segunda-feira, 19 de março de 2018

O ESTADO DE EXCEÇÃO É A REGRA GERAL
 

“Se a agenda da transformação for traída, já não estaremos mais no mesmo lugar de antes, teremos andado um pequeno passo.” Confira entrevista com o pesquisador Felipe Paiva, doutorando em História pela UFF e professor de História da África na UnB, em que ele explica alguns conceitos de estado de exceção e os motivos pelos quais o Brasil vive na era da necropolítica.

Fato um: questionado sobre a intervenção militar no Rio de Janeiro, o presidente Michel Temer disse, em entrevista, dia 23 de fevereiro de 2018, que não sabia informar se haveria confronto, mas que se houvesse disputa entre o marginal e o bandido armado, o militar não se deixaria matar. “Se houver necessidade, ele [o militar] parte para o confronto”.

Fato dois: os militares têm um alvo, as 763 favelas do Rio de Janeiro, nas quais habitam 1,393 milhão de pessoas, 22,03% dos moradores da cidade, segundo o censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). As favelas ocupam, no município, 5.421,3 hectares e a densidade demográfica é de 257 habitantes por hectare.
Fato três: enquanto as classes média e alta da zona sul continuam o trabalho, o estudo, a bebedeira e a drogadição, nos morros, até crianças estão sendo revistadas. A questão de o inimigo ser interno remete à Doutrina de Segurança Nacional do general Golbery do Couto e Silva. O relato do estudante Leonardo, graduando de Pedagogia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), nas redes sociais é revelador do cotidiano da vida na favela. Ao retornar para casa, foi abordado por um militar, que, após revistar sua mochila, lhe perguntou se estava cursando faculdade para ter direito à cela especial. Na semana anterior, Leonardo havia sido abordado três vezes em meia hora. Ao questionar o militar responsável pela terceira abordagem, ouviu: “Não tenho culpa se você é um cidadão padrão para revista”.Os três fatos mostram que o Brasil vive em estado de exceção, vive na era da necropolítica.

O pesquisador Felipe Paiva, doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense e professor de História da África na Universidade de Brasília, explica, nesta entrevista, alguns conceitos de estado de exceção e os motivos pelos quais o Brasil vive na era da necropolítica.

Por que vivemos sob um estado de exceção?

O conceito de estado de exceção é utilizado para se referir a possíveis aberturas dentro da própria Constituição para que o Executivo suspenda algumas prerrogativas constitucionais, para enfrentar alguma situação anômala. A história do conceito jurídico acompanha nossa modernidade e remonta às origens daquilo que Hobsbawm chamou por “longo século XIX”.
Podemos nos referir também ao estado de exceção enquanto experiência histórica: quando porções expressivas da população são alijadas da norma constitucional, quando seus direitos são suspensos diuturnamente. Nesse sentido, estamos próximos àquilo que, segundo Walter Benjamin, é a maior lição da “tradição dos oprimidos”: a de que o estado de exceção é na verdade a regra geral.
Por esse motivo esse conceito é não só uma letra no papel da lei, mas uma experiência. As pessoas o experienciam cotidianamente. Elas sentem em seus corpos o poder de morte do Estado. Elas são, de fato, as inimigas do Estado.
Em sentido jurídico estreito acredito que seja possível falar em um estado de exceção nesta nossa fase republicana, ao menos desde o golpe de 2016. Nesse caso, em vez do Executivo foi o Judiciário o grande protagonista em desfazer aquilo que Pedro Serrano chamou por “rotina das sociedades democráticas”.
Além disso, é possível falar também que estamos em um estado de exceção no sentido histórico. Afinal de contas, a maior parte da população (do negro pobre favelado ao caboclo sertanejo) não goza de seus plenos direitos, ou, pior, são inimigos do Estado, que sistematicamente os extermina, os deixa morrer ou os encarcera.

Esse inimigo é interno e habita as favelas do Rio de Janeiro. Que relação há entre a intervenção militar do governo Michel Temer no estado do Rio de Janeiro e a Lei de Segurança Nacional do general Golbery do Couto e Silva?

Há, pelo menos, quatro relações importantes entre a intervenção militar de Temer e a Doutrina de Segurança Nacional (DSN) do general Golbery do Couto e Silva.
A primeira é a existência de um inimigo interno. O ponto de partida básico da DSN era a noção de defesa nacional. Até os anos 1950 essa defesa era pensada em relação a ameaças externas à soberania. Com o recrudescimento da Guerra Fria, a noção foi ampliada e incluiu o agente interno subversivo, o comunista. Quem exatamente era esse sujeito? A definição de comunista era tão ampla que qualquer pessoa estava sujeita ao rótulo.
Isso nos leva à outra relação possível. O general Sergio Etchegoyen, braço direito de Temer nas Forças Armadas, já chegou a elogiar a ditadura militar, defendendo o uso de medidas de exceção. Aqui, a relação é “genealógica”.
Disso deriva outro aspecto: é preciso frisar que ambos os contextos, o atual e aquele da DSN, contaram com a influência do poder norte-americano e Etchegoyen já participou de reuniões com o chefe da CIA, em 2017.
Finalmente, a DSN justificava suas medidas drásticas para o alcance de um bem maior. Pela manutenção do bem-estar social era válida a limitação das liberdades individuais e garantias constitucionais. Nesse sentido, nada parece ter mudado, inclusive no recorte de classe. Da DSN até hoje, o estado de exceção faz voto de pobreza, atinge mais barracos que condomínios de luxo.

Todo o mal a ser combatido está no morro? Como o racismo faz um corte biológico entre uns e outros na necropolítica?

A ideia de que existe um mal a ser combatido assegura a “legitimidade” pública de ações ilegítimas como essas, porque o portador do mal não é um simples adversário, ele é um inimigo a ser neutralizado, combatido e, se necessário, exterminado. A política se torna, assim, a disputa amigo-inimigo, como pretendia Carl Schimdt, o que escancara ainda mais o estado de exceção. Os ilegítimos que ocupam o Planalto fazem isso de forma muito estratégica. Apelar para a segurança pública assim, intempestivamente, quando as estatísticas não sofreram nenhum aumento significativo, é garantir um apoio popular que lhes falta.
Há um subtexto social – gestado em uma longa tradição histórica colonial-escravista – que nos leva a considerar certos elementos societários como párias. Eles são indivíduos “matáveis” e conceitualmente se enquadram naquilo que Agamben denominou por Homo Sacer. Em sentido prático: não é preciso sequer a salvaguarda e a legitimação da lei para executar um indígena em uma calçada, para chacinar a tiros jovens favelados ou para ignorar a violência cruenta no Norte-Nordeste. Enquanto sociedade, assumimos consensualmente que essas vidas têm menos valor.
O Brasil contemporâneo é fruto do escravismo. Foi sobre esse pilar de sangue que nos erguemos enquanto nação. A permanência por tanto tempo desse regime naturalizou a visão do negro enquanto escravo, pois não importava de onde o africano vinha – se do Daomé, Ifé ou Oió –, a cor da pele era a mesma aos olhos dos traficantes.
Com a abolição da escravatura, a situação não mudou substancialmente. Todos os predicados do “escravo” foram transmitidos para a população negra. E qual o maior predicado de um escravo? Ser um “homem-farrapo”, ser desprovido de toda a humanidade, como cantou o poeta negro antilhano Aimé Césaire.
Ao negro-escravo não cabe nada além da condição de pária da terra. A cor funciona aqui como marca da distinção social. A reificação é brutal: o ser humano não é nada mais que o seu tom de pele. A marca mais difícil de esconder e, por isso mesmo, a mais visada pelas miras do Estado.

Você poderia comentar o fichamento de moradores de Vila Kennedy, Vila Aliança e da Coreia, na Zona Oeste do Rio de Janeiro feito pelos militares? As pessoas eram abordadas nas ruas e fotografadas pelos militares junto com documentos de identificação. Segundo os militares, os dados e as imagens eram enviados à Polícia Civil para levantamento da ficha criminal.

Em O processo, de Franz Kafka, o protagonista Josef K. tem a vida tomada de assalto por um crime. Que crime é esse? Ninguém o diz. Podemos pensar que K. foi condenado única e exclusivamente por ser quem era, sem nenhuma justificativa a mais. É esse o caso dos moradores das Vilas Kennedy e Aliança, e também dos da favela da Coreia. A justificativa formal do Estado para esse ato é a manutenção da segurança pública. Sabemos, no entanto, que o que realmente embasa esse acontecimento é o fato de os moradores desses lugares serem o que são. Suas condições sociais e seu lugar em nossa hierarquia cromática são os fatos que realmente legitimam esse tipo de abordagem.

Segundo dados da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, responsável por 33% da população carcerária feminina do país, até junho de 2017, 276 crianças nasceram na prisão. Em 2013, esse número foi de 396. Cada vez mais brasileiros estão atrás das grades. Isso é um reflexo da política do Estado de exceção?

Quem frequenta essas prisões? Em sua maioria, os presos trazem a marca de Caim brasileira, em geral negros e pardos. Dentre eles, a grande maioria responde por crime de tráfico de drogas. O consumidor final, desde que seja universitário e com algum dinheiro, dificilmente é afetado, tampouco o real produtor, que voa em helicópteros repletos de pó. A restrição na liberdade atinge somente o intermediário. Dito isso, acredito que não é exagero algum afirmar que o encarceramento no Brasil possui um caráter sistemático, pois ele se volta quase que exclusivamente para uma parcela específica da população. Também não seria exagero afirmar que, além de sistemático, esse encarceramento chega a ser também um projeto. Quem o realiza? O Estado, certamente. Alguém lucra com celas superlotadas.
Nesse contexto cabe dizer que a expressão “guerra às drogas” é tão somente um eufemismo para a guerra aos pobres. Essa expressão não deixa de ser, porém, reveladora. É ao mesmo tempo um ato falho e uma confissão. Quem a defende admite que a situação é de guerra e na guerra o outro lado da trincheira é inimigo, nunca um mero adversário, um igual no jogo político, cidadão, alguém que merece o tratamento constitucional adequado caso tenha transgredido a lei. Ato contínuo, numa guerra, admite-se que a morte de eventuais inocentes é um incidente, efeito colateral. A conclusão lógica é clara: a condenação cabe não só ao “criminoso”, mas a todo aquele que esteja ao seu redor.
E quando já se nasce culpado? Ter a prisão por manjedoura talvez seja o máximo do estigma social, o mais fundo que podemos chegar na lógica da exceção, pois ela escancara o caráter hereditário da condição de pária, de não cidadão, a genealogia da margem.

Qual é a saída?

Sou incapaz de apontar uma saída, quero somente expor algumas problemáticas. Em primeiro lugar: quais são as necessidades do nosso tempo? Se olharmos com atenção, são basicamente as mesmas do século XX. Os problemas são, portanto, semelhantes, mas e as soluções? Hoje, estamos muito distantes daquela tentativa precária de universalização das demandas sob uma mesma bandeira, coisa também típica do século XX. Ao contrário, assistimos a um processo de fragmentação das demandas e, em alguns casos, isso ganha tons extremos, com uma ingenuidade míope pouco prática. O apelo é justo, mas fraco para alcançar o poder de Estado, pois só uma questão encerrada em si mesma (a raça ou o gênero, por exemplo) dificilmente nos traz alguma mobilização substantiva. Nesse aspecto, acredito que a posição de Ellen Wood seja simplesmente irretocável. Como ela afirmou em certa ocasião: a atual preocupação com a “diversidade” ou por “estilos de vida diferentes” representa um alto nível de fetichismo da mercadoria, o triunfo de uma sociedade do consumo na qual a vitória sobre pautas progressistas é medida pela quantidade de produtos destinados a um nicho de mercado exclusivo: ambientalistas, mulheres, negros, o público LGBT. Estão nos domesticando e nós batemos palmas. Ninguém vai deixar de ser pária da terra por estar consumindo produtos Avon. Como disse, é uma ingenuidade míope pensar que isso basta. Tem alguma importância na vida individual das pessoas, obviamente, mas somente daqueles que, estando dentro dos grupos politicamente minoritários, têm poder de compra. E os demais? A consequência disso é a aceitação, por vezes impensada, de uma ideia básica do credo neoliberal: a noção de que a política deve ser refém da economia.
Logo, deveríamos voltar à bússola do século XX, vanguarda, revolução, Estado? Não necessariamente, mas me parece óbvio que se abdicamos da disputa pelo Estado deixamos uma esfera muito importante de lado. Afinal, querendo ou não, somos uma democracia representativa e na falta de um cenário de ruptura radical nas instituições é dentro desse quadro realista que devemos trabalhar. Além disso, é o Estado que mata ou deixa morrer, é ele o carrasco no palco do estado de exceção. Domá-lo é tarefa urgente. Em meu livro Indômita babel (Eduff, 2017), a resistência, que por definição tem força reativa de contenção, só tem pleno sentido se acompanhada pelo ímpeto na ação propositiva. Resistir às instituições, mas não perder de vista que é preciso entrar nelas.
Com isso quero dizer: eleições, ainda. Se elas ocorrerem é preciso vencê-las. O segundo lugar em diante garante, no máximo, uma autoindulgência complacente e arrogante. Nesse aspecto, perder é sempre a saída mais fácil, pois nos exime da responsabilidade absurda de uma eventual vitória. Só os vencedores têm responsabilidades a cumprir.
É preciso vencer da forma correta, no entanto. Precisamos criar uma bandeira de consenso mínimo, algo geral o suficiente para exceder os partidos e movimentos sociais (e não para substituí-los ou aniquilá-los, como quer o bom fascista), mas que também toque em alguma medida o cidadão comum. Algo que, mesmo sendo amplo, tenha condições de criar uma rede firme de compromissos e solidariedade política dentro da sociedade civil. Esta bandeira precisa ter por foco, obviamente, as necessidades daqueles que mais sofrem com o estado de exceção. Para tanto, ela precisa ser materialista, frisar as necessidades mais básicas e imediatas, pois é isso que está em jogo para quem vive em estado de exceção, a própria vida nua.

Como exatamente isso será feito?

Afastemos tanto o imediatismo quando o voluntarismo. Tal constatação não deixa de ser amarga, afinal de contas a exceção pede solução urgente, o dedo no gatilho do executor não espera.
Sou incapaz de apontar saídas, mas quero responder afirmativamente à pergunta: sim, há alguma saída. Acredito que para chegar em uma solução, por mais provisória e precária que seja, precisamos considerar seriamente esses pontos. Se depois, em algum futuro distante, essa agenda for traída, já não estaremos mais no mesmo lugar de antes, teremos andado um pequeno passo. À maneira de Molloy, aquele personagem de Beckett, que usa muletas e não move as pernas. Com esforço árduo ele anda, ainda assim. Espero que andemos. Estamos andando, precisamos.

*Rodrigo Farhat é jornalista.
ENTREVISTA – FELIPE PAIVA
por Rodrigo Farhat
Março 16, 2018
Imagem por Antonio Marín Segovia

https://diplomatique.org.br/o-estado-de-excecao-e-regra-geral/

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