“NÃO HÁ UM
PODER JUDICIÁRIO NO BRASIL, MAS 17.000 MAGISTRADOS”
Em uma semana pulou de 37 para 45 o número de
processos movidos por juízes e membros do Ministério Público do Paraná contra
jornalistas da Gazeta do Povo, que publicaram uma série de
reportagens, em fevereiro deste ano, tratando de super salários no
Judiciário do Estado. Mas outras novidades relacionadas ao caso também
aconteceram: o trabalho da equipe do jornal recebeu o prêmio Liberdade de
Imprensa da Associação Nacional de Jornais (ANJ), de 2016, e o
presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) declarou que
a moção das ações é um “suicídio institucional”.
A entrevista é de André de Oliveira,
publicada por El País, 19-06-2016.
Apesar das boas notícias para os jornalistas,
contudo, a disputa judicial continua. Na entrevista o cientista político e
pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Luciano
Da Ros, fala sobre problemas históricos do Judiciário brasileiro que,
segundo ele, explicam em parte as ações movidas contra a Gazeta do Povo.
Dedicando-se a diferentes campos de pesquisa, Da Ros tem um
trabalho que foca na eficiência da Justiça no Brasil, levantando dados sobre
gastos, transparência, celeridade etc.
Eis a entrevista.
Você tem apontado que o Judiciário brasileiro é hoje o mais caro do mundo e que
há muito pouco incentivo para que os Tribunais controlem seus gastos. Isso é
uma exclusividade desse poder?
Não. É uma realidade comum à burocracia de forma
geral, só que isso acaba sendo mais verdadeiro no caso de órgãos que têm uma
autonomia muito grande, como é o caso do poder Judiciário no Brasil.
Por exemplo, quando falamos em ajuste fiscal ou reformas no Estado,
pensamos logo no Executivo, e nunca entram na lista o Legislativo ou o
Judiciário. Quem acaba pagando a conta é o funcionalismo público do Executivo.
Por quê? Porque existe certa facilidade no controle que vem de cima, da chefia
do Executivo. Ou seja, dos governadores, prefeitos e presidentes eleitos. Só
que esse comando centralizado e legitimado pela população não existe no poder
Judiciário, até porque, em quase todos os casos, a liderança desses órgãos é
eleita por seus próprios pares. A falta de incentivo para controle de gastos é
generalizada, mas em órgãos com muita autonomia, cresce.
Nesse
ponto, a imprensa tem papel de controle, não?
Sim. Eu diria
que a maior parte das grandes reformas que a gente teve no Brasil para a melhoria da eficiência do poder
Judiciário, que não envolvem apenas orçamento, mas também gestão de processos e
outras coisas, não partiram de dentro dele. Posso exemplificar a partir de dois
casos significativos. O primeiro, e mais recente, é a criação do Conselho
Nacional de Justiça [CNJ]. Idealizado como um órgão de controle externo do
Judiciário, sua criação fez parte da campanha presidencial de Lula, em 2002,
e teve como principal defensor o ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos. Só que a criação desse órgão
era um tema que já tinha sido colocado lá na Constituinte, em 1988. O segundo,
e mais antigo, é a implantação dos Tribunais de Pequenas Causas,
hoje chamados de Juizados Especiais.
A ideia por trás disso era dar maior celeridade e menor custo para o
Judiciário. Embora existissem iniciativas em um ou outro Estado, o esforço para
nacionalizar esse modelo partiu, assim como no caso da CNJ, de fora do
Judiciário. Veio do então Ministério da Desburocratização.
Ou seja, no caso do Judiciário, os esforços para reformas de grande impacto têm
partido tanto do Executivo como a partir de mobilizações da opinião pública. As
reformas aprovadas por iniciativa do próprio poder Judiciário existem, mas são
mais incrementais. Aí, para voltar à questão, os meios de comunicação têm o
papel fundamental de chamar a atenção para ineficiências da Administração
pública e provocar o debate.
Como
você avalia, então, a disputa judicial envolvendo magistrados do Paraná e
jornalistas da Gazeta do Povo após a publicação de uma reportagem sobre
rendimentos de servidores que acabam extrapolando o teto constitucional?
Diz-se, em
todo o mundo, que a liberdade de imprensa deve estar apoiada em um Judiciário
independente. E vice-versa: que a imprensa ajuda na autonomia da Justiça,
enquanto o Judiciário garante que não haverá interferência de outros poderes no
trabalho do jornalista. Se a abertura dessas múltiplas ações no Paraná é, ou não, caso pensado para intimidar
a imprensa, o fato é que elas estão dificultando o trabalho desses repórteres.
Seja como for, esse episódio faz a gente pensar se no Brasil essa relação entre Judiciário e
imprensa não é o contrário do que deveria ser.
E
o que está na raiz dessa briga judicial?
Acredito que é
o fato de que nós tivemos avanços pontuais na Justiça, mas que algumas questões
básicas e fundamentais ainda não foram resolvidas. Uma delas é o fato de que o
elevado nível de autonomia individual dos membros do Poder Judiciário no Brasil,
que é benéfico para manter sua isenção e imparcialidade, pode ao mesmo tempo se
tornar prejudicial para a boa administração da Justiça se não for acompanhado
de mecanismos de transparência e responsabilização. Só isso é capaz de explicar
tanto esse tipo de ação individualizada dos juízes do Paraná, que tem sido
vista por setores da sociedade como cerceamento de liberdade de imprensa, como
também um dos motivos do custo desproporcional que o Judiciário brasileiro tem.
Como
assim?
Um dos efeitos
desta enorme autonomia individual dos magistrados é que cada juiz decide da
forma que entende e, desse modo, é impossível ter posições claras de como o
Judiciário, institucionalmente, decide. A melhor forma de ilustrar isso é dizer
que não existe um Poder Judiciário propriamente dito no Brasil, e sim
17.000 magistrados. Quer dizer, toda a ideia do poder Judiciário é que haja
independência exatamente para que os juízes tenham isenção de julgar sem que
seus próprios interesses afetem o conteúdo da decisão. Para isso, é necessário
um bom salário e garantias de que o magistrado não será exonerado ou removido
de seu cargo. Contudo, isso não significa que, necessariamente, cada juiz pode
decidir um caso da forma como ele sozinho acredita que deve ser decidido. Ele
tem que obedecer a legislação, mas também tem que levar em conta as decisões
anteriores que foram tomadas em casos idênticos. No Brasil, como
esses mecanismos de controle da jurisprudência são recentes e o grau de
autonomia dos magistrados individuais é muito alto, ocorre de um juiz decidir
de uma forma e, em uma vara vizinha, outro juiz decidir um caso idêntico de
outra forma. Isso é terrível, porque toda a ideia de que precisamos da
independência do juiz é para que ele possa aplicar a mesma lei aos mesmos
casos, para que haja igualdade e não diferença.
Você
disse que isso é capaz de explicar as ações dos juízes e também o alto custo do
Judiciário. Como entra essa segunda questão?
Hoje no Brasil em diversos casos vale mais a pena
tentar a sorte na Justiça do que compor uma solução negociada fora do poder
Judiciário. Isso porque as partes envolvidas em um processo não tem segurança
sobre qual é ou será a posição do Judiciário a respeito de um determinado
conflito, pois não há posições únicas dentro do próprio Judiciário sobre um
mesmo tipo de caso. Isso é seguramente uma das causas da explosão de processos
no país. Em 1990 eram cinco milhões de novos processos a cada ano, agora são 30
milhões. Para se ter uma ideia, hoje existe cerca de um processo em andamento
para cada dois habitantes. Por fim, isso acaba produzindo uma carga de trabalho
enorme e a consequência é o Judiciário mais caro do planeta. Enquanto os gastos
de países como Espanha, EUA e Inglaterraficam
entre 0,12% e 0,14% do PIB, o do Brasil está na casa do 1,3%.
Você
acredita que esse aumento no número de novos processos também está refletido na
alta influência do Judiciário na vida política brasileira?
Com certeza. O
professor Conrado Hübner Mendes, da Universidade de São Paulo,
diz uma coisa muito verdadeira sobre o STF [Supremo Tribunal Federal] que é que
não há um Supremo como instituição, mas 11 ministros e cada um deles têm
enormes possibilidades de interferência sobre os processos com pedidos de
vista, votos individuais, prazos pouco claros para levar os casos a julgamento,
para incluí-los na pauta etc. Isso é visto no sistema judicial como um todo e é
em parte por isso que os políticos têm levado as questões para a Justiça. É a
mesma lógica: já que não se tem certeza das posições do Judiciário, vale
arriscar. O problema é que existe pouca política institucional e muita atuação
individual.
Mas
então onde o Judiciário brasileiro tem sido bem sucedido?
Comparativamente
com outros países da América Latina,
por exemplo, ele é considerado um dos poderes mais bem estruturados, com
maiores recursos, com garantias mais fortes de independência. Quer dizer, nós
temos um Judiciário altamente profissionalizado. Há muitas discrepâncias
regionais, claro. Por exemplo, no Estado do Maranhão, o
primeiro concurso público para servidores aconteceu apenas em 2005, só depois
do CNJ ser criado. Mas, de forma geral, temos
um Judiciário que tem garantias de independência e atua com muitos recursos.
Veja bem, a grande questão é que há pouco controle, pouca transparência e que,
quando existe, essas práticas são muito recentes. Ninguém estuda, por exemplo,
como funcionam as corregedorias da Justiça. Ou seja, como é que se punem
magistrados para além do CNJ? Que tipos
de punições existem? Há poucos estudos sobre isso e são questões essenciais
para se compreender como se constrói um Judiciário íntegro e probo.
Salário de juízes federais em comparação ao PIB per capita do brasileiro em início e fim de carreira
A
independência, então, é essencial, mas, ao mesmo tempo fonte de problemas.
Se não houver
controle e transparência, sim. Outro exemplo de uma coisa boa, mas que pode ter
um reflexo ruim se não houver uma forma de fiscalização eficaz é a facilidade de acesso ao
Judiciário. Nosso acesso ao poder Judiciário se ampliou muito ao longo dos
últimos anos. E isso é ótimo. Ainda que vários problemas persistam, vários
mecanismos foram criados ou se expandiram, como a assistência judiciária
gratuita e a própria defensoria pública. Só que ao se diminuir as barreiras
para se ter acesso ao Judiciário, um outro problema ficou escancarado: a
desigualdade do tratamento de diferentes partes. Veja, por exemplo, a
desigualdade expressa na dificuldade em condenar definitivamente um político
por corrupção, por um lado, e o fato de que hoje temos 200.000 presos sem julgamento noBrasil, por
outro. Esse tipo de desigualdade de tratamento é extremamente danoso em um
poder do Estado que deve primar pela igualdade de tratamento. Enfim, para
resumir, eu destacaria como pontos bons, embora longe de resolvidos: grau de
independência, recursos e acesso. Pontos negativos: desigualdade de tratamento
e ineficiência.
Alguns
observadores têm apontado que o Judiciário é um dos poderes menos democráticos
do Brasil. Isso teria raízes históricas relacionadas à ditadura militar. Você
concorda?
A ditadura
militar no Brasil operou, grosso modo, com essa
arquitetura institucional do Poder Judiciário que está hoje aí, tanto que a LOMAN [Lei Orgânica da Magistratura Nacional]
é de 1979. De igual forma, não houve grandes expurgos na magistratura durante a
ditadura e basicamente essa máquina que existia agora, existia lá atrás. O
nosso Judiciário, então, conviveu com a ditadura, mas conviveu em um sistema de
acomodação. O Judiciário foi em grande medida conivente com a ditadura e a
ditadura foi conivente com abusos dentro do Poder Judiciário, permitindo
remunerações enormes, nepotismo, sistemas de loteamento de cargos e um conjunto
de práticas que herdamos e que estamos tentando resolver até hoje.
E
houve algum avanço?
Sim. Vem
havendo uma enorme renovação dos quadros da magistratura, de forma que hoje a
grande maioria dos integrantes do Poder Judiciário ingressou depois de 1988. Há
uma mudança gradual da cultura institucional e uma diversificação crescente na
magistratura, mas a arquitetura e as práticas institucionais ainda são
herdeiras desse sistema de acomodação com os militares. Agora, o nosso
Judiciário não é menos democrático necessariamente por ser fruto da ditadura. Ele
é um poder menos democrático porque, em suma, ele é o mais independente e menos
sujeito a controle. E isso, como já dito, é uma faca de dois gumes. Por fim,
ele também é o único dos três poderes que não tem ninguém eleito. Não há
mecanismos de legitimação popular. Em alguns países, como nos Estados Unidos,
existem eleições, por exemplo. E em vários outros países, o Judiciário funciona
por um sistema de indicações, como é com o nosso STF, que é um
mecanismo indireto de legitimação popular dos juízes. No nosso sistema
Judiciário isso ocorre para apenas alguns cargos. Na maior parte deles, é o
próprio Judiciário que seleciona seus integrantes.



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