica", publicado em 2001 na Revista de Ciências Humanas da Universidade Federal do Pa­raná (UFPR), lanni analisa o mundo como sendo atravessado por uma ruptura his­tórica tão avassaladora quanto um terre­moto inesperado, por isso capaz de trans­formar os modos de vida e de trabalho radicalmente, bem como suas formas de sociabilidade e ideais. Ianni complementa: "Tudo o que parecia estável, transfor­ma-se, recria-se ou dissolve-se. Nada per­manece. E o que permanece já não é mais a mesma coisa. Alteram-se as relações do presente com o passado; e o futuro parece ainda mais incerto. O que predomina é o dado imediato do que se vê, ouve, sente, faz,produz,consome,desfruta,carece,so­fre, padece".
As modificações ainda estão em curso, sugere o sociólogo no artigo, e resultarão em um abalo nos quadros sociais, na men­talidade e nos referenciais da coletividade e dos indivíduos de todo o planeta. No cerne dessas transformações estarão os concei­tos de tempo e espaço, que gerem a noção de lugar, território, fronteira, presente, pas­sado, próximo, remoto, arcaico, moderno, contemporâneo e não contemporâneo.
Nas palavras do geógrafo e cientista so­cial britânico David Harvey, professor de Geografia Humana da Universidade Ci­dade de Nova York e autor de “Condição pós-moderna” (2002), podemos chamar esse momento pelo termo “pós-moderno"”, embora essas classificações sejam sempre discutíveis no âmbito da teoria e da pes­quisa sociológica. A partir de um resgate histórico, Harvey considera o pós-moder­nismo, época em que vivemos, corno uma reação a monotonia, modernismo univer­sal, verdades absolutas, positivismo, pa­dronização do conhecimento e da produ­ção. Corno resposta, temos um mundo que privilegia a heterogeneidade, a fragmenta­ção e a indeterminação.
O economista marxista Ernest MandeI (1923-1995) explica: "Passamos para uma nova era a partir do inicio dos anos 1960, quando a produção da cultura tornou-se integrada à produção de mercadorias em geral: a frenética urgência de produzir no­vas ondas de bens com aparência cada vez mais nova (de roupas a aviões), em taxas de transferência cada vez mais essencial à inovação e à experimentação estéticas. As lutas antes travadas exclusivamente na arena da produção se espalharam, em consequência disso, tornando a produção cultural uma arena de implacáveis confli­tos sociais. Essa mudança envolve uma transformação definida nos hábitos e ati­tudes de consumo, bem como num novo papel para as definições e intervenções es­téticas. Por isso, a produção cultural po­pular pós-modernista apenas procurou satisfazer da melhor maneira possível em forma de mercadoria, outros sugerem que o capitalismo, para manter seus merca­dos, viu-se forçado a produzir desejos e, portanto, estimular sensibilidades indivi­duais para criar uma nova estética que su­perasse e se opusesse às formas tradicio­nais de alta cultura".
O raciocínio é completado por Harvey: "As condições de modernização capitalista formam o contexto material a partir do qual pensadores e produtores culturais moder­nos e pós-modernos forjam suas sensibili­dades, princípios e práticas estéticos; pa­rece razoável concluir que a virada para o pós-modernismo não reflete nenhuma mu­dança fundamental na condição social. A ascensão do pós-modernismo ou repre­senta um afastamento de modos de pen­sar sobre o que pode ou deve ser feito com relação a essa condição social, ou reflete uma mudança na maneira de operação do capitalismo em nossos dias. Em ambos os casos, a descrição do capitalismo feita por Marx nos oferece, se for correta, uma base muito sólida para pensar as relações ge­rais entre a modernização, a modernidade e os movimentos estéticos que extraem energias dessas condições".

O “Novo Trabalhador”

O mercado de trabalho tem passado por muitas - e aceleradas - mudanças nos úl­timos quarenta anos. Essas formas de pro­dução contribuíram para formar uma nova concepção do trabalhador desejado pelas organizações. "O trabalho cada vez mais vai exigindo as funções cognitivas superio­res: atenção, concentração, discernimento, pensamento lógico, criatividade, tomada de decisão, planejamento, organização. O trabalho mecânico vai sendo substitu­ído pela máquina. Um modelo de trabalho mais saudável aceita o desafio de conci­liar produção, lucro e valorização da pes­soa humana. Resgata a saúde com patrimônio fundamental para justificar a vida e o trabalho. Entende o trabalho como ação de transformação da realidade interna do trabalhador e da realidade externa. Num processo de diálogo e aprendizagem cons­tante", ressalta Alexandre Rivero.
Para tanto, é preciso cultivar um bom clima interno, proporcionar bem-estar aos seus colaboradores, "facilitando" oportuni­dades de convivência com a familia e man­tendo-as atentas à necessidade de trei­namento constante. São as chamadas "Learning Organizations". O ser humano deve sentir-se pleno para produzir plena­mente. Desse modo, o mercado privilegia o profissional que usa a sua inteligência para resolver problemas, buscar soluções e desenvolver-se mesmo que a empresa não lhe forneça as condições. Esse é o dis­curso padrão das empresas, consultores e recrutadores. Nesse sentido, ouvir o que tem a dizer os mediadores e especialistas é entender como é feita a elaboração dos discursos acerca das qualidades do "novo trabalhador”.
O trabalhador, por essa ótica, teria a au­tonomia para decidir a maneira que julga adequada para atingir o resultado espe­rado. "O que importa é que este resultado venha e que satisfaça os requisitos da em­ presa ou do cliente. Já encontramos muitos profissionais trabalhando em home-offices, conectados à Internet com seus notebooks e Blackberrys, sem necessariamente terem que bater ponto em um escritório", explica Cláudio Pelizari, economista, palestrante e consultor de Qualidade de Vida, Etiqueta Profissional e Marketing Pessoal.
Não se pode esquecer, é claro, de um as­pecto significativo das relações trabalhis­tas "flexíveis" adotadas nos últimos anos: a desburocratização crescente dos registros e vínculos profissionais. Essa situação tor­nou-se comum em várias áreas. No cená­rio brasileiro, uma das justificativas seria a contenção dos custos dos impostos e en­cargos da legislação trabalhista agrupada na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), assinada em 10 de maio de 1943 por Getúlio Vargas à época do Estado Novo. Os empregadores argumentam que man­ter um empregado com carteira assinada custa, para a empresa, o dobro de um não registrado. Portanto, várias empresas, de­pendendo do tamanho e do ramo de ati­vidade, optam por estabelecer contratos flexíveis, deixando que os padrões de re­muneração estejam ligados efetivamente ao resultado apresentado pelo colabora­dor, agora chamado de "parceiro".
Segundo a consultora Maria Aparecida.


Revista Sociologia nº 27. 

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