'O ESTADO BRASILEIRO PARECE
DESINTEGRAR-SE', DIZ HISTORIADOR
Sáb , 29/10/2016 às 10:30 | Atualizado em: 29/10/2016 às 10:39
Chico Castro Jr.
O
historiador e cientista político baiano Luiz Alberto Moniz Bandeira tem seu
livro mais recente lançado no Brasil: A desordem mundial (Ed. Civilização
Brasileira), um amplo estudo do caótico cenário internacional. Aos 80 anos, ele
também tem sido homenageado pela sua vasta obra e história de vida de
intelectual engajado. Em junho, foi homenageado pela União Brasileira de
Escritores. No dia 4, a homenagem é na Usp. Da Alemanha, onde vive, ele
concedeu esta entrevista.
Em seu livro A desordem
mundial, o senhor aborda diversos pontos de tensão ao redor do mundo. O mundo
retrocedeu na busca pela paz entre as nações? Como o Brasil do golpe
parlamentar / impeachment se encaixa neste complicado tabuleiro de xadrez?
Desde o
governo do presidente Lula da Silva, o Brasil, conquanto mantivesse boas
relações com os Estados Unidos, inflectiu em sua política exterior no sentido de
maior entendimento com a China e a Rússia e empenhou-se na conquista dos
mercados da América do Sul e África, a favorecer as empresas nacionais, como
todos os governos o fazem. Ao mesmo tempo, reativou a indústria bélica, com a
construção do submarino atômico e outros convencionais, em conexão com a
França, a compra dos helicópteros da Rússia e dos jatos da Suécia, países que
aceitaram transferir a tecnologia, como determinou a Estratégia Nacional de
Defesa, aprovada pelo Decreto Nº 6.703, de 18 De dezembro de 2008. E essa
transferência de tecnologia, que os Estados Unidos não aceitam realizar, é
necessária, indispensável, ao desenvolvimento econômico e à defesa do Brasil,
pois “la souveraineté est la grande muraille de la patrie”, conforme o grande
jurista Rui Barbosa proclamou, ao defender, na Conferência de Haia (2007), a
igualdade dos Estados soberanos. Outrossim, ele advertiu, citando Eduardo
Prado, autor da obra A ilusão Americana, que não se toma a sério a lei das
nações, senão entre as potências cujas forças se equilibram. Esta lição devia
pautar a estratégia de segurança e defesa nacional. O Brasil é e sempre foi um
pivot country no hemisfério sul devido à sua dimensão geográfica, demográfica e
econômica, a maior do hemisfério, abaixo dos Estados Unidos, apesar da
assimetria. E constituiu com a Rússia, Índia e China o bloco denominado BRIC,
contraposto, virtualmente, à hegemonia dos Estados Unidos, e abrir uma
alternativa à preponderância do dólar nas finanças e no comércio internacional.
Tais fatores, inter alia, como a exploração do petróleo pré-sal sob o controle
da Petrobrás, dentro de um contexto em que os Estados Unidos deflagraram outra
guerra fria contra a Rússia e, também, contra a China, concorreram para que
interesses estrangeiros, aliados a poderoso segmento do empresariado
brasileiro, sobretudo do Sul do país, encorajassem e financiassem o golpe
parlamentar, conjugando a mídia e o judiciário, com o apoio de vastas camadas
das classes médias.
Como o senhor viu o processo
do impeachment e a ascensão de Michel Temer ao poder? Como em 1964,
há quem diga que o golpe / impeachment atende a interesses norte-americanos -
desta feita, no pré-sal. O senhor acredita nesta hipótese?
O Estado
brasileiro parece desintegrar-se. Nem durante a ditadura militar a Polícia
Federal invadiu o Congresso. Ela ganhou uma autonomia, que não podia ter, não
respeita governo nem a Constituição, e muitos de seus agentes são treinados e
conectados com o FBI, DEA, CIA etc. Os promotores-públicos e juízes, por sua
vez, passam por cima das leis, extrapolam, como senhores de um poder absoluto e
incontestável. Estão incólumes. Quase nunca são penalizados. E, quando o são,
afastados das funções, continuam a receber suas elevadas remunerações, dez
vezes ou mais superiores aos dos juízes da Alemanha, França, Inglaterra,
Estados Unidos e outros países altamente desenvolvidos, segundo a European
Commission for the Efficiency of Justice (CEPEJ) e outras fontes. Certos
magistrados do STF comportam-se como políticos partidários. Outros, que se
deviam resguardar, fazem declarações públicas, antecipando julgamentos, e
afiguram como se estivessem intimidados pela grande mídia, um oligopólio,
uníssono na condenação, aprovação ou omissão de fatos. O Congresso está
pervertido, muito dinheiro correu para a efetivação do impeachment da
presidente Dilma Rousseff, canalizado pela CIA e ONGs, financiadas sustentadas
pelas fundações de George Soros, USAID e National Endowment for Democracy
(NED), dos Estados Unidos. E esse golpe de Estado, que começou com as
demonstrações em São Paulo, no estilo recomendado pelo professor Gene Sharp, no
seu manual Da Ditadura à Democracia, traduzido para 24 idiomas, atendeu a
interesses estrangeiros, entre os quais, mas não apenas, não o único, a
exploração das camadas de pré-sal, que, de acordo com a Lei 12.351 estaria a
cargo da Petrobras, como operadora de todos os blocos contratados sob o
regime de partilha de produção, condição esta anulada pelo projeto 4.567, em
tramitação na Câmara de Deputados. Todo o alicerce da república, proclamada com
o golpe de Estado de 1889, está podre. É um lodaçal.
Como o senhor vê o juiz
Sergio Moro? Herói inquestionável para uns, inquisidor a serviço da plutocracia
para outros, ele é sinônimo de polêmica, inclusive, por que passou por um
estágio no FBI, segundo a filosofa Marilena Chauí.
O que
Marilena Chauí disse é, virtualmente, certo. De qualquer modo, o fato é que o
juiz Sérgio Moro, condutor do processo contra a Petrobras e contra as grandes
construtoras nacionais, realizou cursos no Departamento de Estado, em 2007. No
ano seguinte, em 2008, o juiz Sérgio Moro passou um mês num programa especial
de treinamento na Escola de Direito de Harvard, em conjunto com sua colega
Gisele Lemke. E, em outubro de 2009, participou da conferência regional sobre
“Illicit Financial Crimes”, promovida no Rio de Janeiro pela Embaixada dos
Estados Unidos. A Agência Nacional de Segurança (NSA), que monitorou as
comunicações da Petrobras, descobriu a ocorrência de irregularidades e
corrupção de alguns militantes do PT e, possivelmente, passou informação sobre
o doleiro Alberto Yousseff, a delegado da Polícia e ao juiz Sérgio Moro, de
Curitiba, já treinado em ação multi-jurisdicional e práticas de investigação,
inclusive com demonstrações reais (como preparar testemunhas para delatar
terceiros). Não sem motivo o juiz Sérgio Moro foi eleito como um dos dez homens
mais influentes do mundo pela revista Time. Seu parceiro, o procurador-geral
Rodrigo Janot, acompanhado por investigadores federais da força-tarefa
responsável pela Operação Lava Jato, em fevereiro de 2015, foi a Washington
buscar dados contra a Petrobrás e lá se reuniu com o Departamento de Justiça, o
diretor-geral do FBI, James Comey, e funcionários da Securities and Exchange
Commission (SEC). Sérgio Moro e o procurador-geral da República Rodrigo Janot
atuaram e atuam com órgãos dos Estados Unidos, sem qualquer discrição, contra
as companhias brasileiras, atacando a indústria bélica nacional, inclusive a
Eletronuclear, levando à prisão seu presidente, o almirante Othon Luiz Pinheiro
da Silva. E ainda mais eles e agentes da Polícia Federal vazam, seletivamente,
informações para a mídia, com base em delações obtidas sob ameaças e coerção,
com o objetivo de envolver, sobretudo, o ex-presidente Lula. Os danos que
causaram e estão a causar à economia brasileira, interna e externamente,
superam, em uma escala muito maior, imensurável, todos os prejuízos que a
corrupção, que eles dizem combater. E continua a campanha para desestruturar as
empresas brasileiras, estatais e privadas, como a Odebrecht, que competem no
mercado internacional, América do Sul e África.
No Brasil e no mundo, parece
estar ocorrendo uma espécie de levante conservador antiprogressista. Quem o
senhor acha que está por trás da paranóia anticomunista que desenterraram lá
dos anos 1950 em pleno século 21? A quais interesses serve este tipo de
manipulação da opinião pública?
Não
estou a ver nenhuma paranóia anticomunista no Brasil nem na Europa. Em São
Paulo, os grupos de pessoas que levantaram a questão do comunismo, nas
demonstrações contra a presidente Dilma Rousseff, eram inexpressivos e ninguém
levou a sério. Aldo Rabelo, dirigente do PC do B, foi ministro da Defesa do
Brasil e nenhum problema houve com as Forças Armadas. Como o notável
historiador Eric Hobsbawm, que conheci em Londres em 1978, disse certa vez à
agência de notícias Telam, da Argentina, “já não existe esquerda tal como era”,
seja socialdemocrata ou comunista. Ou está fragmentada ou desapareceu. Ele toda
a razão tinha. Entretanto, o elevado desenvolvimento tecnológico favoreceu a
concentração de riqueza e de poder e as disparidades sociais aumentaram ainda
mais nos países da periferia do sistema capitalista, alimentando o
fundamentalismo religioso, em meio à instabilidade política. E oito anos após o
colapso financeiro de 2007/2008, mais de 44 milhões de pessoas estão
desempregadas nos países da Europa e nos Estados Unidos. Mesmo assim, as
grandes corporações bancárias e industriais, o capital financeiro
internacional, tratam de impor ao país reformas no sentido de acabar com os
direitos sociais, conquistados pela classe trabalhadora ao longo do século XX.
E, ainda mais, os Estados Unidos pretendem eliminar a legislação nacional dos
diversos países para que os interesses das megacorporações multinacionais, do
capital financeiro, sobrepujam a soberania dos Estados nacionais nas relações
econômicas e comerciais, conforme estatuídas nos dos Tratado de Parceria
Transatlântica (TPA), Tratado Trans-Pacífico (TTO) e Tratado Internacional de
Serviços (TISA). Mas a resistência aumenta.
Numan Kurtulmus, vice-premiê
turco, declarou (no dia 20 de outubro), que a operação para libertar Mossul
(Iraque) do Estado Islâmico e a guerra na Síria podem levar Estados Unidos e
Rússia a um conflito direto, uma “3ª Guerra Mundial”. E ainda há a situação
complicada na Ucrânia. Isto vai de encontro ao tópico das “guerras por
procuração” que o senhor desenvolve em seu livro. Estamos a caminho de um
conflito global?
O polo
maior de tensão não é Mossul. É Aleppo, na Síria. Lá os Estados Unidos estão em
um beco sem saída. A cidade, a segunda maior e mais importante da Síria, sob
intenso bombardeio, está na iminência de cair sob o domínio completo das forças
de Bashar al-Assad. E se Aleppo cair, Damasco, que já conquistou Latakia, Homs
e Hama, dominará praticamente toda a Síria. Essas cidades concentram 70% da
população e os mais significativos redutos industriais e praças de comércio do
país, cujo resto do território é quase todo deserto. Os Estados Unidos,
entretanto, continuam a sustentar a resistência dos que chamam de “rebeldes
moderados”, na verdade, terroristas da Jabhat Fatah al-Sham (Frente da
Conquista da Síria), Jabhat al-Nusra, ramo de al-Qaeda na Síria, Ahrar al-Sham
e mais diversos grupos jihadistas. Por volta do dia 20 de outubro de 2016, a
Rússia enviou dois maiores navios de sua Marinha de Guerra, o cruzador de
combate Pyotr Velikiy (099), movido a energia nuclear, e o porta-aviões
Almirante Kuznetsov para o leste do Mediterrâneo, com a tarefa de instituir uma
zona de exclusão naval de 1.500km, ao longo do litoral da Síria, e enfrentar
qualquer ataque de países do Ocidente contra Damasco. Por outro lado, uma
fragata da Marinha de Guerra da Alemanha e o porta-aviões Charles de Gaulle já
se dirigiram para a mesma região. Quanto à Ucrânia, Washington está consciente
de que a Rússia não vai devolver a Criméia e Kiev alternativa não tem senão
reconhecer a autonomia da região de Donbass, Donetsk e Luhansk. Não creio,
porém, que a Rússia e os Estados Unidos/OTAN cheguem, diretamente, a qualquer
confronto armado seja por causa da Ucrânia ou da Síria. Uma guerra nuclear
aniquilaria toda a humanidade.
Há quem defenda os Estados Unidos como o
país mais democrático do planeta. Mas logo no primeiro capítulo do seu livro, o
senhor relata uma tentativa de golpe fascista em 1934, alinhado ao governo
alemão hitlerista e bancado pela elite econômica ianque. Há ainda o histórico
de intervenções (abertas ou secretas) que os EUA praticam em todo o mundo,
inclusive no Brasil, sempre vendendo sua ideia de “democracia”, também
amplamente documentado em sua obra. O mundo ficaria melhor sem essa política
intervencionista? Ou ela serve ao equilíbrio de poder?
Os Estados Unidos,
devido às suas tradições culturais e políticas e ao elevado desenvolvimento do
capitalismo, precisavam e precisam conservar a mantra do “excepcionalismo”, do
exemplo de democracia perfeita etc. Porém, a suposição de que lá nunca houve
golpes de Estado não corresponde propriamente aos fatos históricos. Se nos
Estados Unidos não houve golpes militares, ocorreram quatro assassinatos de
presidentes e cinco atentados, que fracassaram. Constituíram atos de violência
e aparentemente resultaram de conspirações, para mudança de governo. Abraham
Lincoln (1865), James Garfield (1881), William McKinley (1901) e John F.
Kennedy (1963) foram assinados. E Andrew Jackson (1835), Franklin D. Roosevelt
(1933) (como presidente eleito), Harry S Truman (1950), Gerald Ford (1975) e
Ronald Reagan (1981) sofreram tentativas de assassinato. No entanto, na América
espanhola, apesar da instabilidade, nunca geralmente ocorreu a necessidade de
matar o presidente, o que só ocorreu em meio de uma revolução ou de um golpe
militar, como, e.g., no Chile (Manuel de Balmaceda, 1891), Bolívia (Gualberto
Villarroel, 1946) e Chile (Salvador Allende, 1943) . Quase sempre bastou que o
Exército se rebelasse, desse um golpe e expulsasse ou exilasse o presidente. É
necessário, entretanto, não esquecer que os golpes de Estado, ocorridos,
sobretudo, a partir da Segunda Guerra Mundial, como no Brasil, Argentina, Chile
etc., foram encorajados pelos Estados Unidos, cujas intervenções, diretas e/ou
indiretas, só produziram, desde o fim da Guerra Fria, guerras, terror, caos e
catástrofes humanitárias.
A onda do ódio conservador atualmente em
voga tem dado força a candidatos de perfil bastante controverso, como Donald
Trump, Marine Le Pen e no Brasil, Jair Bolsonaro. O senhor acredita que eles
possam chegar ao poder em seus países? Que consequências adviriam da eleição
deles?
Jair Bolsonaro é
caricatura, comparado com Donald Trump e Marine Le Pen. Não creio que esse
coronel, uma reminiscência grotesca do que houve de pior na ditadura militar,
pudesse ser eleito presidente no Brasil. Os fatores que alimentam as
candidaturas de Donald Trump (Hillary Clinton é uma excrescência
neoconservadora, responsável também pela sangueira na Líbia) e Marine le Pen
são outros e diversos. Nos Estados Unidos, o presidente Barack Obama, do
Partido Democrata, é igual ou pior que seu antecessor George W. Bush,
neoconservador do Partido Republicano. Na França, François Hollande, do Partido
Socialista, é da mesma laia que seu adversário conservador e colonialista
Nicolás Sarkozy. Entre les deux mon cœur balance. Je ne sais pas laquell au
pis-aller. E daí é que Marine le Pen desponta.
O senhor será homenageado pelos seus 80
anos na USP. Como se sente?
Sinto-me confortado. É
um reconhecimento de minha obra. Fiz meu doutoramento na Universidade de São
Paulo, onde sempre tive e tenho muitos amigos desde meus 20 anos de idade.
Sinto muitas saudades e, infelizmente, meu coração, enfermo, não mais me
permite voar cerca de 11/12 horas para rever o Brasil. Morei muitos anos em São
Paulo e lá vivi, clandestinamente, durante a ditadura militar. E profundamente
grato sou as homenagens que meus queridos amigos e colegas da União Brasileira
de Escritores (UBE) e a Universidade de São estão prestar-me, aos meus 80 anos.
Vejo que meu trabalho, ao longo de tantas décadas, não foi em vão. Frutificou.
Qual sua relação com a Bahia hoje? O
senhor tem memória afetiva daqui? Sente falta?
Apesar de viver tantos
anos longe, nunca deixei de amar a Bahia, onde nasci e me criei, até 18/19 anos
de idade, quando passei para o Rio de Janeiro e São Paulo e então me tornei
citizen of the world. Porém meus vínculos com a Bahia nunca se desvaneceram.
São e continuam profundos. Sou descendente de Garcia d’Ávila, da Casa da Torre,
e de Diogo Moniz Barreto, que chegou à Bahia com Tomé de Sousa e foi primeiro
alcaide-mor de Salvador. Aí estão minhas raízes, que se alastraram pelo
Recôncavo e adjacências. Tenho muitas saudades da Bahia, a Bahia histórica, a
Bahia que sempre cultivou a cultura e deu ao Brasil grandes escritores, poetas,
romancistas, e homens de ciência. Na Bahia, recebi uma educação humanística,
desde o Colégio da Bahia, até o primeiro ano, na Faculdade de Direito, no
Portão da Piedade, o que me valeu para toda a minha vida e carreira acadêmica,
como cientista político e historiador. Nas duas instituições de ensino tive
excelentes professores, dos quais guardo as melhores recordações. E sinto muito
orgulho por haver recebido da Faculdade de Filosofia e Ciências Humana da UFBA,
importante universidade de meu Estado natal, ora sob a gestão do eminente reitor,
Prof. Dr. João Carlos Salles, o título de Dr. honoris causa. Sim, sinto falta
de tudo, que tive, na minha infância e adolescência, da comida, das moquecas,
mas, até hoje, conquanto a viver na Alemanha há mais de 20 anos, não dispenso a
pimenta e a farinha.
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