terça-feira, 13 de outubro de 2015

SEU CORPO NÃO É SEU


SEU CORPO NÃO É SEU

            Lançado em 1999 o primeiro filme da trilogia cinematográfica Matrix, dirigida pelos irmãos Wachowski, conta a estória futurista de um mundo onde a vida humana é apropriada por máquinas dotadas de inteligência artificial, que para manter-se em funcionamento utilizam-se da bioenergia de corpos adormecidos, vivendo em uma realidade induzida, em um mundo virtual.
Os indivíduos neste contexto estão presos as próprias estruturas racionais que criaram, a inteligência artificial desenvolvida pela genialidade humana torna-se seu algoz.            
            Nesta direção, mas distante do efeito que a Sétima Arte produz sobre uma sociedade que responde cada vez mais prontamente ao bombardeio imagético, a filosofia desenvolve um conjunto de argumentos ao entorno do conceito de Biopoder, que pode ter, como metáfora ilustrativa, sua representação na obra cinematográfica citada.  O filósofo italiano Giorgio Agamben (1942...), articulando o pensamento da politóloga alemã Hannah Arendt (1906 -1975) e, do filósofo francês Michel Foucault (1924-1984), reflete como a vida humana é conduzida, produzida na forma de vida nua no Ocidente até a atualidade. Assim, a vida nua é a vida humana reduzida ao seu aspecto meramente biológico, com sua força vital e potencializada e utilizada até os limites “legais” da exploração, não por máquinas artificialmente inteligentes, mas por outros seres humanos.
            Agamben em sua obra “Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua” (1995) inicia a argumentação com a distinção de duas condições de vida dentro do pensamento e do modo de vida grego antigo e, que se apresenta como uma de nossas matrizes civilizatórias, sendo estas: a zoè, entendida como a vida biológica, submetida ao reino das necessidades e da qual não se tem controle, nem tão pouco poder de mudança, visto que está é uma condição imposta pela natureza, e a bíos, que se apresenta como a vida qualificada, a vida que se constitui no espaço público e, que tem por finalidade o que Aristóteles chamou de bem-viver. Ou seja, uma condição de vida que transcende a condição de meros seres biológicos, que buscam pelo bem comum pela ação conjunta por meio do debate político.
            Segundo Agamben, estas duas dimensões da vida humana ocupavam espaços distintos na antiguidade, a zoè estava restrita ao âmbito privado, ao passo que a bíos se manifestava na ágora, no espaço do debate político. A vida pública era concebida como a única que verdadeiramente merecia ser vivida, era o meio pelo qual se poderia conseguir uma vida melhor, que definiam quais eram os caminhos para se alcançar a felicidade, o bem-viver aristotélico dentro do espaço de interação da vida em conjunto, em um esforço de reconhecimento de si mesmo através do outro.
            O que o filósofo italiano busca demonstrar é o fato de que na modernidade e, principalmente na contemporaneidade, os assuntos antes restritos a casa, a oikos, agora preenchem o espaço público. A vida biológica passou a ser não mais responsabilidade exclusiva dos indivíduos, mas o meio e o fim das ações do Estado. O Estado na modernidade busca através do controle e da manutenção da vida biológica de sua população garantir a própria estrutura governamental, bem como atender a demanda de força de trabalho necessária à produção, de sujeitos aptos ao consumo, condições fundamentais para a consolidação e ampliação do sistema econômico capitalista. Assim, a vida em sua condição biológica foi estatizada.
            Do temo grego oikos origina-se o termo moderno economia. Já entre os gregos antigos a oikonoimia  exprimia as relações de produção, consumo e manutenção da vida. A economia assume no mundo moderno em toda sua intensidade o espaço público. A vida humana ao se tornar parte do processo econômico, perde sua condição de vida qualificada. Agamben apresenta um ponto de inflexão no pensamento de Foucault e Arendt, ao perceber que, a grosso modo ambos os autores buscavam pôr em jogo está condição de redução da vida humana a mera ferramenta, ou objeto do sistema econômico. Porém, Agamben vai além, apresenta que a ocupação da política em responder de forma institucional e jurídica as demandas de ordem biológica promove um esvaziamento do espaço público, espaço este responsável pela possibilidade de realização da bíos humana, da vida qualificada.    
            O paradoxo que se apresenta em nossos dias é que a vida humana pensada, tutelada e vigiada a partir da jurisprudência torna-se vida nua. A lei torna-se o limiar entre a possibilidade da vida e da morte de indivíduos e de populações. Essa racionalização produziu os campos de concentração e de extermínio na primeira metade do século XX, e viabilizou o enfraquecimento do debate político na segunda metade do referido século. Reportando-se a Foucault, temos uma potencialização dos corpos no que diz respeito a seu aspecto econômico e, inversamente proporcional a sua potência em termos políticos. Se dentro da ficção apresentada pelo cinema os indivíduos encontravam-se adormecidos para o mundo real, os indivíduos submetidos ao biopoder se encontram em sono profundo diante do que diz respeito as estruturas que o conformam e o utilizam para além dos seus anseios individuais.
            Com base nos termos apresentados, pode-se identificar que o desconhecimento dos argumentos sobre o conceito de biopoder não anula sua aplicabilidade sobre os sujeitos, ao contrário, facilita sua aplicação. Foucault ao definir o biopoder coloca-o em uma estrutura microfísica, onde os indivíduos passam a ser adestrados em sua conduta individual e nas relações que estabelecem em seu cotidiano. O que faz Agambem é demonstrar que este condicionamento articula-se numa esfera mais ampla, em nível estatal. O esvaziamento do espaço público justifica-se na medida em que o indivíduo valida suas ações particulares no comportamento da sociedade, a parte se identifica com o todo, e com isso não percebe incoerência nos seus atos, sendo assim interiorizam e “naturalizam” este condicionamento, tendo este como o único possível.
            Se o espaço público na modernidade é utilizado para resolver as demandas da vida particular dos indivíduos para qual espaço foi transferido a possibilidade de realização da bíos, a vida qualificada? Se no conjunto dos argumentos apresentados pode-se chegar à hipótese de que corpo em sua biologicidade não mais lhe pertenceu, mas foi estatizado, o que realmente nos pertence? O que ocorre na contemporaneidade é a inversão no grau de importância entre zoè e bíos, a vida biológica ocupa o espaço antes reservado a possibilidade de realização de uma vida qualificada e com isso as questões de ordem individual se sobrepõem a tudo que possa ser pensado como bem-estar da coletividade.

Artigo publicado no Jornal Ótimo – Canoinhas,  09 de Outubro de 2015.

Alexandre Sora
Acadêmico de Ciências Sociais da Universidade do Contestado – UnC
Pesquisador PIVIC/UnC
Membro do Grupo de Pesquisa em Ciências Humanas/Giorgio Agamben – CNPq

Sandro Luiz Bazzanella (Orientador)
Professor de Filosofia da Universidade do Contestado – UnC
Coordenador do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional
Líder Pesquisador PIVIC/UnC
Líder do Grupo de Pesquisa em Ciências Humanas/Giorgio Agamben - CNPq

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