VARIAÇÕES
DA CRISE
Talvez se possa afirmar com certa
segurança (mesmo vivendo em tempos de insegurança) que uma das palavras mais
pronunciadas em conversas cotidianas, em discursos políticos, em análises
científicas, na imprensa falada e escrita é a palavra “crise”. Esta intensidade discursiva em torno do
vocábulo crise é sintomática. Aponta para a intensidade de acontecimentos
políticos, econômicos e jurídicos nos quais estamos inseridos. Mais do que
isto, indica que tais esferas constitutivas da sociedade não andam bem, encontram-se desalinhadas em
relação aos interesses e aos desafios que se apresentam aos povos e, neste caso
ao povo brasileiro, frente aos desafios de um mundo globalizado em suas trocas,
intercâmbios comerciais e economicamente financeirizado.
O uso intensivo de um vocábulo, de um
conceito não significa que o tenhamos compreendido em sua extensão e
profundidade. Em certos casos o contrário apresenta-se verdadeiro. A
intensidade de sua manifestação revela a perda da compreensão de seu real
significado. Nesta direção, torna-se fundamental retomar sua definição. Vejamos
a forma como se apresenta a palavra crise no dicionário de filosofia (é em
momentos de crise que se recorre a filosofia, afinal ela é a guardiã os
preceitos civilizatórios nos quais estamos inseridos) de autoria do filósofo
italiano Nicola Abbgnano. “Crise (in. Crisis;
fr. Crise; al. Krisis; it. Crisi). Termo
de origem médica que, na medicina hipocrática, indicava a transformação
decisiva que ocorre no ponto culminante de uma doença e orienta o seu curso em
sentido favorável ou não (...). Em época recente, esse termo foi estendido,
passando a significar transformações decisivas em qualquer aspecto da vida
social.”
Nesta resumida definição de crise (a
definição constante no dicionário apresenta outros elementos) constata-se as
seguintes perspectivas: 1ª O conceito esta presente no percurso civilizatório
ocidental; 2ª Inicialmente vinculado a medicina transita na modernidade para
questões de ordem social. 3ª Em ambas dimensões (médica e social) o termo crise
pressupõem movimento, passagem, transição de uma condição vital, ou social, a
outra condição de manutenção da vida, ou mesmo de sua negação pela morte, da
ordem social, ou de sua alteração e conformação sobre novas bases societárias.
4ª Em todas estas situações o termo crise denota seu sentido ontológico (forma
do ser no mundo, de ser e participar dele), político (manter ou não vida, a
ordem social implica na tomada de decisões), ética (a tomada de decisões requer
a clareza de critérios, entre eles o de bem comum) e, estética (decisões
amparadas por critérios podem apresentar-se equilibradas, harmônicas, belas).
A partir do exposto e sugerido como
reflexão até o presente momento, pode-se argumentar que o conceito “crise”
apresenta duas outras variáveis. 1ª Crise como expressão dialética; 2ª Crise
como expressão entrópica. Encontramos as duas formas presentes na vida dos
indivíduos e das sociedades ocidentais. No primeiro caso a crise se revela como
movimento que desestabiliza a ordem vital, ou social. Segue-se a esta condição
período de incertezas, de insegurança que exigem esforços significativos para
sua superação. A superação apresenta-se
como novo estágio, como nova ordem vital ou social. No segundo caso a crise
(entropia) leva ao definhamento do paciente ou da ordem social, na medida em
que expõem a dura e traumática realidade da falência vital ou social em curso. São exemplos da crise em sua versão dialética:
a Reforma Protestante (Lutero) e a Contra Reforma Católica (Concilio de
Trento), a Revolução Americana, a Revolução Francesa, as revoluções
científicas. São exemplos da crise em sua versão entrópica: a falência do mundo
antigo, a derrocada do Império Romano, a falência da cosmovisão judaico-cristã
medieval, a Revolução Russa de outubro de 1917.
A crise política e econômica na qual
estamos inseridos indica para o modelo entrópico pelos seguintes motivos: a) Sistema político partidário desacreditado,
desmoralizado pela evidência de loteamento da máquina estatal e, por derivação
de atos corruptos; b) Percepção de que a democracia representativa, representa
exclusivamente os interesses da classe política de plantão; c) redução do poder
legislativo a casa de jogatina com recursos públicos e, balcão de negócios com
o executivo; d) o poder executiva legislo freneticamente por medidas de
provisórias; e) cumpre contratos remunerando generosamente o capital,
justificado na lei de responsabilidade fiscal, que em certa medida se apresenta
como lei de irresponsabilidade social, uma vez que a riqueza da nação (Adam
Smith) é resultado do trabalho coletivo e, não da mera especulação de mercados
financeiros; f) em nome da governabilidade o poder executivo alicia
parlamentares e, concede generosos e imorais aumentos salariais ao judiciário; g)
o poder judiciário assume a condição de “terceiro gigante” sobrepondo-se aos
poderes legislativo e executivo, tomando decisões (atribuição do executivo) e
legislando (atribuição do legislativo); h) a condição de sua legalidade
(funcionários públicos concursados) não lhe confere legitimidade (condição
alcançada por sufrágio universal); i) juízes apresentam-se cada vez mais
criativos e proativos abandonando a condição de guardiões da lei (constituição)
para dizer o que a lei é caracterizando a vigência de um estado de exceção
permanente. j) afastamento de chefe do poder executivo a partir da suspeita de
um estado de emergência econômica (responsabilidade fiscal/irresponsabilidade
social), eivado de interesses políticos justificados pelo poder judiciário; k)
Normalização da imoralidade dos representantes políticos e da sanha pecuniária
do judiciário com seus aumentos salariais estratosféricos; l) interinidade/efetividade
(o processo de impeachment já estava decretado na votação do dia 17/04/2016 na
votação da Câmara do relatório da comissão de Impeachment) de um governo marcado também pela corrupção e
pelo discurso de uma só nota: ajuste fiscal; m) população apática (sociedade de
massas), alheia aos mandos e desmandos jurídicos e políticos; n) um sistema jurídico
e político que representa somente a si mesmo e uma população descrente no
sistema...
Crise entrópica do sistema. Está
falido. Desmoralizado. Sangra. Desmorona a passos lentos em nome da “defesa da
democracia”... Ah a democracia... É
preciso considerar a perspectiva analítica de Agamben que considera o fato de
que todos os governos do mundo são neste contexto ilegítimos. As próximas
décadas deverão apontar tendências para outras formas de organização jurídica e
política...
Dr. Sandro Luiz
Bazzanella
Professor de filosofia
na graduação e no Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional da
Universidade do Contestado.
Líder do Grupo de
Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas (CNPq)
Lider do Grupo de
Estudo em Giorgio Agamben (GEA)
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