O ESTADO DE EXCEÇÃO É A REGRA GERAL
“Se a agenda da
transformação for traída, já não estaremos mais no mesmo lugar de antes,
teremos andado um pequeno passo.” Confira entrevista com o pesquisador Felipe
Paiva, doutorando em História pela UFF e professor de História da África na
UnB, em que ele explica alguns conceitos de estado de exceção e os motivos
pelos quais o Brasil vive na era da necropolítica.
Fato
um: questionado sobre a intervenção militar no Rio de Janeiro, o presidente
Michel Temer disse, em entrevista, dia 23 de fevereiro de 2018, que não sabia
informar se haveria confronto, mas que se houvesse disputa entre o marginal e o
bandido armado, o militar não se deixaria matar. “Se houver necessidade, ele [o
militar] parte para o confronto”.
Fato
dois: os militares têm um alvo, as 763 favelas do Rio de Janeiro, nas quais
habitam 1,393 milhão de pessoas, 22,03% dos moradores da cidade, segundo o
censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). As
favelas ocupam, no município, 5.421,3 hectares e a densidade demográfica é de
257 habitantes por hectare.
Fato
três: enquanto as classes média e alta da zona sul continuam o trabalho, o
estudo, a bebedeira e a drogadição, nos morros, até crianças estão sendo
revistadas. A questão de o inimigo ser interno remete à Doutrina de Segurança
Nacional do general Golbery do Couto e Silva. O relato do estudante Leonardo,
graduando de Pedagogia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), nas
redes sociais é revelador do cotidiano da vida na favela. Ao retornar para
casa, foi abordado por um militar, que, após revistar sua mochila, lhe
perguntou se estava cursando faculdade para ter direito à cela especial. Na
semana anterior, Leonardo havia sido abordado três vezes em meia hora. Ao
questionar o militar responsável pela terceira abordagem, ouviu: “Não tenho
culpa se você é um cidadão padrão para revista”.Os três fatos mostram que o
Brasil vive em estado de exceção, vive na era da necropolítica.
O
pesquisador Felipe Paiva, doutorando em História pela Universidade Federal
Fluminense e professor de História da África na Universidade de Brasília,
explica, nesta entrevista, alguns conceitos de estado de exceção e os motivos
pelos quais o Brasil vive na era da necropolítica.
Por que vivemos
sob um estado de exceção?
O
conceito de estado de exceção é utilizado para se referir a possíveis aberturas
dentro da própria Constituição para que o Executivo suspenda algumas
prerrogativas constitucionais, para enfrentar alguma situação anômala. A
história do conceito jurídico acompanha nossa modernidade e remonta às origens
daquilo que Hobsbawm chamou por “longo século XIX”.
Podemos
nos referir também ao estado de exceção enquanto experiência histórica: quando
porções expressivas da população são alijadas da norma constitucional, quando
seus direitos são suspensos diuturnamente. Nesse sentido, estamos próximos
àquilo que, segundo Walter Benjamin, é a maior lição da “tradição dos
oprimidos”: a de que o estado de exceção é na verdade a regra geral.
Por
esse motivo esse conceito é não só uma letra no papel da lei, mas uma
experiência. As pessoas o experienciam cotidianamente. Elas sentem em seus
corpos o poder de morte do Estado. Elas são, de fato, as inimigas do Estado.
Em
sentido jurídico estreito acredito que seja possível falar em um estado de
exceção nesta nossa fase republicana, ao menos desde o golpe de 2016. Nesse
caso, em vez do Executivo foi o Judiciário o grande protagonista em desfazer
aquilo que Pedro Serrano chamou por “rotina das sociedades democráticas”.
Além
disso, é possível falar também que estamos em um estado de exceção no sentido
histórico. Afinal de contas, a maior parte da população (do negro pobre
favelado ao caboclo sertanejo) não goza de seus plenos direitos, ou, pior, são
inimigos do Estado, que sistematicamente os extermina, os deixa morrer ou os
encarcera.
Esse
inimigo é interno e habita as favelas do Rio de Janeiro. Que relação há entre a
intervenção militar do governo Michel Temer no estado do Rio de Janeiro e a Lei
de Segurança Nacional do general Golbery do Couto e Silva?
Há,
pelo menos, quatro relações importantes entre a intervenção militar de Temer e
a Doutrina de Segurança Nacional (DSN) do general Golbery do Couto e Silva.
A
primeira é a existência de um inimigo interno. O ponto de partida básico da DSN
era a noção de defesa nacional. Até os anos 1950 essa defesa era pensada em
relação a ameaças externas à soberania. Com o recrudescimento da Guerra Fria, a
noção foi ampliada e incluiu o agente interno subversivo, o comunista. Quem
exatamente era esse sujeito? A definição de comunista era tão ampla que qualquer
pessoa estava sujeita ao rótulo.
Isso
nos leva à outra relação possível. O general Sergio Etchegoyen, braço direito
de Temer nas Forças Armadas, já chegou a elogiar a ditadura militar, defendendo
o uso de medidas de exceção. Aqui, a relação é “genealógica”.
Disso
deriva outro aspecto: é preciso frisar que ambos os contextos, o atual e aquele
da DSN, contaram com a influência do poder norte-americano e Etchegoyen já
participou de reuniões com o chefe da CIA, em 2017.
Finalmente,
a DSN justificava suas medidas drásticas para o alcance de um bem maior. Pela
manutenção do bem-estar social era válida a limitação das liberdades
individuais e garantias constitucionais. Nesse sentido, nada parece ter mudado,
inclusive no recorte de classe. Da DSN até hoje, o estado de exceção faz voto
de pobreza, atinge mais barracos que condomínios de luxo.
Todo
o mal a ser combatido está no morro? Como o racismo faz um corte biológico
entre uns e outros na necropolítica?
A
ideia de que existe um mal a
ser combatido assegura a “legitimidade” pública de ações ilegítimas como essas,
porque o portador do mal não é um simples adversário, ele é um inimigo a ser
neutralizado, combatido e, se necessário, exterminado. A política se torna,
assim, a disputa amigo-inimigo, como pretendia Carl Schimdt, o que escancara
ainda mais o estado de exceção. Os ilegítimos que ocupam o Planalto fazem isso
de forma muito estratégica. Apelar para a segurança pública assim,
intempestivamente, quando as estatísticas não sofreram nenhum aumento significativo,
é garantir um apoio popular que lhes falta.
Há
um subtexto social – gestado em uma longa tradição histórica
colonial-escravista – que nos leva a considerar certos elementos societários
como párias. Eles são indivíduos “matáveis” e conceitualmente se enquadram
naquilo que Agamben denominou por Homo
Sacer. Em sentido prático: não é preciso sequer a salvaguarda e a
legitimação da lei para executar um indígena em uma calçada, para chacinar a
tiros jovens favelados ou para ignorar a violência cruenta no Norte-Nordeste.
Enquanto sociedade, assumimos consensualmente que essas vidas têm menos valor.
O
Brasil contemporâneo é fruto do escravismo. Foi sobre esse pilar de sangue que
nos erguemos enquanto nação. A permanência por tanto tempo desse regime naturalizou
a visão do negro enquanto escravo, pois não importava de onde o africano vinha
– se do Daomé, Ifé ou Oió –, a cor da pele era a mesma aos olhos dos
traficantes.
Com
a abolição da escravatura, a situação não mudou substancialmente. Todos os
predicados do “escravo” foram transmitidos para a população negra. E qual o
maior predicado de um escravo? Ser um “homem-farrapo”, ser desprovido de toda a
humanidade, como cantou o poeta negro antilhano Aimé Césaire.
Ao
negro-escravo não cabe nada além da condição de pária da terra. A cor funciona
aqui como marca da distinção social. A reificação é brutal: o ser humano não é
nada mais que o seu tom de pele. A marca mais difícil de esconder e, por isso
mesmo, a mais visada pelas miras do Estado.
Você
poderia comentar o fichamento de moradores de Vila Kennedy, Vila Aliança e da
Coreia, na Zona Oeste do Rio de Janeiro feito pelos militares? As pessoas eram
abordadas nas ruas e fotografadas pelos militares junto com documentos de
identificação. Segundo os militares, os dados e as imagens eram enviados à
Polícia Civil para levantamento da ficha criminal.
Em O processo, de Franz
Kafka, o protagonista Josef K. tem a vida tomada de assalto por um crime. Que
crime é esse? Ninguém o diz. Podemos pensar que K. foi condenado única e
exclusivamente por ser quem era, sem nenhuma justificativa a mais. É esse o
caso dos moradores das Vilas Kennedy e Aliança, e também dos da favela da
Coreia. A justificativa formal do Estado para esse ato é a manutenção da
segurança pública. Sabemos, no entanto, que o que realmente embasa esse
acontecimento é o fato de os moradores desses lugares serem o que são. Suas
condições sociais e seu lugar em nossa hierarquia cromática são os fatos que
realmente legitimam esse tipo de abordagem.
Segundo
dados da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo,
responsável por 33% da população carcerária feminina do país, até junho de
2017, 276 crianças nasceram na prisão. Em 2013, esse número foi de 396. Cada
vez mais brasileiros estão atrás das grades. Isso é um reflexo da política do
Estado de exceção?
Quem
frequenta essas prisões? Em sua maioria, os presos trazem a marca de Caim
brasileira, em geral negros e pardos. Dentre eles, a grande maioria responde
por crime de tráfico de drogas. O consumidor final, desde que seja
universitário e com algum dinheiro, dificilmente é afetado, tampouco o real
produtor, que voa em helicópteros repletos de pó. A restrição na liberdade
atinge somente o intermediário. Dito isso, acredito que não é exagero algum
afirmar que o encarceramento no Brasil possui um caráter sistemático, pois ele se
volta quase que exclusivamente para uma parcela específica da população. Também
não seria exagero afirmar que, além de sistemático, esse encarceramento chega a
ser também um projeto. Quem o realiza? O Estado, certamente. Alguém lucra com
celas superlotadas.
Nesse
contexto cabe dizer que a expressão “guerra às drogas” é tão somente um
eufemismo para a guerra aos pobres. Essa expressão não deixa de ser, porém,
reveladora. É ao mesmo tempo um ato falho e uma confissão. Quem a defende
admite que a situação é de guerra e na guerra o outro lado da trincheira
é inimigo,
nunca um mero adversário, um igual no jogo político, cidadão, alguém que merece
o tratamento constitucional adequado caso tenha transgredido a lei. Ato
contínuo, numa guerra, admite-se que a morte de eventuais inocentes é um
incidente, efeito colateral. A conclusão lógica é clara: a condenação cabe não
só ao “criminoso”, mas a todo aquele que esteja ao seu redor.
E
quando já se nasce culpado? Ter a prisão por manjedoura talvez seja o máximo do
estigma social, o mais fundo que podemos chegar na lógica da exceção, pois ela
escancara o caráter hereditário da condição de pária, de não cidadão, a
genealogia da margem.
Qual
é a saída?
Sou
incapaz de apontar uma saída, quero somente expor algumas problemáticas. Em
primeiro lugar: quais são as necessidades do nosso tempo? Se olharmos com
atenção, são basicamente as mesmas do século XX. Os problemas são, portanto,
semelhantes, mas e as soluções? Hoje, estamos muito distantes daquela tentativa
precária de universalização das demandas sob uma mesma bandeira, coisa também
típica do século XX. Ao contrário, assistimos a um processo de fragmentação das
demandas e, em alguns casos, isso ganha tons extremos, com uma ingenuidade
míope pouco prática. O apelo é justo, mas fraco para alcançar o poder de
Estado, pois só uma questão encerrada em si mesma (a raça ou o gênero, por
exemplo) dificilmente nos traz alguma mobilização substantiva. Nesse aspecto,
acredito que a posição de Ellen Wood seja simplesmente irretocável. Como ela
afirmou em certa ocasião: a atual preocupação com a “diversidade” ou por
“estilos de vida diferentes” representa um alto nível de fetichismo da
mercadoria, o triunfo de uma sociedade do consumo na qual a vitória sobre
pautas progressistas é medida pela quantidade de produtos destinados a um nicho
de mercado exclusivo: ambientalistas, mulheres, negros, o público LGBT. Estão
nos domesticando e nós batemos palmas. Ninguém vai deixar de ser pária da terra
por estar consumindo produtos Avon. Como disse, é uma ingenuidade míope pensar
que isso basta. Tem alguma importância na vida individual das pessoas,
obviamente, mas somente daqueles que, estando dentro dos grupos politicamente
minoritários, têm poder de compra. E os demais? A consequência disso é a
aceitação, por vezes impensada, de uma ideia básica do credo neoliberal: a
noção de que a política deve ser refém da economia.
Logo,
deveríamos voltar à bússola do século XX, vanguarda, revolução, Estado? Não
necessariamente, mas me parece óbvio que se abdicamos da disputa pelo Estado
deixamos uma esfera muito importante de lado. Afinal, querendo ou não, somos
uma democracia representativa e na falta de um cenário de ruptura radical nas
instituições é dentro desse quadro realista que devemos trabalhar. Além disso,
é o Estado que mata ou deixa morrer, é ele o carrasco no palco do estado de
exceção. Domá-lo é tarefa urgente. Em meu livro Indômita babel (Eduff,
2017), a resistência, que por definição tem força reativa de contenção, só tem
pleno sentido se acompanhada pelo ímpeto na ação propositiva. Resistir às
instituições, mas não perder de vista que é preciso entrar nelas.
Com
isso quero dizer: eleições, ainda. Se elas ocorrerem é preciso vencê-las. O
segundo lugar em diante garante, no máximo, uma autoindulgência complacente e
arrogante. Nesse aspecto, perder é sempre a saída mais fácil, pois nos exime da
responsabilidade absurda de uma eventual vitória. Só os vencedores têm responsabilidades
a cumprir.
É
preciso vencer da forma correta, no entanto. Precisamos criar uma bandeira de
consenso mínimo, algo geral o suficiente para exceder os partidos e movimentos
sociais (e não para substituí-los ou aniquilá-los, como quer o bom fascista),
mas que também toque em alguma medida o cidadão comum. Algo que, mesmo sendo
amplo, tenha condições de criar uma rede firme de compromissos e solidariedade
política dentro da sociedade civil. Esta bandeira precisa ter por foco,
obviamente, as necessidades daqueles que mais sofrem com o estado de exceção.
Para tanto, ela precisa ser materialista, frisar as necessidades mais básicas e
imediatas, pois é isso que está em jogo para quem vive em estado de exceção, a
própria vida nua.
Como exatamente isso
será feito?
Afastemos
tanto o imediatismo quando o voluntarismo. Tal constatação não deixa de ser
amarga, afinal de contas a exceção pede solução urgente, o dedo no gatilho do
executor não espera.
Sou
incapaz de apontar saídas, mas quero responder afirmativamente à pergunta: sim,
há alguma saída. Acredito que para chegar em uma solução, por mais provisória e
precária que seja, precisamos considerar seriamente esses pontos. Se depois, em
algum futuro distante, essa agenda for traída, já não estaremos mais no mesmo
lugar de antes, teremos andado um pequeno passo. À maneira de Molloy, aquele
personagem de Beckett, que usa muletas e não move as pernas. Com esforço árduo
ele anda, ainda assim. Espero que andemos. Estamos andando, precisamos.
*Rodrigo
Farhat é jornalista.
ENTREVISTA – FELIPE PAIVA
ACERVO
ONLINE | BRASIL
por Rodrigo
Farhat
Março 16,
2018
Imagem
por Antonio Marín Segovia
https://diplomatique.org.br/o-estado-de-excecao-e-regra-geral/
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