Empenhos e prisões
Nosso ideal constitucional de democracia e
igualdade não existe, é uma ficção legal e política
Ainda vai levar tempo para nos recuperarmos da descoberta
indiscutível que, no Brasil, o campo político está colado a redes de velhos
empenhos, os quais estremeceram muita esperança ideológica e produziram
projetos impensáveis de enriquecimento particular. No tamanho e na expressão,
seriam equivalentes aos Planos Quinquenais soviéticos só que foram realizados
por meio de uma ética relacional.
Por um casamento não previsto de burocracia
com carisma e patrimonialismo. O elo entre Cabral filho e Eike Batista, desenvolvido
a partir de uma foco clientelístico (ah! moleque! Você é dos meus), populista
(comigo ninguém perde) e burocrática (tudo dentro da lei), demonstra a força da
reciprocidade (e do presente) em áreas nas quais ela deveria ser disciplinada.
O empresário simpático e
preparado, projetado como um dos homens mais ricos do mundo, está, até o
momento em que traço essas linhas, foragido porque, não sendo um nobre
brasileiro de verdade, corre o risco de “pegar” uma prisão comum. De ver o sol
nascer quadrado em presídios que o ex-ministro da Justiça petista, José Eduardo
Cardozo, temia e classificava como medievais.
Batizado como celebridade,
Eike Batista adquiriu tudo menos um diploma universitário. E assim ficou fora
do patamar básico da nobreza nacional: o degrau dos “doutores”, que têm direito
a tratamento diferenciado num sistema que fala de tudo, reclama de todos, faz
da intriga profissional um ganha-pão, mas jamais se conscientizou dos
privilégios que até hoje comandam e desgastam a nossa experiência democrática.
Pois privilégios, aliados a redes de empenho nas quais se entra por simpatia e
bajulação, conjugadas com mercado são a receita do “capitalismo selvagem”
talhado por “arrumações”. Um título ou um cargo são suficientes para escapar do
absurdo da igualdade da lei que - diz a ficção - valeria para todos.
Não é maravilhoso viver num país onde “ser doutor” relativiza o
crime, ao mesmo tempo que, legal, mas antidemocraticamente, livra da “prisão
comum” o meliante? Sem o privilégio do título, Eike corre o risco de acabar num
desses cárceres administrados por facções criminosas, já que o nobre “Estado”
que (na cabeça de muitos) seria a alavanca de redenção social mete o bedelho em
todos os lugares, menos em algumas prisões que, como tudo que existe no País,
estão também graduadas. Existem cadeias “modernas” e xilindrós cujas celas são
centrais de crime.
Dizem que Eike teme a
prisão comum, mas eu não acredito que um homem com o seu capital simbólico
tenha algo a temer num país cujas regras variam de acordo com as pessoas.
Primeiro, porque a prisão dos “grandes” é algo revolucionário (ou, dependendo
do lado, revoltante) num Brasil onde governar tem sido - com raras exclusões -
sinônimo de obter vantagens pessoais. Segundo, porque a organização social das facções,
tal como elas foram pioneiramente analisadas por Alba Zaluar, funciona pelos
mesmos princípios que ordenam o mundo social.
Eu dou lealdade e
subserviência, você retribui com proteção e empenho. Esse é o lema implícito da
vida política nacional e nas prisões. O prisioneiro neófito entra na facção
porque o Estado não lhe garante segurança. No Brasil, “ir para a cadeia”
corresponde a ser destituído de humanidade. A desumanização do prisioneiro faz
parte da nossa ideia de castigo.
Ademais, como ter prisioneiros
tratados com humanidade e, ao mesmo tempo, aprisionar políticos e empresários
ambiciosos e desonestos? Estaria aí o centro do nosso dilema moral? A igualdade
perante a lei implica o respeito pelos criminosos e - eis o paradoxo - na
punição dos privilegiados. Aqueles a quem a sociedade confiou uma administração
pública honesta e criativa. O voto dado exige uma devoção ao cargo, e o cargo,
uma entrega ao bem comum. Mas como tornar tal valor uma realidade se os
políticos e os empresários se associam para roubar, desrespeitando as normas
fundamentais da honestidade? Se seguir a lei é, ainda hoje, uma babaquice,
porque segui-la quando se está no poder?
O que essas prisões de
“gente grande” revelam, o espanto que causam, o furor que despertam, é que elas
confirmam que o nosso ideal constitucional de democracia e igualdade não
existe. É uma ficção legal e política.
Não buscamos ser o cidadão
comum. Todo queremos ser celebres e “grandes”. Queremos ser aquele cujo
prestígio engloba até mesmo a verdade e os fatos. Aquele que é garantido por
todo tipo de apoio e empenho. Todos entendemos, mas também sabemos como é
difícil estabelecer uma cultura igualitária numa sociedade de barões, figurões
e reizinhos. Pois até no inferno das nossas prisões, assistimos estupefatos à
guerra pela precedência e pelo privilégio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário