AS CIDADES SERÃO O PALCO
DA RENOVAÇÃO
POLÍTICA NO BRASIL
A
agenda da renovação está sendo gestada fora dos partidos políticos. Em grupos,
coletivos e movimentos sociais bastante atuantes e engajados. Na prática, isso
significa que a forma pela qual todo esse anseio pelo “novo” se relacionará com
os partidos políticos pode ser uma variável determinante nessa história.
Desde
as jornadas de junho de 2013, o Brasil passa por um momento de ebulição de um
sem-número de grupos, coletivos e movimentos da sociedade civil que buscam
mobilizar esforços em torno de uma agenda chamada de “renovação política”. A
exemplo do que acontece em outros países da América Latina e da Europa, os
novos atores políticos que entram em cena perturbam positivamente o establishment brasileiro,
em defesa de pautas historicamente negligenciadas pelo poder público e por uma
parcela influente e significativa da sociedade.
O
debate acerca da intitulada renovação se propõe a dar respostas a um momento
político no qual as instituições públicas perdem legitimidade e a crítica na
sociedade sobe o tom em relação à desproporção da representação política de
homens brancos, em detrimento de mulheres e negros(as). Um período em que a
corrupção se torna assunto recorrente no cotidiano das pessoas e a atenção da
classe política às necessidades mais básicas da população não chega nem perto
de garantir o mínimo de dignidade.
No
entanto, por mais que o movimento renovacionista se apresente como resposta ao
déficit de democracia e cidadania que fustiga o Brasil, chama a atenção o fato
de nenhuma de suas pautas consistirem exatamente em uma novidade. Há décadas
organizações da sociedade civil, grupos e movimentos sociais trazem a demanda
por renovação para o centro do debate. Porém, mesmo não sendo uma novidade, a
reivindicação pelo “novo” na política atual configura uma agenda que encontra
ressonância em diferentes espectros ideológicos e diversos setores da
sociedade.
Em
tempos de conexões brutas entre os campos moral e político, é possível observar
pelo menos três grandes fluxos de discussão no cenário brasileiro que deveriam
caracterizar a demanda por renovação política: um voltado para a ampliação da
oferta de serviços e para a implementação de políticas públicas estruturantes
com mais qualidade, em áreas como moradia, saúde, educação, meio ambiente,
etc.; outro ancorado pelas pautas identitárias feministas, antirracistas e
LGBTQI; e um terceiro fluxo focado na democratização do poder e na
transparência, que pleiteia o fortalecimento dos mecanismos de participação
direta, o combate à corrupção, a descentralização, a ética e outros. Os três
fluxos se relacionam e têm conexões entre si, mas, para fins de análise, é
importante separá-los.
Esses fluxos de discussão
influenciam fortemente o debate acerca da renovação política, e seria
interessante a onda renovacionista prestar atenção em suas demandas e anseios.
Mesmo discursos e propostas mais conservadoras e liberais giram em torno desses
fluxos. Formulações mais privatistas, que defendem a redução do tamanho do
Estado, narrativas anticotas e a relativização do racismo e do machismo não
rompem a lógica desses eixos estruturais. Pelo contrário. Apenas os reafirmam.
Seja pela negação ou pela afirmação, esses são pontos elementares do que se
deve considerar como agenda de renovação na atual arena política brasileira:
ampliação dos serviços e políticas públicas, incorporação das pautas
identitárias e democratização do poder.
Dessa forma, a pauta da renovação política consiste muito
mais na articulação desses três fluxos de debate público do que somente na
mudança do modo de fazer política. Por mais que alguns dos chamados “movimentos
cívicos” e outros grupos por vezes escorreguem na armadilha de focar sua
atuação apenas na forma e não no conteúdo, o desafio posto ao processo de
renovar a política brasileira diz respeito à habilidade desses coletivos e
movimentos de articular esses três eixos estruturantes do debate. Ou seja, mais
do que valor em si, a agenda da renovação política se fortalece quando encontra
sua habilidade de produzir convergência entre os três fluxos.
Articular os fluxos aqui significa ter a capacidade de
formular propostas concretas que produzam confluência entre eles, respeitando
sempre suas singularidades. Tais propostas têm o repto de convencer a população
e trazer-lhe esperança. Este é, se não o maior, um dos principais desafios dos
movimentos de renovação política no Brasil. Dessa forma, hierarquizar esses
fluxos, como se uns fossem mais importantes do que outros, ou mesmo apostar no
discurso da transversalidade não dão conta de atender a este desafio. Assim,
articular os fluxos parece ser mais preponderante para a agenda de renovação
política obter êxito do que seguir outros caminhos.
Essa reflexão envolve ainda outro elemento importante.
O anseio pelo “novo” na política não é neutro nem exclusivo de um ou
outro espectro ideológico. Os três fluxos de debate político podem ser
articulados no interior de uma seara conservadora ou progressista – e
talvez esse seja justamente o ponto de maior disputa na sociedade brasileira
hoje e nos próximos anos – o que elimina qualquer possibilidade de conciliação
ou união de forças antagônicas a favor de mudanças concretas e estruturais. O
fato é que a renovação política acontecerá em algum momento e algo novo
substituirá o que está aí. Assim, os grupos e movimentos cívicos precisarão
escolher um lado, que não será construído pela aliança com qualquer outro ator
político.
Outro ponto diz respeito ao contexto em que essa disputa
vai se dar. Por mais que seja óbvio, é preciso considerar que a batalha pela
agenda de renovação política se dará nas urnas. Claro que não só isso, pois as
“ruas” serão também preponderantes nesse processo. Mas o contexto não é
trivial. As eleições desse ano serão uma das mais polarizadas da história do
país. A disputa pela agenda da renovação política se confundirá com a disputa
pelo controle do Estado. Se os três fluxos de debate político aqui mencionados
configuram – ou deveriam configurar – o centro gravitacional da agenda de
renovação política, o arrabalde disso será o contexto eleitoral.
Ainda nesse sentido, cabe considerar que a agenda da
renovação está sendo gestada fora dos partidos políticos. Isto é, em grupos,
coletivos e movimentos sociais bastante atuantes e engajados. Na prática, isso
significa que a forma pela qual todo esse anseio pelo “novo” se relacionará com
os partidos políticos pode ser uma variável determinante nessa história. Isso
porque os partidos perderam o monopólio de ditar a dinâmica do processo
eleitoral e terão de criar meios de se relacionar e absorver uma agenda de renovação
elaborada fora deles. Isso será um tremendo desafio. É claro que eles, os
partidos, estão atentos e até debatem a questão com alguma profundidade. Eles
estarão disputando essa agenda nos próximos processos eleitorais. Só que outros
atores também o farão.
Na outra ponta, grupos e partidos políticos identificados
como tradicionais – sejam eles do campo progressista ou conservador – vêm
apresentando enorme dificuldade em absorver verdadeiramente a demanda pela
renovação política gestada na sociedade e em grupos, coletivos e alguns
movimentos sociais.
No campo conservador, essa articulação entre o novo e o
velho se dá de maneira mais orgânica. Pelo histórico oligárquico brasileiro, as
agendas de renovação conservadora têm maior aderência aos partidos e grupos
políticos mais tradicionais, reconhecidamente à direita no espectro ideológico.
As narrativas se encontram de maneira quase natural.
Por outro lado, no campo progressista, a disputa entre o
novo e o velho, entre as novas formas de organização política e os partidos
tradicionais, produz atritos mais ruidosos – claro que o que se coloca aqui é a
relação entre as agendas de renovação progressista e os partidos à esquerda no
espectro ideológico. Muito poderia ser falado sobre esse tema, mas um ponto
específico merece ser especialmente mencionado (sem esgotar o debate, no
entanto): práticas machistas, racistas e homofóbicas dos partidos de esquerda,
quando em contraposição às demandas identitárias, dificultam a absorção dessas
pautas e cria entraves para que a agenda de renovação política progressista
ganhe maior aderência nos partidos.
Sobre o assunto, ressalta-se o fato de não ser apenas esse
o desafio a ser superado no choque que haverá entre os movimentos
renovacionistas e os partidos políticos tradicionais. Se, por um lado, os
partidos assumirão o desafio de absorver as demandas pelo “novo” na política –
forma e conteúdo – que os grupos e coletivos trazem consigo, por outro os
movimentos cívicos terão de aprender a lidar com o acúmulo político, no que
tange ao conteúdo programático e à estratégia, que os partidos produziram
nesses últimos anos de atuação.
À vista disso, o cenário está montado. A articulação entre
os três fluxos de discussão que pode caracterizar a agenda de renovação
política se dará pela via progressista ou conservadora, a depender da disputa
que terá nas ruas seu vetor mais potente, mas que precisará ter aderência dos
partidos políticos para se expressar nas urnas. Uma coisa influenciará a outra.
Se a articulação entre os três fluxos não produzir propostas concretas de
atuação governamental, respondendo às demandas da população e convencendo-a de
que existe de fato uma alternativa ao que está aí, e, ainda, se essa
articulação não obtiver aderência real dos partidos políticos – o que inclui o desafio
dessa resultante conseguir ser vitoriosa nas urnas –, será muito difícil
assistirmos a um processo de renovação política no Brasil. Isto é, uma
renovação política progressista e de enfrentamento. Porque uma renovação
política conservadora, leia-se um falseamento da renovação política, poderá sim
ocorrer, articulando os três fluxos de debate político pela sua negativa e
gerando no futuro próximo uma democracia com traços de Estado de exceção.
Frente aos desafios aqui ensaiados, somam-se ainda duas importantes
questões para compor a análise da renovação política no Brasil. A primeira é o
fato de estarmos a menos de um ano das eleições, o que coloca o imperativo do
tempo contra a agenda de renovação, pois seria preciso uma quadra maior na
história para conseguir gestar, formular e articular de maneira concreta e
convincente os três fluxos de discussão. A segunda questão se concentra na
ideia de que as eleições gerais de 2018 envolvem duas esferas – o plano
estadual e o federal – que tradicionalmente apresentam enorme dificuldade de
promover inovação de fato. Pautas como a gestão da Petrobras, o controle de
fronteiras, as reservas nacionais, entre outras, estão muito distantes do
dia-a-dia da população. Sua compreensão é sempre superficial – o que é entendível
–, e a capacidade de inovar nesses assuntos, por parte dos movimentos em defesa
da renovação política, ainda é pequena.
Assim, o tempo que resta para as eleições e a complexidade
das pautas nacionais e estaduais, somados ao cenário político e à relação que
será estabelecida entre os partidos políticos e os três fluxos de discussão,
podem enfraquecer a agenda da renovação política. O ponto é que esta agenda não
terá nem tempo nem envergadura suficientes para produzir propostas concretas
para um projeto inovador de gestão do Estado em 2018, seja no legislativo ou no
executivo. A possibilidade de formulações inovadoras neste ano é muito remota.
E o “novo” que os movimentos chamados de “cívicos” reivindicam para a política
brasileira pode virar apenas uma embalagem – um embrulho em forma de slogan –
de candidatos e campanhas que perpetuarão as mesmas práticas de sempre.
De qualquer forma, é pouco provável que todo o caldo
político produzido em torno da agenda da renovação vá desaguar em 2018, mas as
eleições deste ano podem abrir caminhos e nos dar uma pista de como e quando
isso pode acontecer: no próximo pleito, em 2020.
Identificadas as tendências da renovação política para
esse ano – aparentemente muito diferentes do cenário do processo eleitoral de
2020 – fica mais fácil refletir sobre as potências da agenda renovacionista
para o próximo período. A ideia aqui não é antecipar as próximas eleições
municipais, mas quatro pontos são importantes de serem mencionados para
tentarmos compreender as pujanças entre a agenda de renovação e as eleições de
2020. Em primeiro lugar, o tempo de maturação dessa agenda. Se hoje existem
inúmeros grupos e movimentos debatendo essa temática, por vezes até com
discursos bastante semelhantes entre si, e por vezes também sem muita
concretude nas propostas, será a partir das eleições de 2018, independentemente
de quem vencê-las, que os novos campos políticos serão definidos, fazendo a
poeira do aquário baixar, e ampliando a capacidade desses grupos de
compreenderem a real conjuntura política brasileira. Essa clareza dos fatos e a
definição de um governo eleito pelo voto, incluindo aí um novo Congresso
Nacional, fortalecerá e acelerará o debate acerca do que é renovação política.
Isto é, a definição de um novo governo e de um novo parlamento trará também um
novo arranjo de campos políticos, pautas e estratégias, o que favorecerá o
debate sobre renovação no Brasil, garantindo-lhe mais materialidade. Todas
essas definições devem ganhar corpo em 2019, que será também um ano muito importante
para a política brasileira.
Em segundo lugar, destaca-se o fato de as eleições em 2020
trazerem o debate para o nível municipal. Será nas cidades que as agendas de
renovação encontrarão maior capacidade estrutural e cronológica de se tornarem
reais. Questões como o que fazer com o sistema de ônibus, como gerir as
creches, como dar mais qualidade às praças e centros culturais são
infinitamente mais fáceis de serem digeridas pelo discurso da renovação
política do que a política externa brasileira, o futuro do Pré-Sal, a nova
matriz produtiva nacional, as inversões financeiras ou a composição do
Mercosul. Dessa forma, além do fato de em 2020 o tempo de maturação da agenda
de renovação favorecer sua reflexão, as pautas municipais também beneficiarão o
debate sobre renovação política pela sua objetividade e relação direta que
esses assuntos têm com o cotidiano da população. Soma-se a isso o fato de a
grave crise urbana que aflige o país abrir margem para novas propostas de
gestão de cidades, o que será outra grande oportunidade para a agenda de
renovação.
O terceiro ponto diz respeito ao benefício dos
aprendizados. Nas eleições municipais de 2016, alguns grupos e movimentos que
se colocavam em defesa da bandeira da renovação política foram exitosos, com
destaque para as experiências da Bancada Ativista, em São Paulo, e das Muitas,
em Belo Horizonte. Esses processos aconteceram de forma um pouco amadora e
diletante em 2016, mas terão mais estofo em 2020, podendo assim apresentar
aprendizados, balanços, erros e acertos, e criando certa referência para os
demais grupos no próximo pleito municipal. Esse elemento será demasiadamente
importante para consolidar a agenda da renovação.
O quarto e último ponto traduz o encontro das teorias e
estratégias renovacionistas com a prática dos atores políticos nas cidades. Os
últimos anos foram marcados por uma grande proliferação de pequenos grupos,
coletivos, associações, movimentos sociais e organizações da sociedade civil
que atuam em questões pontuais nas cidades, em especial nos principais centros
urbanos brasileiros. Pequenas experiências como a gestão de hortas
comunitárias, creches comunitárias, gestão das ocupações de movimentos de moradia,
gestão popular de centros e equipamentos culturais, grupos organizados de
cuidado com praças e parques, entre outras experiências em todo o país,
configurarão um cenário auspicioso para o debate sobre renovação política nas
eleições de 2020.
Antes disso, porém, o ano de 2018 promete oferecer uma
bela oportunidade de ensaio para a pauta renovacionista. A abertura dessa
janela que se inicia agora desembocará com força em 2020. Não se trata de
promover aqui futurologia, mas sim de analisar os elementos vivos à nossa
disposição para buscar contribuir para o debate acerca da tão necessária
renovação política no Brasil. A partir das reflexões aqui mencionadas, tudo
leva a crer que a luta pelo “novo” na política, reivindicada por diversos
grupos e movimentos sociais, se dará de fato nas eleições de 2020, o que
significa que será nas cidades o verdadeiro palco da renovação política
brasileira.
Tudo isso não ignora o fato de um dos principais desafios
da agenda de renovação política ser o de articular os três fluxos de discussão
no bojo de um projeto inovador de gestão do Estado, formulando propostas
concretas que produzam esperança na população, reduzam as desigualdades,
garantam o protagonismo das periferias, e, principalmente, que funcionem.
Assim, compreendidos esses desafios, não desconhecendo
outros não citados aqui, fato é que, pelo menos no atual momento, podemos
observar uma tendência de que a agenda da chamada renovação política tem um
horizonte concreto: as eleições municipais de 2020. E será preciso estarmos
preparadas e preparados para chegarmos até lá.
Américo Sampaio é
sociólogo e gestor de projetos da Rede Nossa
Fonte: http://diplomatique.org.br/as-cidades-serao-o-palco-da-renovacao-politica-
no-brasil/
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