COMPARATO: UM
JUDICIÁRIO SEM CONTROLE ALGUM
Para o grande jurista, há uma
razão para quase duzentos anos de desresponsabilização dos juízes: eles são o
grande guardião do poder oligárquico. Mas existem alternativas
Fábio Konder Comparato,
entrevistado por Franciele
Petry Schramm*
O arquivamento do pedido
de impeachmentdo
Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, enquanto ainda
tramitava no Senado Federal, não surpreendeu Fábio Konder Comparato, um dos
integrantes do grupo de juristas que apresentou o pedido.
Segundo o professor emérito de
Direito da Universidade de São Paulo (USP), é preciso levar em consideração que
os senadores são julgados pelo STF nas infrações penais comuns, e que vários
deles respondem a inquéritos criminais ou são réus em ações penais. “É
óbvio que o Senado Federal não é o órgão apropriado para julgar os crimes de
responsabilidade cometidos pelos Ministros do Supremo Tribunal”, avalia.
Apresentado ao Senado no dia 13
de setembro e arquivado uma semana depois, o pedido de impeachment de Gilmar
Mendes aponta, em seus argumentos, o comportamento partidário do ministro e a
violação de princípios constitucionais e de códigos da magistratura.
Em entrevista a Articulação
Justiça e Direitos Humanos, Comparato alerta para a falta de controle jurídico
sobre Ministros do Supremo Tribunal Federal e aponta a necessidade de uma
reforma do Poder Judiciário.
JusDh: O pedido de impeachment
de Gilmar Mendes aponta um comportamento partidário por parte de Gilmar Mendes,
e acusa o ministro de ferir a Constituição, o Código de Ética e a Lei Orgânica
da Magistratura. O senhor considera que a postura do Ministro é uma postura
isolada dentro do STF?
Fábio Comparato: De todos os
atuais Ministros do Supremo Tribunal Federal, o desempenho de Gilmar Mendes é o
que mais deixa a desejar. É por isso que decidimos ingressar com o pedido de
impeachment, exatamente para alertar os demais Ministros e a opinião pública
quanto ao perigo de generalização desse mau procedimento. Na verdade,
atualmente os Ministros de nossa Suprema Corte de Justiça não estão sujeitos a
controle jurídico algum, pois não há nenhum Poder acima do tribunal e dos
magistrados que o compõem. A Constituição Federal dispõe em seu artigo 102
competir precipuamente ao Supremo Tribunal Federal “a guarda da Constituição”.
O Conselho Nacional de Justiça é um órgão constitucional, com competência para
controlar o cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, declarados no
Estatuto da Magistratura (art. 103-B, § 4º). Ninguém pode negar, nem mesmo o
Ministro Gilmar Mendes, que os Ministros do Supremo Tribunal Federal fazem
parte da magistratura e devem, por conseguinte, cumprir os deveres impostos
pelo Estatuto da Magistratura. Ora, abusando de sua condição de instância
judiciária máxima, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Ação Direta de
Inconstitucionalidade 3.367 do Distrito Federal, decidiu que “o Conselho Nacional
de Justiça não tem nenhuma competência sobre o STF e seus Ministros”. Ou seja,
o tribunal decidiu isentar-se do cumprimento de qualquer dever funcional, ainda
que previsto na Constituição, da qual foi declarado guardião.
Esse não a primeira vez que um
pedido de impeachment de um ministro do STF foi protocolado no Senado Federal.
Até o momento, nenhum desses pedidos foi acatado pelo Senado. O senhor avalia
que há dificuldade em colocar em questionamento as posturas e decisões do STF?
Por quê?
Levando-se em conta que os
Senadores são sujeitos à jurisdição do Supremo Tribunal Federal nas infrações
penais comuns, e sabendo-se que vários dos atuais Senadores respondem a
inquéritos criminais, ou já são réus em ações penais, é óbvio que o Senado
Federal não é o órgão apropriado para julgar os crimes de responsabilidade
cometidos pelos Ministros do Supremo Tribunal. Consta, aliás, que Sua
Excelência, o Sr. Presidente do Senado Federal, responde a inquérito criminal
no Supremo. Ora, ele, evidentemente, assim que recebeu a petição de impeachment
de Gilmar Mendes, determinou o seu arquivamento. Ou seja, aplicou-se o velho
costume do “dá lá, toma cá”.
De que forma a composição do
Sistema de Justiça contribuiu para a manutenção de uma prática pouco
democrática e que nem sempre observa a garantia dos direitos humanos?
Até a promulgação da Lei
Orgânica da Magistratura (Lei Complementar nº 35, de 14/03/1979), não eram
definidos os deveres funcionais dos magistrados. E até a promulgação da Emenda
Constitucional nº 45, de 8/12/2004, que instituiu o Conselho Nacional de
Justiça, não havia nenhum órgão de controle da atuação dos magistrados,
incumbido de julgar o cumprimento de tais deveres. Verificamos, portanto, que
durante um século e meio após a Independência, os nossos magistrados atuaram
isentos de qualquer controle, a não ser o mui esporadicamente exercido por eles
mesmos.
Dois exemplos históricos são
ilustrativos dessa tradição de irresponsabilidade.
Em sua viagem ao redor do
mundo, pela qual comprovou sua teoria da evolução das espécies, Charles Darwin
fez uma estadia de vários meses no Brasil em 1832. Pôde então verificar o
seguinte, conforme reportado em seu diário de viagem:
“Não importa o tamanho das
acusações que possam existir contra um homem de posses, é seguro que em pouco
tempo ele estará livre. Todos aqui podem ser subornados. Um homem pode
tornar-se marujo ou médico, ou assumir qualquer outra profissão, se puder pagar
o suficiente. Foi asseverado com gravidade por brasileiros que a única falha
que eles encontraram nas leis inglesas foi a de não poderem perceber que as
pessoas ricas e respeitáveis tivessem qualquer vantagem sobre os miseráveis e
os pobres”.
O segundo exemplo diz respeito
ao Supremo Tribunal de Justiça, o mais alto órgão judiciário no tempo do Império.
Ao final do seu reinado,em declaração ao Visconde de Sinimbu, D. Pedro II não
pôde conter-se e desabafou:
“A primeira necessidade da
magistratura é a responsabilidade eficaz; e enquanto alguns magistrados não
forem para a cadeia, como, por exemplo, certos prevaricadores muito conhecidos
do Supremo Tribunal de Justiça, não se conseguirá esse fim”.
Quais caminhos e possibilidades
o senhor considera necessário para tornar o Sistema de Justiça menos
intangível, no que se refere à sua composição e na avaliação de suas
próprias ações?
Desde sempre a magistratura
brasileira, com raras e mui honrosas exceções, fez parte integrante do poder
oligárquico, que predominou em nosso país desde o início da colonização
portuguesa. Ora, um costume multissecular, entranhado na mentalidade coletiva e
preservado pelas instituições políticas, não desaparece em pouco tempo. O
processo de reforma em profundidade do Poder Judiciário será, portanto,
concomitante ao processo de extinção do regime oligárquico; ou seja, não se
fará da noite para o dia e, uma vez iniciado (o que ainda não aconteceu), irá
durar várias gerações. O que se pode fazer hoje para provocar o início desse
processo é propor algumas medidas específicas, as quais, como o pedido de
impeachment de Gilmar Mendes, serão no começo certamente denegadas, mas, sendo
reiteradas, acabarão por abalar a opinião pública, abrindo os olhos da maioria
do povo, que não faz parte da oligarquia. Uma dessas medidas é a transformação
do Supremo Tribunal Federal em Alta Corte Constitucional, reduzindo a sua
competência e determinando que a nomeação de seus Ministros seja feita pelo
Congresso Nacional, dentre candidatos escolhidos preliminarmente pelo Conselho
Nacional de Justiça, o Conselho Superior do Ministério Público e o Conselho Federal
da Ordem dos Advogados do Brasil. É o que consta da Proposta de Emenda
Constitucional nº 275/2013, por mim redigida e apresentada à Câmara dos
Deputados pela Deputada Luiza Erundina. A segunda medida é a reorganização do
Conselho Nacional de Justiça, a fim de que ele não seja composto por uma
maioria de magistrados, como agora, e passe a ter explicitamente jurisdição
sobre os Ministros do Supremo Tribunal Federal. A terceira medida seria,
simplesmente, reintroduzir em nossa Constituição a ação popular contra
magistrados, como determinavam os artigos 156 e 157 da Constituição de 1824:
Art. 156 – Todos os Juízes de
Direito e os Oficiais de Justiça são responsáveis pelos abusos de poder e
prevaricações que cometerem no exercício de seus Empregos; esta responsabilidade
se fará efetiva por Lei regulamentar.
Art. 157 – Por suborno, peita,
peculato e concussão, haverá contra eles ação popular, que poderá ser intentada
dentro de ano e dia pelo próprio queixoso, ou por qualquer do Povo, guardada a
ordem do Processo obedecida na Lei.
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