O JUIZ ESTÁ NU: AS CONSEQUÊNCIAS DA
SUPEREXPOSIÇÃO DO JUDICIÁRIO.
![Sessão plenária do STF.](https://ep01.epimg.net/brasil/imagenes/2018/02/08/opinion/1518092612_576557_1518094796_noticia_normal.jpg)
Até o início dos anos 2000, era comum
se dizer que esse poder era um “ilustre desconhecido”,
Nem de longe essa expressão pode ser
usada hoje.
O Brasil “descobriu” o auxílio-moradia dos magistrados. Essa é a
sensação que se tem ao acompanhar a cobertura política dos últimos dias. O
estopim foi a matéria sobre o duplo auxílio-moradia recebido pelo juiz da 7a
Vara Federal do Rio de Janeiro, Marcelo Bretas, e por sua esposa, que também é
magistrada. Responsável pelas ações da Lava Jato no Rio, Bretas recebe o
benefício desde 2015, amparado por uma decisão judicial que contraria a Resolução
nº 199 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) (CNJ), cujo teor proíbe o
benefício em duplicidade para casais que morem na mesma residência.
Na sequência, o juiz Sérgio Moro, proprietário de um imóvel em Curitiba,
também apareceu em matérias e memes sobre o assunto. Moro recebe o benefício,
no valor de R$ 4.377, ainda que tenha apartamento próprio em Curitiba. Em
declaração à imprensa, afirmou que o benefício serve de compensação pela falta
de reajustes para os juízes. A declaração de Moro leva a uma discussão sobre o
teto constitucional (já que o auxílio não é considerado renda, ficando
inclusive isento de imposto) e sobre como é possível, dentro da lei, criar
fórmulas de burlar os próprios ditames legais. Uma questão importante surge a
reboque: o que é legal é sempre justo?
O auxílio só foi estendido a
todos os magistrados e membros do Ministério Público do país por conta de
uma liminar do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) (STF), Luiz
Fux. Desde que foi tomada, em setembro de 2014, a decisão gerou um gasto
estrondoso para os cofres públicos. Dentre as beneficiadas com a interpretação,
está a própria filha do ministro, Marianna Fux, que é desembargadora do
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e possui dois imóveis na capital. Eis que
outra questão se coloca: o Judiciário está isento de interesses ao julgar?
Superexposição
Com o assunto em pauta, não faltam exemplos de como o benefício
parece ser talhado para simbolizar as discrepâncias sociais brasileiras e como
o Sistema de Justiça não está apartado delas. Magistrados, promotores de
Justiça e defensores públicos, com paridade de vencimentos, têm hoje uma
remuneração que gira em torno de 30 mil reais. A soma, acrescida do auxílio,
representa cerca de 34 vezes o valor do salário mínimo, nos casos em que outros
penduricalhos não entram na conta. Essa discussão sobre direitos e privilégios
dos que compõem o Sistema de Justiça parece que vai ser levada a cabo. Sobram
temas para puxar o cordão, como as férias de 60 dias e os demais auxílios – de
ajuda de custo para vestuário à compra de livros. Tais benefícios e seu contraste
com a realidade brasileira merecem ser vistos com um foco próprio, mas ensejam
outra discussão num plano médio: as consequências da superexposição do
Judiciário e seu comportamento como ator político.
Até o início dos anos 2000, era
comum se dizer que o Judiciário era um “ilustre desconhecido”. Nem de longe
essa expressão pode ser usada hoje. O Judiciário está na agenda midiática e
pública, é fato. Esse é um processo que vem sendo construído há alguns anos.
Durante o julgamento do mérito e dos recursos da Ação Penal 470, o “mensalão”,
em 2012 e 2013, termos técnicos antes inimagináveis à linguagem jornalística,
tais como embargos infringentes, estiveram em quase todas as chamadas e manchetes
de jornais. Em dezembro de 2016, foi organizada uma manifestação na Avenida
Paulista em apoio à Lava Jato. Lá estavam bonecos infláveis e camisetas com
fotos dos membros da operação em caricaturas de super-heróis. Na mesma
manifestação, diversas pessoas carregavam cartazes com os nomes dos ministros
do Supremo. As pessoas sabiam, inclusive, como tais ministros votaram em
determinados assuntos. Concordavam e discordavam. Não seria uma inverdade dizer
que hoje a escalação do Supremo tem “jogadores” mais conhecidos que muitos
nomes da seleção brasileira – e que, como os atletas, já sofrem cobranças e
hostilidades públicas por seus “dribles”.
Explosão latente
É curioso observarmos que, poucos dias antes do auxílio-moradia
tomar conta dos jornais e das redes sociais, a outra pauta que reinava absoluta
era a da condenação do ex-presidente Lulas no Tribunal Regional
Federal da 4ª Região (TRF4), no processo relativo à operação Lava Jato. O
julgamento-espetáculo teve torcida organizada nas ruas, contou com bloqueio
aéreo, terrestre e naval ao redor do Tribunal e foi transmitido ao vivo. Lá
estava uma Justiça que disputava a opinião pública em contraponto com o réu.
Isso diz muito sobre o que vemos agora. As pautas sobre o julgamento de Lula e
o auxílio-moradia podem parecer díspares, mas acabam por trazer à tona a
necessidade de uma análise detalhada sobre a “isenção” do processo. O trâmite
legal dos procedimentos garante sua lisura? Como? Por quê? O que vale para um
vale para todos? Essas são perguntas fundamentais, feitas por uma sociedade que
começa a entender o comportamento do Sistema de Justiça. Se escapa à maioria
expressões próprias do Judiciário, tais como “prescrição” ou “pedido de
vistas”, permanece a indagação sobre os motivos em relação aos quais algum tema
ou pessoa é ou não julgado e em que período de tempo isso acontece. Os
questionamentos sobre os benefícios classistas podem aparecer agora num
primeiro plano, mas estão imbricados numa questão latente sobre o funcionamento
da Justiça – que tem tudo para explodir em breve.
O nível de exposição das
instituições judiciais chegou em um ponto de saturação que impressiona. Se, de
alguma forma, isso alçou juízes e promotores a celebridades, por outro lado,
abriu espaço para revelar distorções e arbitrariedades que antes só eram
percebidas por quem acompanhava o meio jurídico de perto. São dois eixos de um
mesmo movimento e, ao que parece, algo começa a mudar.
Há um histórico que mostra como
o Direito e, em especial, a magistratura são tomados por uma determinada classe
social. José Murilo de Carvalho, em A construção da ordem e o teatro das
sombras, fala da importância dos juízes para unificar a elite no Império.
Quantos podiam mandar seus filhos para estudar Direito em Coimbra? A pergunta
parece longínqua, mas hoje cabe questionar: quem tem condições de sustentar a
máquina de cursinhos para se tornar um magistrado ou membro do Ministério
Público? Dentre tantos fatores, o perfil de quem ocupa as carreiras jurídicas
diz muito sobre como a Justiça é feita, sobre a ideia que se tem de privilégios
e mesmo a quem se destina a lei.
Se as cobranças públicas
espantam os que emularam uma Justiça heroica, um panorama rápido nos lembra
que, até anos 2000, as pautas na mídia que giravam em torno da instituição
diziam respeito à transparência e accountability. A CPI do Judiciário, em 1999,
e a Reforma, em 2004, com suas discussões sobre o controle externo e a famosa
“caixa-preta”, são eventos importantes a mostrar a pertinência de tais
demandas.
A democratização do Sistema de
Justiça foi e ainda é uma questão não resolvida. O que acontece agora é que,
para o bem e para o mal, os holofotes não permitem mais uma acomodação
silenciosa de interesses. Estar na agenda pública tem seu preço. Foi rápido o
pulo de vilão a mocinho, mas há problemas profundos demais no Judiciário para
que seja possível ficar muito tempo em cena sem que eles apareçam.
Grazielle Albuquerque é jornalista e doutoranda
em Ciência Política pela Unicamp
Fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/02/08/opinion/1518092612_576557.html
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