CRIMINALIZAÇÃO
DA POLÍTICA E CRIMINALIDADE VIOLENTA
Na sociedade de
mercado, que opera com a ideologia de que todos tem como projeto de vida o
sucesso material, mas que não leva em conta a igualdade de oportunidades,
torna-se muito propensa à expansão da criminalidade. Com a decisão de
intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro, que acaba de ser
tomada, a situação chega ao seu estertor.
O
avanço exponencial da criminalidade violenta, que se verifica no país desde
2017, guarda relação com o processo de criminalização da política. Se esta não chega
a ser uma hipótese original, a reflexão sobre o nexo entre os dois fenômenos
ainda está por ser feita, e na verdade é tarefa urgente, diante do risco da
degeneração da vida social e política, com a barbárie das ruas, e com o avanço
de milícias e de neofascistas, sempre prontos a requentar seus remédios
autoritários.
É
uma velha lição sociológica que uma sociedade de mercado, que opera com a
ideologia de que todos devem ter como projeto de vida o sucesso material, mas
que não leva a sério o primado da igualdade de oportunidades, torna-se muito
propensa à expansão da criminalidade. Em condições normais esse é o caso do
Brasil, que desde as últimas décadas vem caminhando para se tornar um dos
campeões do encarceramento, com a criminalização de parcela significativa de
sua juventude pobre, negra e periférica. Mas a situação se tornou
explosiva, pois a essa configuração sociocultural se juntou o efeito
devastador produzido pela ideia de que a classe política e a elite empresarial
são corruptas e que, afinal, traem a confiança da população.
Em
diversas cidades, grandes e médias, os indicadores de criminalidade acusaram em
2017 uma escalada de homicídios, latrocínios e de outros crimes violentos. Além
disso, cresceu, assustadoramente, o número de indivíduos mortos e feridos,
incluindo policiais, por “balas perdidas”. Mas não há melhor evidência de
que a situação está fugindo do controle das impotentes forças de segurança
pública estaduais do que a frequência com que as Forças Armadas têm sido
solicitadas para atuar em face da violência urbana. Com a decisão de
intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro, que acaba de ser
tomada, a situação chega ao seu estertor.
O
mais grave, porém, é que esse ambiente torna especialmente atraente o mercado
brasileiro para o comércio clandestino de armas de grosso calibre, boa parte
delas de guerra. Fortemente municiadas, quadrilhas novas ou já existentes se
tornaram da noite para o dia mais violentas e com grande poder de intimidação,
o que levou a um crescimento do roubos quase sempre seguidos de morte, de
cargas, de carros forte, de caixas eletrônicos, mas também de motoristas,
passageiros de ônibus, ou simplesmente pedestres. Disso se segue um correlato
processo de avanço de organizações criminosas em presídios que, na luta por
poder, promovem banhos de sangue.
No
Rio de Janeiro, tal situação já assume status de tragédia humanitária, na
medida em que máquinas mortíferas estão sendo ordinariamente utilizadas por
todo tipo de criminoso, inclusive de jovens traficantes de pés descalços. E
contra isso, as autoridades de segurança pública locais insistem em fazer a
única coisa que lhes ocorre, a saber, as covardes e estúpidas operações
policiais em favelas que, diversamente do que sustenta a justificativa oficial,
só tem estimulado o aumento do poderio bélico dos traficantes, aquecendo ainda
mais o mercado para as armas de guerra – além de gerar muito sofrimento e dor,
aprofundando a descrença da população na autoridade policial.
Como
chegamos a esse quadro desolador? Nossa hipótese é a de que já não podemos
explicar a explosão da violência e da criminalidade, adotando apenas as
premissas clássicas, que a relacionam às variáveis ecológicas, do nexo
existente entre manchas de criminalidade e as especificidades dos territórios
da cidade, ou simplesmente à relação entre pobreza, desigualdade e
criminalidade. Tais dimensões seguem sendo importantes, mas não explicam
a crise civilizacional em que nos metemos. Para compreendê-la, é preciso
relacioná-la com a criminalização da política.
Acusar
políticos de corruptos é uma velha prática no país, frequentemente utilizada
como arma da oposição, para desgastar a imagem de uma liderança ou de um
governo. O efeito dramático do clima de “mar de lama” criado pela oposição, por
meio da imprensa, para atacar Vargas, e que o levaria ao suicídio, em 1954, é
certamente emblemático demais para que precisemos insistir na questão. O
que é inédito na cena atual, e estonteante pela velocidade com que ocorreu, é a
acusação generalizada dos políticos e de suas instituições, e não apenas de
corruptos no sentido mais usual do termo, mas de terem formado quadrilhas que
se comportam como crime organizado. Para entendermos como esse
deslocamento semântico se deu, retirando a corrupção do terreno do embate
político e levando-a para a esfera criminal, precisamos voltar a 2013.
Em
agosto de 2013, a então presidente Dilma Rousseff sanciona as leis 12.846
e 12.850. A primeira, é apelidada de “lei anticorrupção”, por dispor
sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela
prática de atos contra a administração pública. Seu objetivo é o de criar
mecanismos para tornar mais efetiva a punição dos corruptores, e por isso mira
nas empresas e empresários, com especial atenção às fraudes em licitações. E
como instrumento de investigação, prevê o “acordo de leniência”, que consiste
em acordos firmados entre infratores e os respectivos órgãos responsáveis pelos
processos de investigações criminais.
A
segunda lei, logo apelidada de “lei do crime organizado”, redefine o conceito
de crime organizado, estendendo seu alcance ao funcionalismo público. Seu
objetivo declarado é o de atingir o narcotráfico, quadrilhas de sequestradores
e, também, os crimes de colarinho branco. E para isso prevê o uso da
“colaboração premiada” como instrumento de investigação e de produção de
provas. Ainda que esse estatuto já figurasse no direito brasileiro desde a lei
dos crimes hediondos, de 1990, é com essa lei de 2013 que passará a ser
efetivamente entronizado como recurso processual. A lei, vale lembrar, reserva
uma seção para regulamentar a “colaboração premiada”, dedicando-lhe três
artigos, subdivididos em diversos incisos e parágrafos. Em suma, enquanto na
lei de combate ao crime organizado estabelece-se o princípio da delação
premiada celebrada pelo Judiciário, em parceria com o Ministério Público, na
lei anticorrupção a negociação da pena se dá em esfera administrativa.
Aprovadas
às pressas, essas duas leis são, por sua consequência, possivelmente os mais
importantes desdobramentos da gigantesca mobilização da sociedade em 2013, que
ficaria conhecida como as “jornadas de junho”. Com as leis, pretendia-se dar
uma resposta às demandas das ruas, ou pelo menos a uma certa tradução das
demandas das ruas, atacando, em um caso, a corrupção praticada por funcionários
públicos e, em outro, as práticas corruptoras do empresariado.
As
jornadas de junho tiveram uma natureza amorfa, já que se constituiu a partir da
recusa a qualquer instância de organização ou de condução do processo. Apesar
de seu caráter difuso, suas linhas de força mais evidentes foram, de um lado, a
defesa de uma agenda de direitos sociais e de minorias, e de outro, a recusa
aos partidos e aos políticos – independentemente de seu perfil ideológico. Com
essa recusa, mais apontavam para a necessidade da reforma política do que
propriamente para a questão da corrupção, embora essa última também estivesse
presente.
Para
além das intenções, as consequências políticas dessas duas leis foram
absolutamente inesperadas, fugindo ao cálculo do legislador e da presidente que
as sancionou, ao abrir passagem para um processo de criminalização da política
sem precedentes na história do país. De fato, a aplicação dessas leis acabaria
por converter o elemento de recusa à política presente nas jornadas de junho em
substrato para o ativismo judicial.
Em
março de 2014, muito pouco tempo depois da aprovação das referidas leis, tem
início a operação Lava Jato, a partir de um conjunto de investigações
deflagradas pela Polícia Federal sobre esquemas de corrupção envolvendo a
Petrobrás, e que logo contará com a participação ativa de membros do Ministério
Público Federal e da Justiça Federal. Com o apoio da grande mídia, em pouco
tempo a Lava Jato convulsiona o país, criando as condições, inclusive, para um
golpe de estado, que custará o mandato da presidente que ironicamente fora
responsável pela sanção das referidas leis, e que fora legitimamente reeleita
em outubro daquele ano. Com a Lava-Jato inaugura-se uma etapa de ativismo
judicial igualmente inédito na história do país, fazendo valer um uso criativo
do princípio da delação premiada e uma crescente utilização do processo
judicial como parte do jogo da política. Esse novo terreno da política
obviamente não escapa ao faro de toda sorte de oportunistas. Com os holofotes
da grande mídia voltados para as inúmeras audiências judiciais, prisões
rumorosas de grandes empresários e lideranças políticas, e a divulgação de
gravações e telefonemas grampeados, bem como de trechos de delações premiadas,
logo o país se vê inteiramente refém da ciranda de escândalos.
Incensado
pela sede de protagonismo por parte de agentes da polícia federal, e,
sobretudo, por parte de promotores e magistrados, o ativismo judicial vai
construindo sua própria narrativa, justificando-se a si mesmo. Assim,
ironicamente, a lei anticorrupção vai sendo deixada de lado, e em nome do
combate à corrupção cresce a utilização da lei de combate ao crime organizado.
Gradualmente, empresários e empresas passam a ser tratados como agentes
passivos da corrupção, cabendo-lhes portanto o recurso ao benefício da delação
premiada, a fim de se chegar aos verdadeiros algozes, que seriam os políticos e
as máquinas partidárias, agora redefinidos como chefes de quadrilhas
organizadas.
Se
é verdade que é a lei que define o que é crime e não as práticas em si mesmas,
o uso e abuso da lei do crime organizado como remédio para atacar a corrupção
rapidamente criminaliza práticas que até a pouco faziam parte do jogo político,
borrando a fronteira entre o que é próprio da política e o que é crime. Polícia
Federal, Ministério Público e Poder Judiciário embarcam muito rápida e
intensivamente nesse caminho, com o patrocínio calculado da grande mídia que,
de modo deliberado, trabalha para recriar o clima de “mar de lama”. A
pauta da corrupção é, como se sabe, velha aliada da relação da grande imprensa
com a classe média que consome seu jornalismo mas, desta vez, a ribalta
oferecida a essa nova arena propiciada pela criminalização das lideranças políticas
permite à grande mídia descortinar um lance bem mais ousado, o de deslocar o
eixo da política no país, abrindo passagem para uma guinada neoliberal, que até
certo ponto vinha sendo contida pela configuração de centro-esquerda que
lastreava os governos Lula e Dilma.
Não
deixa de ser doloroso reconhecer que as ruas de 2013, por caminhos tortuosos,
desembocam em resultados opostos aos que delas esperavam uma ampliação dos
direitos, inclusive de participação na política. O que sobrevém é, ao
contrário, um golpe que depõe uma presidente legitimamente reeleita, e em
seguida uma era de redução de direitos, com a aprovação da PEC dos gastos,
entre outras medidas recessivas. E o que é pior, uma onda de criminalização da
política, que a afasta ainda mais da sociedade civil.
Ao
comprometer de modo quase irreversível a estabilidade da democracia no país,
colocando em risco inclusive o próprio Poder Judiciário – seu último guardião
–, que de casuísmo em casuísmo vai se enredando no jogo da política, essa
ciranda midiática em torno da corrupção e a deliberada desmoralização da
política nos arrasta para a barbárie, e o resultado mais palpável desse efeito
tem sido a ampliação dramática do tráfico de armas associado ao tráfico de
drogas, que mudou em muito pouco tempo as condições de segurança pública do
país.
Assim
é que a reorganização das condições mínimas de segurança pública no marcos da
Constituição de 1988 pressupõe uma imediata e urgente descriminalização da
política. Nesse sentido, um caminho possível pode ser o de se trazer para o
debate público as associações que representam os profissionais das corporações
ligadas ao sistema judicial, e já seria um avanço se começássemos a colocar em
seu devido lugar o uso da delação premiada, que poderia ser útil para
desbaratar as quadrilhas responsáveis pelo tráfico de armas.
Com
efeito, devemos nos perguntar por que a Polícia Federal e o Ministério Público
Federal não se empenham para valer no enfrentamento desses grupos que vêm
tornando a vida da população das grandes e médias cidades cada vez mais
difícil. Por que não utilizam a lei do crime organizado e a delação premiada
para enfrentar com energia as milícias, que voltaram a se organizar com
força e que certamente marcarão sua presença nas próximas eleições? Por que o Judiciário
não abraça essa agenda, atacando a fundo a necessidade de reformas processuais
e institucionais para combater a grande criminalidade?
Em
parte, a resposta passa pela grande mídia, que tem parcela significativa de
responsabilidade na condução desse processo. Ao que tudo indica, as principais
organizações que por ela respondem não deverão deixar que se desloque a agenda
de criminalização da política, sustentando-a pelo menos até as próximas
eleições presidenciais. Mas se é assim, algo na dinâmica atual poderia começar
a mudar se as corporações do mundo do direito e sua vida associativa dessem
sinais de que pretendem recuar da aventura em que policiais, promotores e
magistrados federais nos lançaram, com a transformação da delação premiada em
remédio para “limpar” a política da doença da corrupção, matando junto com ela
o paciente que se pretendia curar.
É
verdade que um estrago enorme já foi feito, mas não custa lembrar que o pior
ainda pode estar por vir, com a degeneração profunda da política, na medida em
que grupos de milicianos se apropriem do vácuo deixado por partidos, que têm
sido cirurgicamente desmoralizados. Nos territórios onde as milícias imperam
seus moradores já o sabem bem, prevalece um regime totalitário, que não conhece
a linguagem dos direitos.
Não
sabemos qual é o limite da grande mídia, e até onde vai sua aliança com os
donos do capital, nesse pacto que fizeram de apostar na perigosa técnica da
criminalização da política para destruir adversários considerados indesejáveis
e que não se consegue derrotar nas urnas. Mas se ninguém controla a grande
mídia e suas alianças, ao menos podemos exigir das corporações judiciais uma
atitude responsável com os destinos da democracia e do país, devolvendo à
sociedade o direito de definir os rumos da política.
Para
além do efeito placebo – que em alguns casos tem sua utilidade – de uma
intervenção federal na segurança pública de um dos estados da federação, o
caminho da paz social passa pela repactuação da relação entre os poderes da
República, que também deverá incluir uma maior responsabilidade do sistema
judicial no enfrentamento da criminalidade violenta.
Marcelo Baumann Burgos é doutor em
Sociologia, Professor do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio.
Fonte: http://diplomatique.org.br/criminalizacao-da-politica-e-criminalidade-violenta/
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